quinta-feira, 19 de agosto de 2021

" HOJE FOI ASSIM "


Hoje assumi ser necessário retomar um pouco da rotina de outros tempos.  E por "outros tempos" refiro a era anterior à Covid, quando a vida parecia ter algum grau de normalidade.  Sabíamos então, mais ou menos, o que nos esperava nos dias que decorriam.  Sem grandes surpresas e de acordo com o delineado, planeávamos e cumpríamos, a menos que surgisse algum imprevisto.

Sempre fui muito uma mulher de rotinas.  As rotinas são, de alguma forma, uma almofada de conforto, um mecanismo de poupança de esforços, físicos e psicológicos. 
Nas rotinas as "surpresas", agradáveis ou não, poupam-nos mais, dando-nos tempo para estratégias de ponderação, aferição e solução. Teoricamente teremos mais espaço de manobra e protecção pessoal, face até a imprevistos.
Pode ser cómoda, porque diminui a entropia de que sempre somos escravos, mas pode ter uma vertente manifestamente negativa, também. De facto, a rotina pode ser profundamente entediante, por repetitiva, cerceadora da criatividade, da ousadia, do arrojo ... do colorido.
Submissos a situações rotineiras, temos tendência à acomodação, ao imobilismo, ao deixar correr.  Ou seja, desmotivamo-nos e acinzentamos os nossos dias.

E de facto, os meus andam numa mesmice, andam numa apatia e numa desinteressante realidade. São dias pantanosos, sem frisson, sem adrenalina, sem o combustível tão necessário ao impulso fundamental, para que em cada um saltemos da cama dispostos a fazer história com ele ...
E isso seria sinal de Vida.  O resto é uma modorra mortal, é um arrastar do mundo sem rumo ou glória !

Bom, e resolvi ir tomar um café "outdoor", que é como quem diz, ao café aqui da esquina.  Um café sem história, mas pelo menos fora das quatro paredes confinantes que diariamente me engolem mais e mais.
É um lugar que tem para mim uma conotação particularmente afectiva.  Foi café / restaurante de toda a vida, carismático que era, aqui da urbe.  Engraçado que ainda hoje, muita e muita gente quando o quer referenciar, o nomeia de acordo com o passado.
É um marco na minha estrada, portador de muitas e doces memórias.
Hoje, para mim é um espaço descaracterizado, e enquanto lá estou, deixo que me atravessem, como projectados na tela de um cinema,  tantos e tantos momentos, acontecimentos, rostos e palavras que também escreveram a minha história ... 

Assim, tudo se resumiu a descer, pegar no livro que leio, em papéis de rascunho para o que desse e viesse, e a carregar a ilusão de que a rotina arrastada iria finalmente ser alterada.
Tirando quatro ou cinco pessoas que faziam parte das tertúlias useiras e vezeiras do Pigalle e que deixei praticamente de ver, nada mais, só a absoluta sensação e certeza de que nunca mais nada poderá ser retomado, de que nunca mais reviveremos o que era, o que foi ... ou prosaicamente e sem nenhum espírito de novidade, que nunca mais seremos os mesmos, que nunca mais o que deixámos regressará ... ou dito de outra forma ainda, que o Tempo, essa entidade sádica, gozadora e castigadora, jamais será  reversível !

Entretanto, terminei o livro que andava a ler e que é uma biografia ficcionada de Florbela Espanca, e embora "grosso modo" conhecesse a história desta mulher inteira, sem baias ou limites na sua existência, desta mulher frágil, sonhadora e utópica que nunca desistiu de buscar e viver a autenticidade que acreditava dos amores e das paixões ... o relato da sua vida perturbou-me profundamente.
Ambas somos alentejanas, ambas conhecemos o cheiro da charneca em flor,  sabemos do silêncio audível do vento nas searas,  do canto desgarrado das cigarras na canícula ardente dos Verões ... e ambas sabemos da linguagem utópica da efemeridade dos afectos, sempre prometidos e sempre incumpridos.  
Ambas conhecemos o peso das solidões, dos sonhos pousados nas cabeceiras por cada manhã que desperta;  da força dos destinos cruéis remando em marés e mares alterosos ... mas também das ilusões entretecidas na espuma de ondas que se desfazem, engrossando novas ondas que renascem ... porque a esperança, apesar dos pesares, talvez ainda nos habite o sangue ...
Ambas pertencemos e não pertencemos a este mundo. Sentimentos iguais em épocas diferentes ...
Ambas norteamos o coração com a luz da liberdade, inalienável ... só ela guiando os nossos caminhos ...
Mas sobretudo, ambas conhecemos uma linguagem universal, que é ponte, é veículo, é corrente : a força da poesia, a verdade das palavras, o alinhar das letras na construção dos sentires ...
No único livro que até hoje publiquei, " Silêncios", livro de poesia que veio a lume em 2017, há uma referência a Florbela com uma citação de um dos seus sonetos, e que deixo aqui, em jeito de homenagem, como epílogo deste meu post :


                                          " Sou talvez a visão que alguém sonhou
                                             Alguém que veio ao mundo pra me ver
                                            E que nunca na vida me encontrou ! "





Anamar

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