domingo, 19 de janeiro de 2020

" SEI LÁ QUE NOME DAR A ISTO ... "




E o bando dispersou.
Eram muitas, há pouco, patrulhando lá de cima o que suponho ser bem desinteressante aqui por baixo ... um casario sem rei nem roque, uma floresta de betão com alguns assomos de verde, para fazer de conta.
Sei que gaivota não é bicho de jardim, não é bicho de floresta, mata ou serra.  Gaivota é bicho de arribas, de falésias a pique, de rochedos salpicados de sal.  Gaivota é bicho de azul, de rendilhados de espuma, de caramujos, de algas e de peixe de marés distraídas.
Adormece-se se a onda ajuda, pica a fundo sobre as cristas, se ela é rude e se impõe.
Gaivota é bicho de ser livre.   Perspicaz, atrevida e desafiadora, não entendo por que perde tempo a andar por aqui ...
Por essa razão perdoei à minha, que partiu há muito.   Partiu, mas levou-me com ela nas asas do sonho, para bem longe deste cativeiro ...

O céu hoje é um céu de Primavera, num glorioso dia de Inverno.  O seu azul diáfano, a sua luminosidade de doçura perceptível, o calor tímido do seu sol, é um doce envolvimento para o coração e para a alma.
Da janela, repousada em varanda de privilégio do meu sétimo andar, pouco se atreve a tapar-me o horizonte.  Pouco se atreve a escurecer-me a luz.  Pouco se atreve a boicotar-me o pensamento que se solta e voeja longe, mais e mais longe ... sempre mais além ...

O rasto de um avião aqui por cima, traçou uma linha perfeita na tela do firmamento.  Um avião, seja qual for, é um caminho, é um projecto, é uma viagem, é uma história.  Sempre é uma história na vida das pessoas. Uma história contada ou inacabada.
Um avião, é uma chegada e uma partida.  É um encontro onírico.  Para mim, sempre o é.
E lá vou eu ... atrás do rasto, atrás das asas ... atrás do sonho !

Vem aí a tempestade "Glória", dizem os serviços meteorológicos oficiais.
Que saudades dos tempos em que a voz de Anthímio de Azevedo, tudo simplificava no pequeno écran ...
As tempestades não tinham denominações absurdas.  Eram tempestades e pronto. O Inverno era o Inverno, com sabor a frio, a chuva, a ventos, mais ou menos fortes, dias seguidos ... os que fossem .
O Inverno eram as golas altas, os gorros fofos, as luvas que hoje esquecemos no fundo das gavetas.  Eram os pés encharcados, os guarda-chuvas partidos nas reviravoltas das esquinas. Eram as gripes, os espirros e as tosses persistentes.  Era o Vicks Vaporub que a mãe nos punha antes de dormir ...
O Inverno era o que abria as portas à Primavera, e esta ao Verão que antecedia o Outono, no tempo certo, sem surpresas ou desvarios.
As castanhas comiam-se assadas quando o S.Martinho nos batia à porta.  Os morangos e as cerejas assomavam com a doçura mansa da Primavera. As favas desciam-nos à mesa pelas Páscoas.
Era assim.  Sabíamos e esperávamos com gosto, com desejo, com alegria ... porque sabíamos que era exactamente assim !
As coisas eram conhecidas e seguras.  Sabíamos perfeitamente com o que contar, sem sustos ou atropelos. 
Hoje acontece tudo, sempre, em qualquer momento.  Perdeu a graça !...

Hoje sabemos muitas coisas.  Coisas de mais.  Aliás, sabe-se tudo, em tempo real.  E pasmamos com a evolução das tecnologias, com o avanço do conhecimento e da informação.
Mas morre-se nos hospitais, não da doença que lá nos levou, mas de uma bactéria residente, que parece estar ali, para abater quem entrou com uma apendicite ...
E morre-se, porque um inocente avião em rota comercial, é derrubado "por engano" por um míssil, no meio de confrontos absurdos e incontroláveis, em guerras políticas e fratricidas, comandadas de secretárias a milhares de quilómetros de distância.
E há fogos sem norte ou rumo, que devastam, destroem e matam, dia após dia ... homens, plantas, animais ... a Natureza sem defesa, consumida e reduzida a cinzas.  Seguem-se inundações catastróficas, num caos e num desmando que o Homem, afinal, não controla ou aquieta.
O planeta zanga-se.  Zanga-se e avisa.  Zanga-se e castiga.

O futuro mostra-se como as areias movediças do deserto, como as dunas móveis que se fazem e desfazem, à nossa frente ... incerto e duvidoso ... assustador !
O trabalho, o mérito, a isenção, o esforço, a verticalidade, parecem não garantir a dignidade e a realização de ninguém.  São outros os valores que movem o Homem de hoje.  São outros os "requisitos" garante da segurança nos dias vindouros. Os baluartes da sociedade são falaciosos, as estruturas que deveriam pugnar pelos seus direitos, e defendê-la das arbitrariedades que nela grassam, têm pés de barro e mostram-se ineptas, ineficazes e incapazes de proteger os cidadãos.
Manda o poder. Todo o poder ... material ou não ! Impõe-se sem escrúpulos.  De todas as formas de que dispõe.
Enfim, as tempestades vão muito além das meteorológicas !

Bem ... onde o pensamento me trouxe, numa viagem sem bilhete, intemporal e não programada !...
Comecei na minha janela, olhando o espaço sem limite ou fronteira, deitado aos meus pés, há algumas horas atrás ... e termino, quando o sol já faz as malas para dormir ... saboreando uma chícara aconchegante de café, de novo junto à minha janela, quando as gaivotas já buscaram guarida e só os pombos idiotas perambulam por aqui.
O plátano agora esquálido e esfíngico, despido da folhagem que ainda esperará para voltar, parece dormitar como os velhos à lareira.
De resto, o silêncio do fim de dia aproxima-se a passos largos.  Afinal, foi mais um dia de Inverno com um glorioso semblante primaveril !...


Anamar

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