segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

" COMO AS ÁRVORES ... "





Ontem à noite chovia de mansinho.
Chovia com aquela preocupação de não assustar ninguém.  Eram antes, um afago, as gotas que tocavam a vidraça.
Tudo sereno, em bicos de pés, como alguém que se sesga pela frincha da porta, despercebido, sem alvoroço ou turbulência.
Havia apenas um tamborilar leve, uma melopeia ... quase uma música.

Hoje o dia amanheceu despudorado de céu azul, luminoso, com sol a esbaldar-se por aí.  Um glorioso dia de Fevereiro, mês generoso que parece prometer uma Primavera que ainda não dobrou a esquina.
Enquanto iluminou os bancos, arrecadei-o para mim, numa tentativa de que, penetrando até à alma, me aquietasse o coração.

A minha mãe já não tem olhos para o sol.  Silenciou por dentro em definitivo.  Iniciou o caminho, também ela em pezinhos de lã, discretamente, para não perturbar ninguém ...
É um percurso lento, bem vagaroso, sempre olhando para trás, por cada passinho que avança.
O seu caminhar lembra a lentidão de um gato ronceiro, esgueirado pelos telhados.  Lembra o esvoaçar silente do passarinho que vai deixar o ninho ... porque chegou a hora.

A minha mãe, não vai ... está indo ... todos os dias um pouco mais, todas as horas lhe encurtam a caminhada.
Assumidamente.  Acho que agora, assumidamente.  Com aceitação.  A aceitação da inevitabilidade do cansaço da jornada.
Encerrou as portadas.  Reuniu os pertences que vai transportar consigo, pingos de amor e de entrega.  Olhou ainda os seus, uma vez mais, pelas frestas de umas pálpebras que se esforçam por se manterem entreabertas, a espaços ...
Os olhos opacizados não têm já força, vontade ou expressão.  A minha mãe está extenuada e só quer paz...

Mas o coração ainda bate, num corpo que já não é.  Que foi deixando de o ser, momento a momento.
O simulacro de gente que está naquela cama retira-lhe a dignidade de uma partida como ela mereceria, como ela pedia, como ela acreditou ...
A injustiça incompreensível da vida, ergue-nos a piedade, mas ergue-nos muito mais a revolta e a raiva.
E a não aceitação ... por nós ... aqueles que a conheceram de perto.
A minha mãe mereceria sair de cena em grande estilo.  Como as árvores ... tal qual como as árvores, erectas, firmes, quase eternas, como os sobreiros ou as oliveiras do seu Alentejo
E protectoras, generosas ... regaço e berço ...

Olho-a longamente, e conversamos em silêncio.
Ela não me fala. Eu não lhe falo.  Mas o código do amor transporta aos corações as nossas longas "conversas" . O código dos afectos, só quem o sente o entende .
E eu sei que há um legado imortal que ela me deixou : o seu entusiasmo perante a vida, a sua resiliência perante as adversidades, o seu encantamento pelos laços do coração, a sua dádiva e entrega em generosidade ímpares, e a sua suprema alegria de VIVER !

Já tenho uma infinita saudade da minha mãe ...
E sei que daqui para a frente, sempre que eu não consiga ver o sol sorrir-me, olharei mais atentamente, e vou perceber  como é uma bênção continuar por aqui a poder olhá-lo ...

Anamar

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