quinta-feira, 4 de outubro de 2018

" SAUDADES "




Hoje amanheci com saudades.
Deve ser este tempo amodorrado e insuportavelmente quente ainda.  Deve ser este silêncio que me navega do coração para os pulmões, dos pulmões para os olhos, passando pelo estrangulamento sufocante da garganta ... E desta para a alma ... que só sinto e não sei de que lado fica !...
Sei que sinto saudades, de tudo e de nada, de muita coisa e aparentemente de nada em especial.
Ou então sinto saudades do impossível, que é definição onde cabe tudo.

Ah ... percebo sim ... percebo sentir uma nostalgia mortal da minha juventude.  Do tempo em que parecia ter braços para envolver os sonhos ... mesmo que eles tivessem o tamanho do mundo.
Dos tempos em que eu podia, em que eu segurava a vida, em que eu desafiava petulantemente o futuro.  Porque ainda existia muito amanhã.  Porque eu ainda tinha força, e sabia lá eu da estrada que me esperava e que me seria dado percorrer !!!...
E por isso, sabia sorrir ...
E acreditava que ainda tinha muito, e doce caminho a palmilhar.  Com garra, com voluntarismo, com esperança ... com vontade !
O que é que me foi acontecendo ???  Será só a vida a passar por mim, ou será uma incapacidade nata de resistência, de arcaboiço, de resiliência ?!

Percebo saudades do colo da minha mãe ... Como se a minha mãe ainda me pudesse dar colo ...
Mesmo quando pouco já lhe podia dizer, a ternura da sua mão a passar no meu cabelo e a doçura do seu olhar, eram o colo que me bastava.
E sim ... era como se um embalo me tirasse as dores da alma.  Era como se as portas de um ninho se abrissem para me albergar ...
Acho que só colo de mãe nos transmite este sentir de segurança, esta reposição de ânimo, protecção e coragem ...

Bom ... hoje amanheci com saudades.
Acho que saudades de mim, apenas.  Quando não estava tão cansada como agora.  Quando  geria  a minha  história  com  determinação,  com  garra,  com  irreverência,  com  loucura ...
Porque esta sempre me fez falta para colorir os dias.  Porque sempre odiei as rotinas, o previsível, o igual ... o insossamente enquadrado ...
Mas isso era quando eu vivia, e sabia rir do meu viver.
Hoje arrotinei-me, acinzentei-me, tornei-me enjoativamente desinteressante, porque deixei de fazer a diferença.  E a diferença conferia-me exactamente a capacidade da extravagância, da originalidade, do incomum. A diferença era a minha graça.  A diferença tornava-me poderosa. Não para os outros, nem pelos outros. Mas por mim. Porque me fazia sentir viva ... simplesmente.

Hoje amanheci com este raio desta sensação de claustrofobia no peito. Não consigo definir concretamente o que me falta ou o que tenho a mais, nos dias da minha vida.
Sinto-me absurdamente exigente face a ela.  Sinto-me atontadamente impreparada para vivê-la.  Sinto-me angustiadamente trapaceada pelas voltas com que me surpreende.  E injustiçada ... de certa forma ...
E em suma, na verdade sinto-me envergonhada, talvez ... Talvez essa seja a definição mais correcta, pela desfaçatez com que simplesmente me sinto injuriada por experimentar estes sentimentos ...

Oiço a voz de uma das minhas filhas, no seu saudável e jovem pragmatismo ... que se afigura como uma espécie de eco de consciência : " Tu falas é de farta.  Tens sido uma "sortuda" na tua vida !  Falta-te é uma boa razão que te dê razão às queixas de que na verdade não padeces ...  Vê se acordas!"...

E  este  eco, vira  marteladas  na  minha  cabeça.  Detesto  dar-lhe  razão.  Mas  será  que  a  tem ???!!!

Hoje acordei com saudades.  Droga .... é quase noite, e elas ainda não partiram ...

Anamar

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