terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

NA ORFANDADE DE UMA HISTÓRIA TERMINADA ...




A gente lê um livro e convive com aquelas histórias e aquelas personagens, tão de perto, que lhes partilhamos os estares, os sonhos, as inquietações, os sobressaltos ... a vida !
Conhecemos por dentro e por fora as suas personalidades, conhecemos os seus gostos e projectos, as suas formas de reagir, conhecemos até os seus tiques.

E enquanto lemos o livro, todos os dias os visitamos, todos os dias os escutamos, com eles nos confrontamos e dividimos tempo.
E é de tal forma o convívio, a cumplicidade e a promiscuidade até, que hoje ficamos leves e bem dispostos, amanhã pesados e apreensivos, consoante o evoluir da narração, como se as alegrias fossem nossas, e as dificuldades também.

E um bom escritor, um bom narrador, um bom autor, é aquele que consegue com as suas letras, transportar o leitor e levá-lo a mergulhar totalmente na sua ficção, por forma a tomar aquela história como sua, e por forma a que através dela, se deixe arrancar da sua, dele, realidade, se deixe alienar da sua, dele, vida !

Essa é, portanto, a componente lúdica de um bom livro : o saborear alternativo do seu enredo, o despiste do sonho e do devaneio na pertença que estabelecemos com aquela narrativa, a capacidade de ela nos expurgar da nossa verdade às vezes tão insatisfatória, criando-nos asas na mente e no coração, e depois a ilusão desenhada, de que ali, ao nosso alcance, está gente, existem sentimentos, pululam emoções.
Afinal, tropeçamos em figuras que se nos tornaram quase familiares. Gente que se tornou quase nossa também !

Depois, um dia o livro acaba.  Chegamos ao fim daquela história.
O autor fecha-nos a porta, com um último imperativo ponto final.
É como se chegássemos, nos instalássemos prontos a desfrutar, a degustar de novo, a mergulhar mais um pouco, é como se chegássemos, prontos a convocar aquela gente que já deambula nas nossas vidas, a assobiar para reunir uma vez mais ... e todos tivessem partido sem deixar aviso, sequer um cartãozinho de despedida, sequer um "ciao" ...

É assim uma espécie de traição, insuspeita e não anunciada.  Uma espécie de injustiça que como todas, sentimos imerecida.
E ficamos "desasados" ... é o termo.  Ficamos "órfãos" e ficamos sozinhos.
E um sentimento de privação, de solidão, quase de fraude, toma-nos conta.
Bolas ... Para onde foi toda aquela família tão nossa ?!  Como ousaram obrigar-nos a fechar a contra-capa, a subir à prateleira para largarmos aquele livro ao rigor do pó e dos anos vindouros, como se atreveram a ignorar este desamparo incómodo de termos de iniciar uma nova história, de termos de começar tudo outra vez ?!

E tal como na vida, ainda levará tempo para que saiamos pela porta dos fundos...
Ainda levará tempo, seguramente,  para que dispamos a roupagem da peça ora terminada, e tenhamos o espírito devoluto, desarmado e receptivo a um outro quotidiano que nos seja credível, que nos faça sentido !...

Anamar

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