domingo, 30 de dezembro de 2018

" SAUDADES "



O ano que termina foi um ano com marcas inevitáveis na minha vida.

Mariza, no poema do seu fado  "A chuva", diz que "as coisas vulgares que há na vida não deixam saudades ... só as lembranças que doem ou fazem sorrir ..."
Hoje, para mim,  foi um dia mais, de lembranças que doem ou fazem sorrir ...  2018 esmerou-se até ao fim, recheado delas...

A minha tarde foi passada à cabeceira de uma cama de hospital, lá longe, no meu Alentejo, que guarda da nossa família quase  já só lembranças.  Das tais ...
O meu último familiar vivo, daquele clã  cujas raízes me prendiam à terra, sofreu um AVC em pleno dia de Natal. É uma prima direita ... é uma irmã para mim. Aquela que nunca tive.
É uma mulher razoavelmente mais velha que eu, é uma mulher só, a quem o destino sempre enteou.
Com uma história de vida muito sofrida, em que os escolhos e as dificuldades lhe atravancaram o caminho, foi uma lutadora, uma resiliente, uma mulher-coragem ... talhada lá, onde nascem os fortes ...
As vidas afastaram-nos fisicamente, pela geografia, pelas histórias, pelos percursos ... pelos destinos ...
Apenas fisicamente, porque a seiva circulante é a mesma, as memórias e as partilhas também.
Chorámos juntas, rimos juntas, lembrámos juntas tanto do tanto que ficou há muito, na curva da estrada !
E fizemo-lo enquanto deu.

Hoje, a minha prima desligou.  Rompeu com a realidade.  Assumiu o papel que acredito todo o ser humano assume, quando a recta é a final, e uma espécie de compaixão biológica nos toma.
Como que fechou cortinas, como que apagou luzes ... como que esticou o olhar para um indefinido ponto, de uma indefinida estrada !...
O quadro de Alzheimer, cuja patologia a vem progressivamente afectando, enfatiza ainda mais o desligamento de tudo o que a rodeia.
E a pessoa que hoje se encarquilhava naquela cama de hospital, só, rodeada dos fios, dos tubos, dos aparelhos que apitam, que piscam, que desenham as linhas de um coração que vai batendo ainda, sem que se saiba  porquê, não era já a minha "irmã" ...
Em tom sumido, balbuciando as palavras por entre o ofegar da respiração, sorrindo esmaecidamente, falou-me naturalmente da minha mãe, da própria mãe, de nós, quando crianças em casa dos avós, como se por ali estivéssemos todos, como se o ontem fosse o hoje, como se aquela árvore ancestral cujos ramos se estenderam, cuja folhagem foi esta que caducou aos poucos, ainda vicejasse e desse frutos ...
E eu, mantive como pude o ar de menina levada, igualzinho ao que fazia quando alguma diabrura me fazia acoitar no seu regaço ... Só uma que outra lágrima me atraiçoou ...

Voltei.  Voltei com o coração espremidinho e tão pequeno que caberia na cova da minha mão ...

E já sinto infinitas saudades.  Só as coisas que doem ou fazem sorrir, no-las plantam no coração ... tenho a certeza !

Anamar

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