segunda-feira, 15 de abril de 2013

" IL TROVATORE "



Baixei a  S.Carlos, naquele domingo, pelas quatro da tarde.
Lisboa, estava tão adormecida quanto o dia.
Um dia de meio de um Abril incumpridor, que há muito deveria estar a festejar a Primavera, e ainda não lhe vira a cor !

A carruagem parou finalmente ... uma caleche azul portentosa.  Dei uns trocos ao cocheiro, alguns mil réis, peguei a sombrinha, calcei as luvas pretas de doze botões, que tirara, porque afinal também não estava frio, e encontrei-me na calçada.
Havia algum movimento, apenas junto ao Teatro, porque os passantes no Chiado, eram avulsos
Uma tira estreita de água e monte, avistava-se entre dois prédios de cinco andares.
No Tejo, uma vela de  barco da Trafaria, fugia airosamente à bolina, e uma galera toda em pano, trazida pela aragem, passava envaidecida.
De resto, apenas algumas tipoias de praça, circulavam pelo Chiado e pelo Loreto.

À passagem, ainda olhei para o Grémio Literário.  Quem sabe estava por ali o Ega ?!...
Mas não ... Aquele malandro deveria estar ainda a dormir, depois de mais uma noite de esbórnia, talvez lá por Sintra.
Afinal, o Lawrence's costumava prendê-los, a ele e a Carlos, naquelas longas reflexões e filosofices, madrugada adiante, sobre a política tão atormentada, dos tempos que se viviam ...

Em S.Carlos, esperava-me "Il Trovatore".
Certamente a élite intelectual de Lisboa, não perderia a Trilogia de Verdi, que corria, na temporada.
Como sempre, eu afrontava as damas da sociedade, e espicaçava-lhes a curiosidade e uma pitadinha de inveja, atrevendo-me a escutar Verdi, sozinha, no camarote recatado, que Carlos mantinha reservado para mim.
Os binóculos e o leque, encontravam-se obviamente, na bolsinha de mão.
Com o   meu vestido de cauda de "côrte", decotado, de seda da cor do trigo, duas rosas amarelas e uma espiga  nas  tranças,  que  me  compunham  o  rosto  ruborizado,  não  passava  contudo,  desapercebida !

S.Carlos estava um "mimo" !
As cortinas pesadas, "marron", com pendentes dourados, os florões trabalhados em talha, as pinturas nos tectos e nas paredes, os lustres e a profusão de apliques fabulosos, com abundantes pingentes em cristal, eram inigualáveis.
O  camarote real, frente ao palco, encimado pela coroa régia, rodeava-se dos restantes, adamascados em rosa  velho. As efígies de compositores, nas paredes,  os baixo-relevos de um bom gosto indiscutível, as estatuetas da "Virtude" e do "Costume",  ladeando o palco , o relógio adormecido nas horas ... tudo era perfeito !
Nas frisas, os cavalheiros, de colete branco, camisa frequentemente adornada com pregadeira a rigor, sob o paletot , os sapatos irrepreensivelmente envernizados, luvas e bengala de cana da Índia, encastoada, davam um toque "raffiné", quando regressavam do "fumoir", nos intervalos . Era vulgar trazerem o seu monóculo devidamente assestado, para a "função".
As damas da sociedade, como convinha, ostentavam delicada saúde, com um quebranto nos olhos pisados, uma  infinita  languidez  em  toda  a  sua  pessoa,  e  um  ar  sonhador  de  romance,  e  de  lírio  meio  murcho ...

Ainda faltava um pedaço para que o pano subisse ... e contemplando a sala, absorta, relembrei as últimas conversas tidas com Carlos, a propósito do país ... a propósito de Lisboa.
"Um navio fretado à custa da nação, em que se mandasse pela barra fora, o rei, a família real, a cambada dos ministros, dos políticos, dos deputados, dos intrigantes ....
Porque, suprimida a cambada, o país ficava desatravancado, e podiam começar a governar, os homens do saber e do progresso, porque estes, não são maus ... estes, são umas cavalgaduras " !... - dissera-me, preocupado com o estado da Nação.

Enquanto isso, Lisboa está um marasmo !
"Aqui,  importa-se tudo.  Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias ... tudo nos vem em caixotes, pelo paquete !
A civilização custa-nos caríssima, e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas "...
"Vive-se em meio de uma choldra ignóbil !
Predomina uma visão de estrangeirado, de quem só valoriza as civilizações que julga superiores. Principalmente os políticos, que são mesquinhos, ignorantes ou corruptos !...
Enfim  ...  um  país  que  se  dissolve,  Maria  ... Incapaz  de  se  regenerar" !!!...

Interessante esta dissertação de Carlos.
Lúcida, sempre lúcida.
Era forjada nos longos serões de cavaqueio, passados no Ramalhete, depois do avô se recostar ( após o seu whist indispensável, na mesa de pano verde, junto à chaminé, onde agora a chama dos carvões escarlates, não brilhava.  Afinal, era Abril, não esqueçamos !... )
Serões onde não faltava, claro, o Ega, o Craft ( um "doido" a conhecer ), o Cruges ( um geniozinho adoidado ), o Taveira sempre muito correcto, o Marquês de Souselas ... todos em cavaqueira prolixa, à volta de um St. Emilion ou dum Porto, puxando o lume ao charuto .

Pena que tais serões não incluíssem senhoras, presentes ...  Isso seria um desaforo seguramente !
Contudo a curiosidade, o interesse, o gosto por essas tertúlias, em que também se tocava Mendelsshon ou Chopin, aguçava-me o apetite desde há muito, e incendiava-me arroubos contra a discriminação social, como se as mulheres, não fossem também cabeças pensantes, e tivessem apenas como "obrigações", os bordados, o piano, as recepções, quais  bibelots decorativos, de "pose" irrepreensível ...
Tudo demasiado entediante !...
Maçante, o perambular pela luz difusa dos palacetes, cultivando a palidez nacarada nos rostos e cólos !!!...

E assim foi !
Despertei deste torpor, quando o Conde de Luna  lamentava,  que a sua amada Leonora preferia as serenatas de um certo trovador ... que ninguém sabia verdadeiramente quem era ...
E a música de Verdi, transportou-me então, em sonho, até ao final do quarto e último acto !...

No regresso, ainda passei pela Brasileira.
Tinha um encontro marcado, anos depois, com Pessoa ... e ele não faltou !
Nas madeiras, nos tectos trabalhados, nos espelhos e nas telas sobre as paredes adamascadas ... nos grandes lustres suspensos, e mesmo nos balcões ... ele escrevinhava por lá ...

Juro que o vi, e trocámos algumas  "impressões" literárias ...
Proseámos um pouco, e ele confidenciou-me que ... virados os séculos, o país continuava exactamente a mesma ignomínia !!!...
Afinal, tinha acabado de escrever o seu "Nevoeiro" ...

Nevoeiro

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quere.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ansia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!






Anamar       

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