quinta-feira, 31 de julho de 2014

" TANTO TEMPO JÁ !... "




Pensava eu com os meus botões, olhando o insípido cinzento do dia, num Verão nem carne nem peixe :  faz hoje vinte e dois anos que a vida me deu uma rasteira daquelas !
Faz hoje vinte e dois anos que o meu pai me deixou ... E com ele, partiu aquela ingenuidade e bonomia com que acreditamos as coisas certas da vida .
Como se a vida tivesse "coisas certas" !...

Foi o primeiro grande revés, assim uma espécie de experiência em proveta, para ensaios futuros.
A gente balança, a gente degusta o sabor azedo do abandono, a gente experiencia mesmo a doer, uma orfandade estranha, como o menino sozinho que no deserto  olha as areias monotonamente iguais, a perder de vista, sem caminhos ou nortes ... e não sabe para onde há-de ir ...
E zanzamos por ali, sem atinar muito bem se apanhamos os cacos, se reconstruímos o puzzle, se somos capazes de seguir adiante, apesar daquela injustiça contra-natura  e mortal.

Depois, recomeçamos.
E recomeçamos com novos códigos, novas formas de sobrevivência, novos acreditares, novos empenhos ...
Porque o ser humano tem inata em si, a capacidade regeneradora.

Recomeçamos ano após ano, mês após mês, dia após dia, por cada nascer e cada por de sol.
Por cada alegria ou cada tristeza, por cada insucesso ou cada vitória, por cada riso ou por cada lágrima !
Esgravatamos cada pedra coberta de musgo, e com dedos sangrando, progredimos na encosta ... quando quase já não acreditamos !

Renascemos com cada filho que se aninha no nosso colo, com cada neto que nos conta a sua história, com mãe velha, sequiosa de mimos ...
Reerguemo-nos com cada amor que pinta de arco-íris o nosso céu ... ainda que o arco-íris seja passageiro, e sirva só de trampolim às estrelas ... e nós o saibamos ...
Amarinhamos até ao pico da montanha, sempre que precisamos ver o céu azul, quando as forças ficam falhas ... uma e outra vez ... E não sossobramos ...
Olhamos as flores, e deixamos que os colibris bebam as nossas lágrimas teimosas, que às vezes ficam cegas frente ao universo, complacente e generoso ... E ajoelhamos, que é o primeiro degrau  para  a humildade do percurso ...

E recomeçamos, com as bengalas dos que nos amam, depondo armas de mágoa, deixando raivas e ódios pelos atalhos e veredas.
Aprendemos a perdoar, porque queremos e somos capazes ... E um coração sem dores impressas, pesa-nos menos na jornada !
Perdoamos, mas não esquecemos ...
As páginas do livro foram escritas, e sempre as folheamos, quando nos faz falta ...

E recomeçamos, quando parece que já não há muito para recomeçar.
Mas sempre há !   Porque todos os dias têm alvoradas,  e todas as manhãs acordam de uma noite.
E se hoje choramos, amanhã iremos seguramente gargalhar ... porque a roda é isto... voltar ao princípio, todas as vezes que se fechou o ciclo !

Há vinte e dois anos que fiquei mais pobre ... Ilusoriamente mais pobre, apenas !
O meu pai partiu, só porque tinha que partir ... Era a hora, urgia cumprir o decidido.

Deixou-me  uma nuvem de afecto, à qual só eu tenho acesso. Da qual só eu conheço a chave de entrada.
E ganhei um querubim de olhos verdes, gestos doces e asas protectoras, que me toca ao acordar, que me embala ao adormecer, e que conversa comigo à surrelfa, quando ninguém está por perto, na nossa linguagem  única, nos nossos diálogos de silêncio, e eu o "alugo", com  as  minhas  dúvidas, as  minhas ansiedades,  as  minhas  inquietações  e  os  meus  medos ...

É com ele que renasço, quando ofego de cansada ...
É com ele que recomeço, quando penso que já não vale a pena !...

Anamar

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