quarta-feira, 3 de setembro de 2014

" A CRISE ESTÁ A AJUDAR A JUNTAR QUATRO GERAÇÕES À MESMA MESA "


A  casa de Isabel Cabral, em Ermesinde, é um exemplo de coabitação, impulsionada pela crise, de várias gerações da família


Encerra-se aqui, a publicação dos cinco artigos, escritos pela jornalista Ana Cristina Pereira do jornal "Público", sobre "as diferentes gerações", e divulgados ao longo de cinco domingos consecutivos.

Porque os achei interessantes, pertinentes  e lúcidos, decidi partilhá-los com todos aqueles que acedam aqui, ao meu espaço.

Anamar


Por força do desemprego, da precariedade e da emigração, pode estar a abrandar o processo de desarticulação das famílias e a aumentar a coabitação de gerações.  Este é o último de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações.


Maria não larga o telemóvel. Anda encantada com um rapaz e a conversa com ele, parece interminável - trocam mensagens a uma cadência só deles.  "Dizemos coisas sem jeito, mas que para nós fazem sentido ", conta ela, entre risos.  Nada irrita tanto os avós como aquele toque constante.  De vez em quando a avó até lhe diz que gostaria que o telemóvel caísse e deixasse de funcionar.

Só tem 14 anos, Maria António.  Mora com os avós em Santa Eufémia, uma aldeia do concelho de Leiria.  A mãe está em Bergen, a segunda maior cidade da Noruega.  Maria esteve com ela dois anos e meio, mas quis regressar.  Quer fazer um curso técnico-profissional de gestão de quintas e eventos equestres.  E está convencida de que em Portugal as escolas são mais exigentes e os cavalos melhores.  "A minha mãe deixou-me vir.  Ela está triste, mas compreende ."

Mónica António, a mãe, não pensou que lhe custasse tanto deixá-la ao cuidado dos avós.  A 11 de Agosto, estava a colocar a mala na bagageira e já lhe rolavam as lágrimas pelo rosto.  Foi a chorar grande parte da viagem até Lisboa.  Recomeçou o choro mal ouviu, já no avião, falar norueguês.  "Estás no teu país e já não estás.  Já estás a ouvir uma língua de um sítio para o qual não queres voltar."

O avô torceu o nariz.  Tudo aquilo lhe parece um bocado disparatado.  Para ele, adolescente não tem querer ;  quem tem querer é o pai ou a mãe ou ambos, caso ambos se portem como pais, o que não é o caso do pai de Maria.  A mãe pensou muito.  Maria tinha quatro anos quando o avô a levou pela primeira vez à Feira da Golegã e lhe comprou um cavalinho de plástico.  Por volta dos seis começou a pedir para montar.  Monta desde os sete.  Quantos pais podem gabar-se de ter uma filha que, aos 14 anos, sabe o que quer ?"  "Ela está feliz em Portugal ", percebe a mãe.  "É  uma rapariga da terra.  Gosta de tomar banho na nascente, de ir à terra com o avô, de alimentar as galinhas, os perus e as ovelhas.  Se tiver equitação, passa horas a limpar as cocheiras."

Que não haja equívocos.  As famílias, sublinha o sociólogo Manuel Villaverde Cabral, não são democráticas, embora sejam menos autoritárias, menos impositivas, do que há 30 ou 40 anos.  As idades continuam a pesar, até "pelas diferenças de formação e do papel que cada grupo etário desempenha na sociedade e dentro da própria família."

As relações entre as gerações podem variar conforme a classe social, a zona de residência, o posicionamento político, a escolaridade, a orientação sexual e outros factores.  O uso do telemóvel, porém, será quase sempre um ponto de descontinuidade.  Dir-se-ia que os mais novos não se cansam de o usar.  Mandam em média 100 mensagens de telemóvel por dia - segundo um estudo feito pelo Instituto Superior Técnico e pelo Instituto de Telecomunicações no ano lectivo de 2010-2011.  Às vezes, parece que querem só testar o canal de comunicação.  "Estás aí ?"  "Onde estás ?"  "Está tudo bem ?"

Quando Mónica era adolescente, havia dois telefones lá em casa e ambos tinham um cadeado a impedir chamadas não autorizadas.  Qualquer conversa podia ser ouvida.  Agora, Maria tem telemóvel na mão e destreza nos dedos.  O avô, de 68 anos, a avó, de 62, adoram-na, mas não compreendem aquela ligação à máquina.  Os pedidos para sair são outra tormenta.  Têm medo que algo lhe aconteça.  A mãe explica-lhes " que tem de se confiar, que ajuda soltar a corda com limites."

Era outro o Portugal da juventude dos avós.  Há 50 anos, 91% dos casamentos realizavam-se sobre a égide da Igreja Católica, o marido provia o sustento e ditava as regras ;  a mulher era responsável pelo governo da casa e, tal como os filhos, devia-lhe obediência - só 18% delas trabalhavam fora.

No calendário das relações entre gerações, vale contar um antes e um depois de Maio de 1968, que começou por ser uma contestação estudantil em França e se tornou  no que Villaverde Cabral descreve como " o cume do movimento antiautoritário que varreu o mundo".  Nos países democráticos e não só, " a contestação da família patriarcal, da repressão sexual e das desigualdades de género fizeram diminuir o autoritarismo."

Depois de 25 de Abril de 1974, Portugal tratou de recuperar o atraso.  As mulheres atiraram-se de cabeça para o mercado de trabalho.  Diminuíram os casamentos, aumentaram os divórcios, diminuíram os nascimentos, aumentou a esperança média de vida.  É essa, resume Villaverde Cabral, " a modernidade da sociedade actual.".  Com tudo isso " a noção de família foi perdendo a sua personalidade masculina autoritária."  e a própria família perdeu muito do seu peso " como referência social e mesmo pessoal."

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