quarta-feira, 30 de setembro de 2009

"A VELHICE É MESMO LIXADA !..."



A D.Madalena estava em prantos.
Na praceta, no lugar do costume. Pela trela, o seu novo companheiro de desdita, um cachorro que adoptou depois de todas as vissicitudes que lhe aconteceram.

Há tempos que não vos falo da D.Madalena.
Ela continua a pé firme pelos bancos ociosos das tardes longas e vazias de solidão.
Primeiro partiu o marido, depois a mãe, depois o caniche que honrava o pedigree e se comportava cavalheirescamente, no meio de quantos perambulam pela praceta, ou a cruzam, apressados.

A D.Madalena esvaziou-se de afectos. Os olhinhos em pinta de "i" no fundo das lentes de garrafa, sempre me lembram aquela garça de Sta.Lucia, na beira da rebentação.
O cabelito escorrido, sem corte nem jeito e a vozinha esganiçada em falsete, anuncia à distância, a sua chegada.
Bamboleia-se pé cá, pé lá, e vem vindo, rumando aos bancos, enquanto o tempo não for agreste e a não escorrace da praceta.

Por lá estão os outros, iguais a ela, os seus pares de dias vazios; os outros adormecidos da vida, aqueles a quem a indiferença descolorida dos anos, opacizou já a existência...

Sempre me angustia vê-la.
O seu sorriso atoleimado estampado no rosto, é um esgar de indiferentismo ao mundo que a rodeia.

Hoje, a D.Madalena lavava-se em prantos, com o vira-lata reguila, de posturas de cachorro inconsequente e sem modos, a amarinhar pelas pernas de quem a abeirava.

Não percebi bem porquê, mas parece que a D.Madalena terá de se separar do seu "companheiro". Não sei se por razões de saúde, se por dificuldades económicas ou outras, percebi que equacionava ir pô-lo no "canil".
Por canil, entenda-se o canil municipal, e por canil municipal, entenda-se o futuro traçado na porta de entrada...
Alguém a consolava e lhe dizia que talvez ela devesse tentar arranjar-lhe um dono, alguém que o tratasse e o "estimasse"...

E as lágrimas escorriam-lhe incontidas, dos olhinhos agora em til, de franzidos e doídos.
A voz emudecida, um nó na garganta, acredito...adormentada no destino...
A D.Madalena sentia por perto já, outra perda anunciada na vida.
O cachorro inconsciente, felizmente não entendia os humanos.

Eu passei, só olhei, ouvi pouco...o suficiente...e pensei: a velhice é mesmo lixada!...

Anamar

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