sábado, 3 de outubro de 2009

"MULHER-LUA"






Chegou à janela e levou aquele "soco no estômago" bem seu conhecido.
Inevitável, sempre assim sentia, e o que sentia sempre a fazia esboçar um sorriso.
Uma espécie de cumplicidade trocada...não sabia bem explicar...

Eram sete da tarde de um Outono em crescendo, o céu preparava-se para se recolher em mais uma noite, e ela, a lua cheia, quase completamente cheia, só, imponente, isolada, sem que nenhuma pontilha de luz mais, bordasse o firmamento já escurecido, estava ali, provocadora, bem defronte de si.
Extasiava-se sempre, sempre dizia a meia voz para si mesma:"Que espectáculo!"...Sempre se sentia "esmagada"...

E depois havia aquela coisa, aquela corrente de magia que passava...
Ela e a lua cheia tinham de facto um diálogo endiabrado de mulheres no cio...
Tantas luas cheias já na sua vida, tantas quantos os amores, tantas quantas os homens que atravessaram a sua existência...

Isabel olhava para trás e pensava: "Que coisa louca, a sua vida hoje!"
Muitos acham que os seus percursos dariam bons filmes. Isabel estava segura que o seu daria um, absolutamente inigualável.

Uma mulher madura, ou melhor, uma mulher cuja idade convencionalmente se desajustaria do seu "figurino" de vida actual.
Isabel procura paginar-se e não repaginar-se, inventar-se e não reinventar-se, construir-se e não reconstruir-se, apenas porque só agora "desencantou", ou seja, só agora saíu de um deserto que a manteve cativa e dormente, e pela primeira vez tomou consciência do que era a vida real, as dificuldades reais, os afectos reais.

"Olha que loucura..." sempre pensa, quando confronta as rugas, os fios brancos que tenta encobrir, algum cansaço que a todo o custo desvaloriza, com a adolescente que sente dentro de si, qual borboleta solta espreguiçando as asas ao deixar a crisálida que a albergou e protegeu.
Isabel tem uma ânsia de compensar todo o desperdício de vida, todos os sonhos que não passaram disso mesmo, tudo o que quereria ter sido e feito e não foi e não fez...
Sente que veste um "fato" que não é o seu, sente que não pode mais haver peias, amarras ou convenções que continuem a espartilhá-la, porque essa "factura" já pagou há muito e não tem já tempo útil a perder.
Sente direito à vida, como direito ao oxigénio que lhe cabe respirar, sente direito a uma liberdade desenfreada, como cavalo a quem foi tirada a sela e largado no prado.
Sente direito a concretizar todos os sonhos, por mais sonhos que sejam, só porque já os sonhou e então não eram adequados ao seu estatuto.
Quer dar-se ao luxo de saltar do rochedo ainda que se quebre na chegada; quer dar-se o privilégio de viver no fio da navalha porque isso fá-la sentir viva e não morta, como em três quartos da sua existência; quer permitir-se sorver até à exaustão o bom e o mau, as certezas ou as dúvidas, o sofrimento ou a alegria, as expectativas e as desilusões, a paixão ou a morte...porque tudo ISTO é que é a VIDA.
Precisa correr riscos...o desafio de viver, é em si o maior risco que pode experimentar. Não vira a cara para o lado, não quer mais isso.
Que lhe interessa que a achem louca?!...

A lua feiticeira, sua aliada, que a inunda quando lhe oferece nus, o corpo e a alma, fá-la sentir cada centímetro da sua pele na efeverscência e na sensualidade do sangue a correr e a pulsar...

Isabel sente-se plena, transbordante, prenha de um vulcão interior de emoções e sentires, cuja lava alastra à sua volta e envolve os que ousam "tocá-lo"...
Nesses, normalmente deixa a sua marca...
É uma mulher furacão dos zero ou dos cem, não pega nada pela metade; agarra a vida que detém, pelos cornos, e jura que nunca mais a deixará fugir; pela primeira vez ama-se um pouco e valoriza-se também.
Descobriu que, como a lua cheia que volta pujante todos os meses, altiva no céu escuro, com o mesmo brilho misterioso extasiando aqueles que a sabem olhar, também ela, como uma Fénix renascida, se ergue e erguerá todos os dias, doa o que doer...
em todos aqueles que ainda lhe couberem por destino...

Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá Ana:
Primeiro de tudo fiquei sensibilizado por me achares o teu leitor embora com ausênçias.Mas consideraste-me o teu leitor e isso para mim é algo que me honra-"the good reader makes the good book".Esta frase pertençe a um probabilista americano de origem chinesa, Kai Lai Chung.Foi aluno do Einstein e ainda o conheçi com mais de 80 anos.Escreveu um livro, daqueles estruturantes, apaixonantes de inteligência,irreverência e que me levou a exercer a minha profissão.Depois dele conheçi livros esplendorosos mas todos precisam do leitor apaixonado, decifrante.
Agora a tua Lua.....
Não a achei nada masculina. Achei-a pujante, com muita força , reclamante.
Acho que estou perante a criação de um livro e de um personagem-a Isabel.
Dos zero aos cem, posso dar uma pontuação?
Quinhentos .
Tenho dois capítulos escritos de um livro policial (adoro policiais) em que criei a figura de um detective simpático que interrompe toda o drama policial permanentemente dando dicas de culinária, carpintaria,etc.É uma forma de cortar a narrativa.O livro chama-se “o homem a quem roubaram a alma” e ele nunca olha para a Lua porque, coitado, tem pancadas.(Já se libertou de mim)Ele diz :”É estranho nós morrermos e ela continuar a dar voltas à roda da Terra.”Só aí a achei feminina.
Fernando

anamar disse...

Olá Fernando
Não...a lua da Isabel ou a "minha" lua, ou a lua de quem souber olhá-la é indubitavalmente feminina, eu creio.
Ela é envolvente, misteriosa, provocadora, enigmática,desestabilizadora, obessivamente atractiva...capciosa
A lua fascina-me quando cheia, "conversa" comigo e confidencia-me...
A Isabel deste conto, tem muitas "estórias" partilhadas com muitas luas, na sua vida. Ela, a lua, foi espectadora em silêncio, de muitas interrogações, loucuras, dúvidas. Terá testemunhado na vida de Isabel, cumplicidades inenarráveis, obscuras, loucas...
Se isto poderia ser a criação de um livro ou de uma personagem...não sei...talvez fosse bem possível!!
Beijinho
Anamar