quarta-feira, 22 de maio de 2013

"A LENDA DA MOURA"



Atingido o cimo da encosta, já se divisava bem, do outro lado, o que restara ...

As ruínas estendiam-se, abrangendo todo o espaço por ali abaixo, perdidas numa terra que parecia morta.
O mato rasteiro crescia seco, pelo meio delas.  Nunca mais, nada que valesse a pena, conseguira vingar naquele lugar.
Antigamente havia uma estrada que galgava a pequena montanha abrigada, ladeada então, de vegetação frondosa e confortante, na subida.
O alto daquele monte, por onde meia dúzia de casas rasteiras se empoleiravam a esmo, permitia uma vista deslumbrante, donde, em dias de céu limpo, se descortinava mesmo, o mar intensamente azul, em fundo, lá longe ...

Samira viera habitar aquela aldeia perdida em nenhures.
Ninguém a conhecia.  Não conhecia ninguém.
Chegara em silêncio, num dia de muito calor, em que nem o chilreio da passarada, se deixava ouvir.
Viera ocupar a última casa do povoado, a que ficava no fim do caminho, com uma cisterna de água límpida debaixo da tileira de copa generosa e verdejante, e uma figueira como as da sua terra, mais além ...

De pele tisnada pelo sol que castiga os tuaregues no deserto, cabelos longos e crespos, largados pelas costas e envoltos no manto, quase sempre descalça, usava vestidos compridos e soltos, que tocavam o chão.
Por que viera, quem era, o que procurava, o que escondia ... ninguém sabia !

Samira deambulava pelas encostas, prendia uma ou outra flor do campo, nos cabelos, e sentava-se à tardinha, no alto dum penedo, sempre virada para o mar.
Estática, esfíngica, silenciosa, ali se perdia, até o sol tombar na linha azul do horizonte.

A história de Samira virou mistério, naquele povoado ínfimo, encosta acima.
Havia quem garantisse que, pelas noites dentro, ela chorava, num pranto de dar dó ...
Havia  quem  garantisse que ela falava com alguém, numa língua hermética e não perceptível pelas gentes dali ...
Havia quem garantisse que a via bailar como louca, quando a lua subia no céu e ficava imensa, clara e luminosa ...

Naquela noite medonha, as casas foram acordadas por um clarão laranja que acendia o firmamento, e tornava dia, a noite de breu.
Uma fornalha parecia escancarar as goelas, e querer engolir tudo e todos.  Os estalidos da madeira crepitante, as faúlhas incandescentes arremessadas em todas as direcções, e as línguas das chamas alterosas, desenhavam um monstruoso fogo de artifício, num quadro dantesco e alucinante.
As gentes fugiam, e os animais desciam a encosta, em desnorte, enquanto o vento que então se levantou, espalhava mais e mais as labaredas, num prenúncio de Inferno, em total descontrole...
Tudo cessou, apenas quando não restava mais que pedra sobre pedra, quando o negro do desespero cobriu tudo, quando até a terra parecia ter ficado queimada, e um cenário apocalíptico se abateu naquele lugar !

De Samira,  nunca  mais ninguém  ouviu falar ...
A tampa da cisterna jazia no chão ... Porquê ?  Nunca se soube !...

A aldeia das seis casas, amaldiçoada por um qualquer  desígnio inexplicável, tornou-se um lugar fantasma e deserto.
As ruínas ficaram entregues à sua sorte.  Apenas a erva rasteira e seca, persistiu em medrar por entre elas.
O trilho que levava ao topo da colina, sumiu, por indefinição de percurso.  As silvas, os galrachos, os cardos e os carrasquinhos, tomaram conta de tudo.
O mar continuava azul intenso, no limite da terra, lá longe ...
O sol era castigador no tempo do calor.  Não se ouvia um som.
Até os pássaros, pareciam evitar aquele lugar maldito. Apenas os grilos e as cigarras inconscientes, o profanavam com indiferença ... ou o zumbido de uma abelha ou de algum moscardo, em passagem ...

Contudo, apesar de penoso o acesso, havia quem não desistisse de subir ao topo do monte ... às ruínas ...
... lá, onde a lenda dizia, que no resmalhar do mato se ouvia o lamento de uma moura, e no gorgolejar da água cristalina da cisterna, os soluços de uma mulher ... quando o silêncio pesava, ou a lua cheia subia no céu  escuro !!!...



Anamar

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