segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

" A PASSAR UMA CHUVA ... "




Os pássaros já gorgeiam lá fora.
O céu bem limpo, de um azul translúcido, reflecte um sol claro e luminoso, de beleza ímpar, como só o é, o sol de Inverno.
Os dias, reiteradamente secos, com uma ausência total de chuva, lembram o início de uma Primavera que ainda está longe de se anunciar.

Gosto destes dias mansos.
Um ano novo começou.  Mais uma maratona de trezentos e sessenta e cinco dias a reescreverem-se, se iniciou outra vez, com a normalidade de sempre, da mesma forma de sempre, com as expectativas de sempre.  A vida vai rolando, o paradigma vai-se repetindo, o tempo disponibiliza-se em cada vinte e quatro horas que sucessivamente se oferecem. Sem pressas.
As mesmas preocupações, problemas velhos tentando travestir-se de novos, sonhos antigos procurando  concretizações, esperanças mansamente adiadas.  Tudo calmo, tudo sem afobação, com a exacta noção de que, como se diz no Brasil, estamos aqui, simplesmente a "passar uma chuva "...

Talvez sejam os anos que já vivi, que me permitem olhar desta forma o que me rodeia. Com esta bonomia, sem exigência ou insatisfação.
Já não crio filhos, já não luto por emprego, já não tenho fasquias profissionais a alcançar, já não se me colocam desafios de afirmação social em nenhuma área ... porque neste momento bastam-me a "sombra e água fresca", no desenrolar dos meus dias.
Digamos que beneficio, sim, dos dividendos da plantação feita ao longo da vida.
As lutas pessoais, travadas inevitavelmente nos percursos de cada um, amainaram ou cessaram mesmo.  Somos o que somos, e nada mais temos que provar a ninguém !

Sinto-me como se caminhasse numa vereda serpenteante serra fora, no verde cálido da vegetação sonolenta.  Tudo amodorrado, meio entorpecido, silencioso ... Tão adormecido, que às vezes desconforta !
Sinto estes dias, estranhos.
Eu sei que vivemos a ressaca das festividades que terminaram ontem, no Dia de Reis.
Foi um tempo de emoções, foi um tempo de reflexões, foi um tempo de balanços, de deve e haver no trilho das existências, em que não conseguimos furtar-nos às avaliações, às recordações, às saudades.
Para mim, como já o referi vezes sem conta, foram particularmente dias difíceis.  Foi o primeiro ano em que a ausência física da minha mãe, se tornou real.  A sua cadeira à mesa, já estava vazia há alguns, poucos anos, mas a sua caminha quente, ainda lhe dava berço e conforto.  E estava ali, à distância de um beijo, de um carinho, de algumas palavras.
Este ano, o destino já lhe havia determinado outra morada, e o vazio cru e sentido, pairou.
Paira sempre, a cada momento, mas não me largou nestes inevitáveis dias.

Não sei se por isso, se também por isso, ando a pensar muito na morte.  Na morte e no sentido da vida.  Neste nosso estar aqui, a "passar uma chuva " ... algo sazonal, precário, efémero ...
Tal como a existência humana, tal como o lapso temporal que nos é destinado viver !
Rápido e curto como as chuvas que vêm e subitamente se vão, deixando a terra sumariamente molhada ... para secar logo depois, apagando os sinais da sua passagem ...

Não sei por que estes pensamentos me assaltam ... mas assaltam !
Até me assustam um pouco, pelo que sinto.  Parece que vivo como que a terminar tarefas.  Parece que não me vale a pena já, iniciar nada.  Só terminar o que comecei, para não deixar pendências.

"Deixar" ... repare-se ... "deixar" ...
Deixar, é pensamento de quem parte, de quem vai para algum lado.
Dou por mim a pensar que a colcha da cama já não vale a pena ser substituída, que já não vale a pena renovar decorações, por algumas se arrastarem pelas décadas, que depois do Chico e do Jonas, os meus gatos de seis anos, não haverá mais gatos novos a entrar em minha casa ... porque não haverá tempo para os proteger até ao fim ... E assim por diante ...
Vivo uma sensação de manutenção e só manutenção ... como se se tratasse apenas de pontas penduradas.  Aquelas pontas que só esperam remate, numa costura !

Olho a minha casa, divisão por divisão.  Sei-lhe as sombras e o sol que a penetra.  Escuto-lhe os silêncios, perscruto-lhe os ruídos familiares.  E vejo-me fora dela e dentro dela, quando for ... quando tiver que ser.  E vejo-me a perambular por ali e a vê-la, quando já não a puder ver.
Os gatos já não estarão, não haverá fruta nas fruteiras, nem roupa no estendal.  Tudo estará criteriosamente nos sítios do costume, os estores estarão na posição do costume, os raios de sol e as sombras serão as de sempre, nas horas de sempre.
Haverá apenas uma poalha ténue, dos tempos, sobre os móveis adormecidos.  A poalha que sempre é eterna e que sobrevive ... porque não é viva, simplesmente.
E eu gostaria que tudo assim fosse.  Embora  isso fosse absolutamente indiferente !

E lembro Pessoa.  E lembro a sua aceitação nunca interrogativa nem questionável ... Aprecio o seu pragmatismo, o seu desassombro e o seu desapego desprendido.  Real ... duramente real !

Eu ... eu devo ser pretensiosa ... ou tonta, porque me confundo, porque me dou importância.  Uma importância que não tenho.  Que ninguém tem.
Porque ainda me interrogo e doo, me indigno e espanto, ao olhar a vida indiferente, encolhendo os ombros, ainda  que um só dos seus grãos se tenha perdido, ainda que uma só das suas folhas se tenha desprendido das hastes ...  ainda que o equilíbrio, de alguma forma, se tenha rompido ...
O sol continuará a nascer e a por-se todos os dias em todos os recantos do mundo. As luas cheias chegarão a cada quatro luas. Virá o frio do Inverno quando findarem os calores da estiagem, a Natureza renascerá, reinventar-se-à  ...  Os brotos das Primaveras irão continuar a engalanar as matas, onde os pássaros irão acasalar.  As marés subirão e descerão "ad eternum", e os rochedos que as sabem, vão continuar a escutá-las.  O vento soprará, a chuva tombará, mansa ou bravia ... e tudo, exactamente tudo continuará da mesma forma, com uma simplicidade absoluta ... como Pessoa diz ...

Mesmo que eu não entenda !...


"QUANDO VIER A PRIMAVERA "


Quando vier a Primavera,
se eu já estiver morto,
as flores florirão da mesma maneira
e as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme

ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria

e a Primavera era depois de amanhã,
morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo ?
Gosto que tudo seja real e que tudo seja certo ;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.

Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.


                                                                Alberto Caeiro  in  "Poemas Inconjuntos "

Anamar

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