quinta-feira, 30 de junho de 2022

" O ESPÍRITO DA COISA ..."

 


Dei-vos conta da iminência de uma viagem, uma outra viagem, nesta incessante busca de qualquer coisa que eu própria não defino.  
Elas, as viagens, são a necessidade de colmatar um qualquer vazio que sempre me atormenta, a ânsia de encontrar alguma coisa ou de repor apenas coisas que já senti, já experimentei ... já vivenciei !  Como se alguma vez, as coisas se pudessem repetir no tempo e no espaço !...

Sei que se ousa dizer que a mesma água não passa duas vezes debaixo da mesma ponte ... e não estou equivocada. Sei exactamente que o que na verdade busco é o reencontro comigo mesma, naquela que eu era há anos atrás, a minha alma e o meu coração remoçados, a reposição do meu entusiasmo, e da minha alegria de então ... como se isso pudesse ser possível ... 
Sei exactamente que o que na verdade busco é a capacidade de sonhar outra vez, como então, é a adrenalina que me tomava e me projectava oniricamente em cada viagem que fiz ... é a juventude e a garra que se perderam nos tempos e que já não detenho mais ...
Essa sim, a utopia com que me trapaceio !... 
E alegro-me, e engano-me conscientemente, e iludo-me como a criança a quem calamos o choro com uma guloseima ...

Por isso, nos últimos tempos tenho viajado muito mais, com uma urgência sentida ... como se não houvesse amanhã !  E nada é o que foi ...

As viagens somos nós, mas são sobretudo os contextos em que as fazemos.  De acordo com as vivências em que mergulham, assim nos representam e transmitem emoções diversas.
Neste momento refugio-me no que olho, no que admiro, no que cheiro ... As cores e os aromas embriagam-me, os silêncios acariciam-me, e é como se conseguisse desligar-me totalmente do que me envolve, de quem me envolve ... Fico eu, apenas eu, como se sozinha comungasse da envolvente que me embala ... e nada mais me interessasse. Como se não existisse mundo à minha volta, como se a minha linguagem interior fosse intangível, impenetrável, inalcançável ...
E é isto que experimento em cada momento, em cada volta de caminho, em cada horizonte desenhado,  em cada sensação que me sufoca ...
Não divido, não partilho ... guardo p'ra mim, aferrolho no meu peito tudo o que acho ser único e inatingível por outrém ... Ele é o espólio do que experiencio, no pedacinho de mundo cujas portas encerro de seguida ...
Por isso, busco primordialmente a natureza p'ra mergulhar, p'ra me entupir, p'ra me alienar ... p'ra me extasiar ... em silêncio ...

E pronto, é neste contexto que vou, que parto uma vez mais, como se tivesse encontro marcado comigo mesma  na miragem que espreita por detrás daquela duna ... ou pudesse voltar a aspirar o aroma adocicado das flores dos trópicos, ou pudesse virar outra vez a ampulheta brincalhona dos tempos !...


Anamar

terça-feira, 28 de junho de 2022

" RETORNANDO ... "



Ora bem ... já aqui não vinha há um ror de tempo !
Sempre me penitencio pelo facto, sempre me culpo, me acuso por talvez não me esforçar ... bla bla bla ... mas o facto é que eu própria não consigo entender a situação ... entender- ME sobre a situação.
Não tenho assunto sobre o que escrever, não valorizo o que escreveria.  Sempre entendo que se escreve sobre tudo, que se escreve de qualquer forma sobre tudo, o que logicamente me desmotiva a fazê-lo, pois ou valeria realmente a pena, por qualidade, novidade, assertividade de algo que eu debitasse, ou ... já tudo foi explorado, dissecado, abordado por quem tenha na verdade "autoridade" na matéria.

Bom, talvez nada mais seja do que um reflexo de uma certa indiferença e passividade minhas, face à vida nos últimos tempos, em que claramente dobrei uma qualquer esquina na minha estrada.  Sem uma justificação, sem uma razão, sem um motivo objectivo, parece que passei apenas a deambular ou pairar por aqui, e não a viver, ou a ser intérprete e actora do meu próprio destino.
Poucas coisas me movem, poucas coisas me aceleram os batimentos cardíacos, poucas coisas me mexem os interiores, como se a minha capacidade de emoção, de emaravilhamento e de entusiasmo, estivesse embotada. Parece que enfiei por mim abaixo uma qualquer carapaça, um revestimento de distanciamento, indiferença e insensibilidade face ao mundo onde vivo.
Em suma ... anestesia ... parece que efectivamente a minha quota de sensibilidade perante as coisas, as pessoas, os acontecimentos, está objectivamente anestesiada.  
Até os sonhos deitaram p'ra sesta e se esgalgaram por aí ...

Bom, entretanto muitas e muitas coisas foram acontecendo neste meu período de ausência literária.

A guerra, a maldita guerra na Europa, contra todos os vaticínios iniciais, perdura e esboroa diariamente um país totalmente esfrangalhado e em pedaços.  Pouco haverá já para destruir, não se consegue entender a devastação infligida a pessoas e bens. Não se consegue sequer imaginar em boa verdade, o genocídio a que aquela gente foi e é submetida !
E tudo continua em aberto, a desproporção militar de homens e armamento entre o exército russo e as forças ucranianas é absolutamente abissal, o que torna totalmente insuficiente toda a ajuda disponibilizada pelo ocidente.  Enquanto isso, o sofrimento, a dor, o horror em suma, continuam a alastrar em pleno Séc. XXI aqui, no velho mundo!
Mas também tudo isso já não motiva como no início, o cidadão comum dos países espectadores !
É injusto mas natural, creio.  O ser humano é exactamente assim ... infelizmente ...

Entretanto, uma das coisas que ainda e sempre me empolga, é a possibilidade de viajar.  É sempre algo gratificante, preenchedor, emocionante, poder conhecer algumas micro-fatias deste nosso planeta.  Poder partilhar novas realidades, experiências inovadoras, contactar novos lugares e novas gentes.  Fugir daqui, fechar a porta e acordar lá, onde quer que seja, a muitos e muitos quilómetros de distância, lá do outro lado do Mundo, vivendo realidades totalmente distintas das desta vidinha cinzenta e igual que diariamente arrastamos pelo meio das mesmas rotinas ...
Uma viagem um pouco diferente do estilo que costumo privilegiar, desta vez ainda assim uma viagem a que apus reticências no início, e de que viria a gostar muito no lavar dos cestos.  
Itália ( Nápoles, Pompeia, a Ilha de Capri ), com o sul e a sua maravilhosa Costa Amalfitana, desde Sorrento, Positano, Amalfi e Ravello, haveria de encantar-me e surpreender-me, bordada e engalanada que é, encosta acima, e onde o colorido das habitações encarrapitadas a pique sobre as escarpas do Mar Tirreno, lembra um presépio que contrasta com o azul intenso das águas serenas a seus pés !

Agora, nova viagem se aproxima.  Dentro de poucos dias novo sonho começará a concretizar-se.
Uma ingressão num continente onde ainda fui muito pouco, servirá para que eu mergulhe no místico coração de África.  A Namíbia, da savana ao deserto, a Costa dos Esqueletos ou as míticas dunas de areias vermelhas contrastantes de sombras e luz, esperam-me com as cores, os cheiros e os pôres-de-sol inesquecíveis e inigualáveis, que só África sabe proporcionar ...
Quem viu o filme "África minha", saberá do que falo
Será uma imersão numa natureza inóspita, num país com uma fraca densidade populacional, onde a terra é muita e as gentes são poucas ... com uma natureza versátil, indómita e imperativa !
Uma terra de silêncios, de liberdade, de horizontes longínquos, sem limites ou freios ... terra com princípio mas sem fim ...

" Viajar é mudar de roupa à alma "

        Mário Quintana

Falarei e contarei como foi ... assim o espero !

Anamar

sexta-feira, 13 de maio de 2022

" AS MÃOS "



Como sempre as minhas caminhadas pela mata, no meio do silêncio e da natureza, são momentos de introspecção, são oportunidades de, do nada e por nada em especial,  ir desfiando pensamentos avulsos que obviamente não têm que obedecer a razões, a lógicas ou a motivações especiais.
Vêm porque sim, perseguindo por certo algum impulso interior que não consciencializo ou descodifico.

Entretanto a mata, nesta Primavera instalada, fulgurante em todas as suas fascinantes manifestações, envolve-me docemente com uma natureza que esbanja beleza a rodos.  
O verde de tons diversos em cada planta, em cada árvore ou arbusto, o colorido de todas as flores que assomam em cada trilho ... flores não plantadas, não semeadas, apenas oferecidas pela generosidade da vida ... e os trinados de todos os pássaros que, de criação já independente, saltitam de galho em galho, em "conversas" de tons e "assuntos" diversos, fazem-me sorrir, extasiada que fico, a ponto de emudecer por falta de argumentação, veia ou vocabulário que os descrevessem ...
A perfeição, a harmonia,  a  ordem  são de tal forma inquestionáveis, que  talvez só o silêncio mesmo, as possam traduzir com eloquência !!!

Entretanto um ano transcorrido, já há de novo patos bravos nos dois tanques da mata.  Duas famílias de crias bem pequeninas ainda, nadam sob supervisão das progenitoras, no meio dos juncos, descontraídas e felizes !
A mata, como já contei por aí, é propriedade do Estado,  adstrita ao Regimento de Artilharia Antiaérea de Queluz, é portanto uma zona militar, disponibilizada ainda assim como zona de lazer e de prática de desportos da população de Queluz e Amadora. Situando-se na fronteira entre as duas cidades, é um pequeno pulmão verde , ao serviço destas duas comunidades.  
Ela é uma extensão do  Palácio Nacional de Queluz, que está ligado às vivências de três gerações da Coroa Portuguesa .
Este palácio, do século XVIII em estilo rococó, foi concebido como retiro de Verão de D.Pedro de Bragança, que se tornaria marido e rei consorte da sua sobrinha a rainha D.Maria I.
Depois da destruição pelo fogo do Palácio da Ajuda no século XVIII, tornou-se então residência oficial do príncipe regente D.João VI e da sua família, até que a mesma viajou para o Brasil em 1807, após a invasão de Portugal pelos franceses.
Veio posteriormente a ser um discreto local de encarceramento para a Rainha D.Maria, que padecia de loucura.

E lembrei-me das mãos ...
As mãos que são seguramente dos órgãos que mais inapelavelmente nos testemunham duma forma implacável, o tempo que já vivemos.  
O pescoço parece que também, mas as mãos, sem dúvida não nos deixam esquecer de nenhuma forma desse percurso.
À Teresa, nos seus cinco anos incompletos, faz muita confusão a flacidez e enrugamento da pele que as cobre.  Sentada no meu colo, com os seus dedos fininhos e minuciosos, olha longamente, apanha entre eles as dobras das preguinhas deste "papel" antigo, perscruta-me o semblante entristecido, acredito, e diz-me : " avó, tu tens as mãos assim, porque já és um bocadinho velhota ..."
E vendo o meu ar penalizado e impotente, sorri e diz-me : " estou a brincar, avó ... "
Bem se vê que a Teresa não alcança a dimensão da coisa ...

Guardo até hoje, com uma nitidez absoluta a imagem das mãos dos meus pais nos seus últimos tempos de vida, pese embora o meu pai já me tenha deixado há trinta anos e a minha mãe há quatro.
Lembro claramente aquelas "folhas de papel" ressequido, onde as pregas se multiplicavam e o azulado das veias serpenteava na transparência.  
Lembro a fragilidade preensiva, lembro a insegurança do gesto, lembro a falta da força no movimento ... lembro a leve e envergonhada tremura, no desânimo de se ostentar algo que já foi forte, robusto, potente, seguro ...  
Como se esses gestos titubeantes e imprecisos, carecessem dum pedido de desculpas, uma explicação para o tíbio movimento que se desenha, uma justificação para que aquela fortaleza, aquele pilar, aquele porto seguro, aquela amarra ... aquele tudo de amparo que tantas vezes nos ergueu do chão, já só fosse um esgar, uma tentativa ... uma desistência !...

São isso as mãos ... São segredos guardados, são histórias contadas, são caminhos trilhados, são memórias vivas ... sangrantes !
São vida ... mesmo quando já são morte anunciada !...

"Avó, tu tens as mãos assim, porque já és um bocadinho velhota !... " - a ingenuidade da boca inocente  duma criança !

Anamar

quinta-feira, 5 de maio de 2022

" MORRE LENTAMENTE ..."

 









                                                             SANTIAGO  DO  CHILE

                                                                " LA  CHASCONA "






Encerro hoje a narração da minha odisseia no Chile, no que foi uma viagem seguramente inesquecível na minha vida.

Tentei exaustivamente contar-vos o mais próximo possível da realidade, tudo o que vivi, tudo o que senti, todas as maravilhas duma natureza diversa e fascinante que me acompanhou desde o Atacama, aquele deserto mítico e mágico, no norte do país, em fronteira com o Perú, à Patagónia, lá onde Magalhães abriu rotas ao mundo ... passando pelos Lagos Chilenos, região de águas, bosques, vulcões, rápidos e obviamente de lagos ... de cores turquesa, de águas límpidas, transparentes e sonolentas ...

Talvez me tenha excedido na exaustão da narrativa, talvez tenha exagerado na pintura dos quadros ... talvez vos tenha maçado com a profusão de pormenores, de apontamentos, de informação ... de histórias ...
Só que, tenho p'ra mim que a beleza não deve ser exclusividade de ninguém, que as maravilhas oferecidas generosamente pela natureza não são pertença de alguns, que as emoções e sensações experimentadas, podem e devem ser partilhadas ...
Por isso, norteada por essa ânsia de vos levar comigo ( podendo apenas fazê-lo pela ponta do meu lápis e pela verdade da minha escrita ), pelo desejo de vos transportar através do sonho, pulando de fotografia em fotografia e de vídeo em vídeo ... talvez não tenha dado pela passagem do tempo e tenha acabado por vos maçar, no ímpeto de vos abrir a janela panorâmica que me deixou assomar por alguns dias !...

Termino hoje, e vou procurar ser mais sucinta e contida, falando-vos da capital, Santiago do Chile e de duas outras cidades relativamente próximas, como já disse : Valparaíso e a cidade costeira e importante porto marítimo de Viña del Mar, situadas lado a lado, sem bem percebermos onde acaba uma e começa a outra.
Santiago do Chile, com cerca de 7 milhões de habitantes numa área urbana de 720 quilómetros quadrados, foi fundada pelo conquistador espanhol Pedro de Valdívia, no Século XVI.  Sendo uma cidade de interior, é atravessada pelo rio Mapocho, um canal sem grande expressão que atravessa a cidade, e que alberga nas suas margens imagens chocantes de miséria social, com um amontoado de barracas e verdadeiros acampamentos de sem-abrigos que ali vivem, numa degradação que impressiona.  O lixo amontoa-se, as condições sub-humanas são, infelizmente, um triste cartão de visita para quem a pode olhar.
Santiago, nesse contexto, nada tem a ver com as restantes cidades que conheci. 
Punta Arenas, Puerto Natales, Puerto Montt, Puerto Varas, Valparaíso ou Viña del Mar, são cidades organizadas, preservadas, limpas ... cidades "arrumadas" e bonitas, que parecem convidar os visitantes para que fiquem e usufruam as suas agradáveis condições de habitabilidade.

Santiago é uma grande metrópole, guardando em si traços claros do colonialismo espanhol.  Atravessou histórica e politicamente períodos conturbados como todos sabem, e mostra claramente acentuadas clivagens, com grandes assimetrias económicas e sociais.  É uma urbe em permanente convulsão política, com evidentes manifestações e contestações, percebendo-se claramente uma latente instabilidade social.
A zona histórica da cidade conserva uma arquitectura bonita e preservada, dentro do possível. Não esqueçamos que o Chile vive a turbulência geofísica da confluência de placas tectónicas, que volta e meia desencadeiam sismos cuja magnitude é responsável pela destruição severa das construções.
O maior terramoto registado no mundo ocorreu a 22 de Maio de  1960 e teve 9,5 pontos na Escala de Richter, tendo arrasado a cidade de Valdívia a mais de 700 km da capital, tendo esta ficado igualmente muito destruída.
Nas zonas limítrofes existem os bairros das elites, onde as construções modernas de qualidade, com  arranha-céus de manifesto bom gosto, atestam que o Chile caminha rumo ao futuro ! 
Aí fica situado o edifício mais alto da América do Sul, a Gran Torre Santiago, com 300 metros de altura e sessenta e quatro andares !

A pouco mais de cem quilómetros de Santiago, para noroeste, caminhando para a costa, encontrei Valparaíso, uma cidade absolutamente carismática, singular ... única !
Cidade de artistas, típica e inigualável, distribui-se em cor e em beleza ao longo das diferentes encostas, os "cerros", onde as casas coloridas se encarrapitam, sobranceiras a miradouros, ladeando ruas estreitas, encimando escadinhas tortuosas ladeira abaixo.
É uma cidade de luz, com uma claridade estonteante, é uma galeria de arte ao ar livre ... 
As suas paredes, muros, até mesmo o chão, são revestidos de pinturas de autores anónimos, absolutamente fantásticas.  A "street art" é um meio de veiculação não só da arte visual "de per si", mas também como meio de propaganda social, política, ecológica.  Desta forma, cada cantinho é um alerta, uma contestação, um recado silencioso, uma sensibilização ... através de imagens, cor, beleza e poesia !

Fazendo jus a todas estas potencialidades de Valparaíso, Pablo Neruda haveria de escolhê-la para aí construir uma casa inspiradora, seguramente.  No "Cerro Bellavista", "La Sebastiana", com uma vista de tirar o fôlego sobre a cidade, seus morros e encostas, seus desníveis e socalcos, seus miradouros debruçados, é, também ela uma casa de escadinhas, de pisos e patamares, mas sobretudo de fachadas envidraçadas que não limitam, não cingem e não amordaçam tanto da beleza que os olhos alcançam !
É hoje uma das suas Casas-Museu onde tudo foi deixado como se o poeta tivesse apenas ido lá fora, espreitar os gatos ronceiros que dormem ao sol.  
Sobre a secretária, os manuscritos dos poemas como que ali esquecidos, recuam-nos no tempo, ao que foi ... ao que terá sido ...

Em Santiago, "La Chascona", construída em 1952 em celebração ao seu amor por Matilde, "A Descabelada" ( la chascona ), sua última esposa, inicialmente sua amante, é outra das Casas-Museu que deixou para a posteridade.  Igualmente fascinante !  
Muito pouco "museu" ... muito "casa de gente"... conserva em cada recanto, em cada peça exposta, na mesa pronta que parece aguardar chegadas ... no banco de ferro debaixo dos arbustos ... no copo que ficou por beber ... o cheiro adivinhado do romance, o cheiro da paixão ... o cheiro mesmo da devoção!...

Finalmente viria Viña del Mar, cidade costeira, onde se localizam as melhores praias para os santiaguinos.  "Cidade Jardim", recebe-nos com o icónico "relógio de flores", ponto de paragem obrigatório para a fotografia da praxe !
Assim conhecida por estar rodeada de áreas verdes, é nesta cidade cosmopolita que se encontra a residência de Verão do Presidente do Chile, o Palácio de Cerro Castillo, em cujos jardins é içada a bandeira do país, quando o Presidente ali se encontra instalado.
Como estávamos em período pascal, sábado de aleluia, a bandeira do Chile lá estava desfraldada ao vento ...

Bom, e fico-me por aqui.
Espero  que  tenham  apreciado  e  aproveitem ... visitem  o  Chile !  É  que  vale  mesmo  a  pena !!!...

Depois de Gabriela Mistral, primeira latino-americana e a primeira mulher americana a receber o Nobel pela sua obra poética em 1945, Pablo Neruda, grande poeta desta terra, viria a receber igualmente o Prémio Nobel da Literatura em 1971, também pela sua poesia.

É portanto, homenageando-o, que aqui deixo um seu poema que tudo tem a ver com o espírito deste meu trabalho ... o CHILE - do Atacama à Patagónia Chilena :


                                                              " Morre lentamente ..."




                                                                     VALPARAÍSO










                                                                   VIÑA  DEL  MAR







Anamar

terça-feira, 3 de maio de 2022

" A CAMINHO DO FIM ... CHILOTES, CIDADE DAS ROSAS E TUDO O MAIS ... "

VULCÃO CALBUCO
                                                                      VULCÃO OSORNO
OSORNO VISTO DE PUERTO VARAS
                                                             NO CUME DO OSORNO

Puerto Varas, cidade chileno-alemã fundada por colonos alemães, conhecida por "cidade das rosas" por esta flor lhe alindar as ruas e pracinhas, tornaria ainda mais espectacular esta minha passagem pela Região chilena de "Los Lagos".
Como já referi, a exuberância de todo o contorno natural desta zona do país, surpreende-nos a cada momento com o avistamento de vulcões, lagos fascinantes ( com uma intensa coloração esmeralda devida à suspensão do cobre nas suas águas ), rios exuberantes em ímpeto e cataratas ... ilhas, cordilheiras e bosques ...
De facto, 40% das exportações do Chile são o cobre, constituindo esta, a sua maior fonte de receita. É o maior produtor mundial deste metal ... mais de 5 milhões de toneladas/ano.
É explorado há pelo menos dois mil anos e os indígenas já o usavam há séculos.

A cidade de Puerto Varas fica nas margens do Lago Llanquihue, o segundo maior lago chileno e o terceiro maior da América do Sul.   Do lago pode observar-se o vulcão Osorno e o cume dos vulcões Puntiagudo, Tronador e Calbuco.  Este último teve a sua última erupção em 2015, depois de 54 anos adormecido.
Ao cume do Osorno, 1670 m, eu subiria mais tarde em cadeiras de montanha, desfrutando duma panorâmica de tirar o fôlego !
Igualmente inesquecível viria a ser o passeio de barco pelo Lago de Todos os Santos ou Lago Esmeralda, quase 200 m acima do nível do mar, situado a 76 Km da cidade e integrado no Parque Nacional Vicente Perez Rosales, o primeiro Parque Natural do Chile, criado em 1926.
Este Lago teria sido nomeado em 1 de Novembro de 1670, pelos jesuítas.  Ali nasce o espectacular rio Petrohué, que desemboca no mar, 36 Km adiante.  As suas cataratas, "Os saltos do Petrohué", deixaram-me fascinada.  Respira-se uma interioridade, uma cumplicidade silenciosa com tudo o que nos rodeia, um intimismo partilhado com a natureza no seu estado mais puro e genuíno !   
 
A viagem ao Chile não ficaria completa, posso dizer, sem uma visita à carismática Ilha de Chiloé, o maior território insular deste país, atravessado de norte a sul pela Cordilheira da Costa, e situado obviamente no Oceano Pacífico.
A Ilha Grande de Chiloé é a maior do arquipélago de Chiloé, composto por mais de três dezenas de ilhas, a maioria desabitadas, situado, como disse, ao largo da costa do Chile, na Região de Los Lagos e é a quinta maior em tamanho, da América do Sul.
A Ilha de Chiloé ou "terra das gaivotas", segundo os índios mapuche, foi classificada Património da Humanidade pela UNESCO.  É morfologicamente estreita e comprida ( 180 km  / 50 km ), é meio selvagem apesar de habitada, dispõe duma paisagem rude e tempo agreste, incerto e nebuloso.  Foi descoberta pelos espanhóis em 1540 e colonizada em 1567.
Os habitantes são chamados de "chilotes" e as duas principais cidades do território, Ancud e Castro (a capital ), revelam características assaz curiosas.  As suas casas palafitas em madeira, construídas sobre estacas apresentam paredes coloridas, pintadas com o remanescente das tintas com que os pescadores ( a maior parte da população ), pintam os seus barcos.  São habitações que resistem aos terramotos e às subidas das marés. Os seus telhados são de "tejuelas", telhas de madeira que encaixadas umas nas outras, isolam a construção.
Esta tipologia tão peculiar tornou Chiloé um ícone reconhecido mundialmente como património a preservar !
Existem ainda cerca de 70 igrejas seculares, espalhadas no arquipélago, feitas também em madeira, com a particularidade da sua construção não ter utilizado pregos, sendo as peças de madeira também apenas encaixadas umas nas outras.
Contudo Chiloé foi dos últimos territórios cristianizados, apesar da presença missionária no arquipélago. 
Os chilotes são um povo reservado mas hospitaleiro, arreigado a um misto de pragmatismo, religião e lenda.  Guardaram as crenças dos índios "chonos" e " huilliches", entretanto dizimados, e abraçam um misto entre o catolicismo e as lendas locais.
Pode dizer-se apropriadamente que o mar, a floresta, o tempo incerto e nebuloso constituem a essência deste lugar. Os campos cultivados e as colinas foram roubados à selva e à floresta nativa e cerrada. 
Vive-se fundamentalmente da pesca e da agricultura local, e a extrema humidade, a sombra e os pântanos fazem a natureza da ilha. Nada bule em Chiloé, a não ser as gaivotas !...

Desta visita, lamento apenas uma única questão :  os índios mapuche foram dos primeiros habitantes da ilha, que observando a abundância de gaivotas que grasnam todo o tempo, lhe conferiram o nome que detém, como disse.  Contudo, existe uma outra ave que passa pelo arquipélago para nidificar anualmente, na Primavera e Verão, que eu adoraria ter observado :  Os "Pinguins de Magalhães" vindos da Patagónia e os "Pinguins de Humboldt" vindos do Peru e do Chile aqui nidificam, nascem em Dezembro e as famílias partem em Março, ano após ano ... 
Como tal, já não os apanhei por lá ...

Bem, por hoje é tudo.
Amanhã abordarei o términus desta viagem inesquecível e mágica, falando-vos de Santiago e de duas outras cidades, Valparaíso e Viña del Mar, situadas a cerca de cem quilómetros da capital, igualmente imperdíveis no mosaico cultural surpreendente, que é este país "comprido e fininho" como diz o Kiko ...

                                                         PALAFITAS EM CHILOÉ
                                                            ROSAS EM PUERTO VARAS



Anamar

segunda-feira, 2 de maio de 2022

" AS MÍTICAS TORRES DEL PAINE "- SUL DO CHILE

 

                                                            "CUERNOS  DEL  PAINE"


O meu último texto deixou-me às portas do Parque Nacional Torres del Paine, como disse, Reserva da Biosfera pela UNESCO desde 1978, localizado entre a Cordilheira dos Andes e a estepe da Patagónia, ex-libris do Chile pela sua beleza e grandiosidade.

Mas antes de adentrarmos todo esse fascínio, visitei um lugar assaz interessante também : a Cueva del Milodón, uma imponente gruta com 30 metros de altura, 80 de largura e 200 de profundidade.  
Grande caverna habitada na pré-História por um tipo extinto de preguiça gigante, semelhante a um urso formigueiro, que por momentos podia assumir uma postura erecta e que habitou principalmente a zona sul da América do Sul. Foi o local onde em 1895 foram localizados e identificados ossos, excrementos e pedaços de pele muito dura, em excelente conservação, dessa espécie patagónica, o Milodón. 
Também foram encontrados vestígios de assentamentos humanos, que utilizavam estas "cuevas" como refúgio.
Tratou-se de um herbívoro com cerca de 3 metros de altura e mais de uma tonelada de peso, que viria a extinguir-se por volta de 3000 anos antes de Cristo.
O seu habitat natural estabeleceu-se sobretudo nas encostas com bosques, das montanhas patagónicas.
A moldura vegetal circundante da caverna, bosques de coihues, lengas, calafates e tantas outras espécies, nesta altura do ano em que o Outono se avizinha, engalana-se de amarelos, laranjas, ocres ... castanhos, doces e quentes que ainda tornam mais belo tudo quanto os olhos alcançam !...

Bom, e progredindo então nesta região dos lagos, surgem no horizonte os colossais afloramentos de granito e rocha, de fama mundial, brincando no meio das nuvens dançarinas que sempre os desvendam e escondem, de acordo com a vontade do vento : os Cuernos del Paine vistos numa perspectiva, e as Torres del Paine noutra volta do caminho, se as nuvens o permitirem.  E permitiram !
Tendo aos pés a Lagoa Amarga dum azul faiscante, tendo sobre as cabeças um céu límpido e luminoso onde os condores patrulham toda a extensão que os seus olhos vislumbram, e escutando em absoluto o soprar indómito do vento ... no meio duma luminosidade fantástica, as Torres surgiram definidas, desenhadas ... perfeitas ... inesquecíveis !

O Parque Nacional Torres del Paine conserva frágeis ecossistemas onde habitam muitas espécies de mamíferos que aí encontram condições de habitabilidade privilegiadas.  A abundância de água propiciada pelos lagos Sarmiento, Nordenskjöld ( cujo nome advém do sueco que o descobriu no início do século XX ),  as lagoas Amarga já referida, a Azul, os lagos Pehoe e Grey com o seu glaciar de 4 Km de largura e mais de 30 m de altura ... são maravilhas que espreitam a cada volta de estrada !

Regressei então a Punta Arenas, em pleno estreito Magalhânico.
O estreito de Magalhães, uma passagem natural que atravessa do Atlântico ao Pacífico, era conhecido como Cola do Dragão pelos primeiros navegadores portugueses do Século XV, até que em 1520, o lusitano Fernão de Magalhães se atreveu a navegá-lo de facto, tendo-lhe mudado o nome para Estreito de Todos os Santos por tê-lo feito no dia 1 de Novembro.
Fá-lo-ia a serviço da Coroa de Castela ( rei Carlos I ), por recusa do monarca português D. Manuel I, a quem oferecera os seus préstimos.  
A viagem de circum-navegação ao Globo, de 1519 a 1522, na qual Magalhães encontraria a morte, assassinado nas Filipinas em 1521, seria consumada por Sebastián del Cano que assumiu o seu comando , tendo retornado a Espanha ao leme da nau Victoria, a única que terminaria, ilesa, a expedição ! 
Esta viagem integrava o contexto das viagens de descobrimento, expansão marítima que demandava as Índias, na busca das especiarias.
O estreito acabou finalmente tendo o nome do aventuroso navegador.  Mesmo situando-se perto do  extremo sul do continente americano, o Estreito de Magalhães ainda assim, é preferido na navegação, em detrimento do contorno da Terra do Fogo ( assim chamada pelo marinheiro, por conta das fogueiras dos indígenas, avistadas a partir dos barcos da expedição ) e do gelado Cabo Horn, conhecido pelas tempestades que o assolam.
Não esqueçamos a inexistência, ao tempo, do Canal do Panamá que actualmente  é o meio de comunicação marítima, preferido em rotas comerciais !

Em Punta Arenas visitei o Museu Nau Victoria, museu ao ar livre, junto às águas do Estreito, que alberga, além de outras réplicas, uma do navio comandado pelo navegador português ... ele, que foi o primeiro a circum-navegar o nosso planeta.

Continuei a percorrer a Região dos Lagos, detentora duma natureza fascinante com florestas, montanhas com neve, lagos cor esmeralda, ilhas e vulcões, cuja descrição jamais sequer se aproximará do contemplado, e de que falarei um pouquinho no próximo texto.
Agora, apenas as fotos e vídeos nos restam ... e depois, tudo aquilo que não há lente, objectiva, nenhuma tecnologia que capte, registe e fixe ... que é aquilo que nos fica na retina, na mente e no coração ! Ou seja ... aquilo que se viveu !!!

                                                                "TORRES  DEL  PAINE"


LAGOA  AMARGA
                                                                        MILODÓN


Anamar

quinta-feira, 28 de abril de 2022

" RUMANDO AO SUL " - PATAGÓNIA, CHILE parte dois


                                                                   
Glaciar  Balmaceda


Desde o Atacama, o sul do Chile me esperava.
Aterrando em Punta Arenas, o ponto mais austral que visitei, segui para Puerto Natales, na Patagónia Chilena, na região Magalhânica.  Novas emoções me esperavam.

A morfologia contornante mudaria abissalmente.  A água tão escassa e desejada no deserto, não falta por aqui, e a vegetação agora colorida com as cores outonais da estação que se iniciou, adocica e emoldura de cambiantes quentes, as encostas e o sopé junto aos rios e lagos que nos espreitam na paisagem.
Os bosques de coihues e lengas, os calafates de bagas vermelhas, base do famoso e saborosíssimo "calafate sour" e as estepes douradas e planas onde os rebanhos de ovelhas, lhamas e alpacas ( animais nativos domesticados ), mas também as vicunhas e os guanacos, sem casa ou dono ... constituem a moldura fantástica que nos rodeia.
O gelo dos picos nevados dos vulcões e o degelo dos glaciares que descem preguiçosos, mantêm bem vivos os Parques Nacionais, duma beleza indescritível !

Partindo a bordo de um ferry desde o porto de Puerto Natales, numa incursão através do fiorde "Última Esperança", progredimos pelo Parque Nacional Bernardo O'Higgins, emoldurado sempre de qualquer ângulo, pela cordilheira andina, para que pudéssemos visualizar o Monte Balmaceda com os glaciares Balmaceda e Serrano.
Bernardo O'Higgins  foi um proprietário de terras, um general e presidente do país, tendo sido um reconhecido líder na luta pela independência do Chile, nos fins do século XVIII, início do século XIX.
A História entretanto dá-nos conta de que os primeiros europeus a chegarem a esta zona datam de 1557, numa expedição com o objectivo de encontrar a entrada para o Estreito de Magalhães que obviaria à passagem do Pacífico para o Atlântico sem necessidade de se contornar o tormentoso Cabo Horn, ponta final do Continente Sul Americano.
O capitão expedicionário Juan Ladrilleros tendo ficado perdido nos inúmeros fiordes patagónicos, e cansado dessa tentativa, adentrou por este braço de mar como se realmente de uma "última esperança" se tratasse... 
Efectivamente não estava errado ... a passagem para o Estreito de Magalhães ficaria por aqui perto ...

Balmaceda surgiu e ficou-nos à distância de um braço, parecia, em descida pachorrenta para as águas do fiorde.
Acompanhados sempre por paisagens deslumbrantes, com os picos gelados em escarpas agrestes, com quedas de água montanha abaixo, com a visualização de aves e outras espécies marinhas no seu habitat natural e um céu fantástico que ora mostra ora esconde ... o vento gélido impiedoso não nos deixaria...
Mas nem o sentíamos, tão mágico era o contexto em que o barco deslizava ...
O glaciar Serrano escondia-se entretanto numa zona mais afastada, e a ele acederíamos por um trilho através da encosta.  Repentinamente, ele surgiria numa curva do caminho, tendo a seus pés um lago azulado de águas translúcidas do degelo, onde pequenos icebergs flutuavam como se de flocos de algodão se tratasse ...


Puerto Natales, esta cidade de interior donde havíamos partido, é uma cidadezinha pequena, residencial, aberta, arranjada, harmoniosa ... cidade de mar e vento, de gentes pacatas, percebe-se. 
As casas típicas, revestidas a madeira, com espaços verdes ao seu redor, desenvolvem-se em quadrícula, e muitos animais de companhia, gatos e cães proliferam nas habitações.
Seria fundada como cidade apenas em 1911, na onda de colonização europeia destas terras, ocorrida sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, depois da descoberta de ouro em algumas zonas da Patagónia, e início da tomada de terras aos índígenas, sobretudo para pastagens e exploração de gado ovino.
É a porta de entrada para o Parque Torres del Paine, Reserva da Biosfera pela UNESCO desde 1978 e ex-libris da Patagónia Chilena. Uma maravilha da natureza !...

Sobre este destino fascinante, falarei de seguida, nesta odisseia pelo hemisfério sul ...


                                                                    Glaciar  Serrano


Anamar

quarta-feira, 27 de abril de 2022

" EL CONDOR PASA ... " - CHILE, parte primeira



Segui para o Chile em viagem de lazer, a 5 do presente mês de Abril.  
Viagem marcada desde o início do ano, pesava-me agora na alma, como se ao fazê-la estivesse a cometer algo indigno, inadmissível nos dias que vivemos. Disse-o a algumas pessoas que jamais teria escolhido viajar, no contexto social que atravessamos, não conseguindo ignorar todo o sofrimento inenarrável experimentado por tantos seres humanos indefesos, vilipendiados, ultrajados, em sofrimento e dor absolutos, aqui ao lado, na Europa de leste.
Até à véspera de partir, a guerra tirou-me horas de sono, angustiou-me as noites e assustou-me os dias.  A impotência e o choque face a imagens que jamais suspeitaríamos poder visualizar, a incapacidade em conter a barbárie avassaladora e insensível, a brutalidade do Homem face aos seus semelhantes, indiferente à idade, ao género, à desproporção maniqueísta de forças, a violência gratuita usada indiscriminadamente no genocídio em massa levado pela Rússia sobre a Ucrânia, tirou-me vontade, disposição ... saúde ...

E parti.  
Parti, albergando em mim uma remota esperança : a de que o conflito pudesse ganhar tréguas, e que, ao regressar, o pesadelo já pudesse ter tido um fim !  Era o que mais ansiava e o que mais poderia ter-me deixado feliz !
Tal não viria a acontecer. E depois do pior, parece haver sempre algo que o supera, em grau e em género,  mostrando  que  o  ser  humano  não  tem  de  facto  limites  para  o  pior  de  si  mesmo !...

Assim o Chile, e nele o meu encontro com uma Natureza diversa e estrondosamente bela, afastou-me um pouco, do cabo das tormentas que atravessam, fustigam e devastam neste momento, o meu continente.

É um país de diferenças, com uma biodiversidade fantástica.
Aquele país "magrinho e comprido" como o caracterizou o meu neto, tem múltiplos rostos, se percorrido em comprimento, ao lado da cordilheira que o originou.  Os Andes, lá onde o condor  patrulha os céus, parece ostentar os seus picos nevados em permanência, apenas a uma "mão travessa" abaixo do avião que os sobrevoa.  
Fruto do conflito de três placas tectónicas, essa orografia esmagadora, define a fronteira natural com o país vizinho, a Argentina, enquanto que a Cordilheira da Costa, o separa do Pacífico, mais a oeste.  
Santiago, a capital, situada mais ou menos a meio da geometria geográfica, deixa para norte, até ao Perú a mítica extensão de solidão e sal que é o deserto do Atacama, paisagem lunar, onde qualquer resquício de vida parece não ter condições de existência. 
É um mundo dentro de outro mundo, o que os picos vulcânicos nos oferecem.  É uma magia muito particular, a experimentada a 5600m de altitude, na demanda da cratera do vulcão Tatio, um dos dois mil e muitos vulcões existentes em todo o Chile, dos quais mais de duzentos se encontram activos ... 
Os geyseres e as fumarolas atestam claramente que nas entranhas daquele solo, o planeta Terra continua bem vivo !
Deixando para trás S.Pedro de Atacama a 2400m de altitude e vendo nascer o sol por detrás de um dos picos vulcânicos, com temperaturas negativas, apesar duma luminosidade clara e transparente no dia amanhecido, foi  algo inesquecível !
É uma natureza bruta, selvagem, agreste, dominadora... 
Ali, o Homem confronta-se com a pequenez do seu "eu", com a insignificância real e objectiva da finitude da vida e experimenta um respeito avassalador e silencioso perante a morte...
Gera-se um recolhimento que se obriga.  Gera-se uma introspecção e um intimismo partilhados.  Ali, há uma verdade palpável que perpassa ...

El Tatio, significa na língua mapuche ( povo ameríndeo que habita milenarmente certas regiões do Chile e Argentina e que representa a "fala da Terra" ), "forno" ou adequadamente também, "velho que chora" ...
Por tudo isto, os "geyseres del Tatio"  (colunas de vapor que saem à superfície por fissuras na crosta, a temperaturas perto da ebulição e alturas de cerca de 10m, no terceiro maior campo geotérmico do mundo ), perdurarão "ad eternum" dentro de mim ...
Também as lagoas altiplânicas salgadas, no topo das elevações, emolduradas pelos cumes dos vulcões, me maravilharam pela cor esmeralda das suas águas adormecidas.  Junto delas, os guanacos, camelídeos selvagens destas paragens, pastoreiam sem sobressaltos ...
Vencido o Trópico de Capricórnio á latitude 23º 26' 16'' no deserto mais seco e mais antigo do planeta ... árido, desolado e lindo (os cientistas acreditam que o núcleo do Atacama permaneceu em estado hiperárido permanente por cerca de 15 milhões de anos, não havendo registo de chuva significativa nos últimos 500 anos ), a sua altitude e um céu brutalmente claro e límpido, tornaram-no um lugar por excelência para observações astronómicas.
Quarenta por cento de todos os centros de observação dos céus, no mundo, ficam localizados neste lugar. O telescópio mais famoso do Atacama ( Atacama Large Millimeter Array - ALMA ), foi o primeiro do mundo a fotografar um "buraco negro".  Também em Cerro Toco se localiza o telescópio situado à maior altitude do planeta ... 5190 m !
É um fascínio no silêncio da noite, buscar nos céus, onde as estrelas brilham como em nenhum outro lugar, o cruzeiro do sul, que integra a bandeira de Magalhães ...

Do Atacama com o seu salar, deserto de sal com cerca de 3000 quilómetros quadrados de extensão, onde no meio do brilho imaculado das formações salinas de sal petrificado, três espécies de flamingos estabelecem colónias de passagem, no que constitui a Reserva Nacional de flamingos, rumei ao sul para abordar uma efeméride histórica, incontornável ... fui encontrar o Estreito de Magalhães, na Patagónia Chilena.  Mas disso falarei no próximo texto ...

Anamar

segunda-feira, 4 de abril de 2022

" NÃO SE ESQUEÇAM DE NÓS !..."

 


Uma Primavera instalada com o tempo adequado : chuvinhas intermitentes, sol ainda pouco convicto, temperaturas afáveis.  Páscoa à espreita na primeira curva do tempo, ou seja, a pouco mais de uma semana.  
Os miúdos nas escolas nem saboreiam um tempo pascal clássico, já que o período tradicionalmente destinado a férias foi totalmente absorvido para a compensação de um início tardio do segundo período escolar, devido a um recrudescimento verificado, da Covid 19, no passado Janeiro.

Entretanto pouco aqui tenho vindo, no que se revela um cansaço psicológico atroz, em crescendo, desde que a guerra na Ucrânia começou.
As notícias são de tal forma destruidoras, arrasantes, insuportáveis, que na impotência que experimentamos, impõe-se, para auto-protecção e defesa pessoais, um afastamento das mesmas, das imagens, do sofrimento.
Ainda assim,  não estando felizmente lá, no campo dos horrores, não há contudo muita escapatória para a fuga que nos apetece, como se, não vendo, não escutando ou tentando anestesiar-nos com o silêncio, pudéssemos escapar ao que sabemos existir !

É um país totalmente aniquilado, arrasado, destruído, aquele que a comunicação social nos veicula.  É total e desesperadamente doída a realidade trazida por imagens de corpos espalhados pelas ruas que o foram, abandonados em espaços atulhados de pedras, de escombros, de estruturas queimadas, de vidros estilhaçados, de edifícios esventrados, escurecidos pelo fogo e pelo fumo negro das explosões.
É devastador, olhar as valas comuns cavadas a esmo e aleatoriamente em meio de espaços residenciais ... de olhar cruzes em madeira espetadas em covas improvisadas às portas dos edifícios habitacionais. Identificadas ou não, sabe-se que ali, naquele chão, repousa finalmente talvez em paz, alguém ... pai, mãe, filho, marido... um qualquer ser humano, uma família mesmo, cujo trajecto nesta vida ficou inexplicável e injustamente interrompido !
Corpos silenciosos, corpos com que os cães que vagueiam também eles perdidos, assustados, sem casa ou referências, se tentam alimentar desesperadamente ... porque, como dizia ontem já sem sentimento ou emoção, alguém que não estava a viver, mas sim perdidamente a vaguear por ali :" os cães também precisam sobreviver !... "
Há carros totalmente destruídos por todo o lado.  Há tanques de guerra com perfis demoníacos e monstruosos, horripilantemente reduzidos a metal fundido ...  assombrando com os seus perfis malditos o verde que ainda se mantém, de zonas ajardinadas, de parques infantis com baloiços vazios de crianças e de vida !
Ontem, imagens que não se descrevem, de Bucha, nos arredores de Kiev, inicialmente em mãos russas e resgatada pelos soldados ucranianos.  No abandono, ficou um rasto de morte e devastação ... ficou o resultado de um genocídio vingativo e premeditado.  A população civil, sofrendo toda a sorte de violência e sevícias, foi totalmente dizimada.  Assim, gratuitamente, com mãos amarradas, sacos na cabeça, alvejados pelas costas, na nuca ... os corpos tombaram no chão, para todo o sempre !

Eu sinto náusea, horror, sinto uma pedrada dentro de mim mesma, num lugar que deve ser onde o coração se encontra ... Já não consigo chorar ou sequer aliviar um pouco este aperto que me estrangula a garganta ...
PORQUÊ ?  PORQUÊ ?  PARA QUÊ ?  Como pode o ser humano, esta espécie biológica à qual pertencemos, ser isto, ser esta coisa vil, de monstro sem tamanho, aterrorizante, nojento, sem veias ou sangue a correr nos corpos ?!  Em nome do quê ?  
O que pensam estes carniceiros sem um pingo de sentimento ou humanidade  ( e que já estão, eles sim, mortos sem o saberem ), sobre a Vida e sobre a sua auto-atribuída omnipotência ?!  Julgam-se deuses, certamente ...
E não é só Bucha que sofre.  Há iguais notícias noutras cidades, já não falando da cidade mártir ... Mariupol !...
Afinal a história desta guerra insana escreve-se a letras de sangue por toda a Ucrânia, com a total indiferença e vanglória da Rússia, e uma espécie de letargia, imobilismo ou bloqueio assustado por parte de toda a comunidade internacional !
A ameaça nuclear, esse monstruoso espectro está à frente de todos os olhos, nunca se falou e pensou tanto em Hiroshima e Nagasaki como nestes dias de terror instalado, enquanto Putin, o monstro dos monstros persiste encouraçado nos seus castelos inexpugnáveis, louco, alucinado, irredutível ...

Odessa, a "pérola do Mar Negro", a cidade carismática historicamente ligada à Segunda Guerra Mundial e classificada como Património Mundial pela Unesco, que havia sido poupada desde o início do conflito, começa agora a ser também bombardeada indiscriminadamente, no desígnio determinante dos russos fecharem à Ucrânia o seu principal porto de mar, porta de escoamento das suas exportações através do Mar Negro. 
Dessa forma, com o Mar de Azov também controlado através de Mariupol e pela zona do Donbass, inevitavelmente, Odessa será o último reduto que caindo, confinará a Ucrânia em relação ao exterior.

E eu, com uma viagem marcada há largos meses para fora de Portugal, quando nem me passaria pela cabeça sequer um vislumbre de tudo o que viria a desenrolar-se, deixarei amanhã o meu chão, a minha gente, as minhas coisas ... os meus bichos.  E reside em mim um misto de sentimentos e emoções.  Parece quase imoral ao meu coração poder usufruir, vivenciar esta viagem de lazer neste contexto, paredes meias com o sofrimento de tantos espoliados de tudo, de tantos que catam nos destroços, algo para sobreviver, no meio de tantas famílias destruídas, no meio de tantos órfãos da guerra  e de  tantos pais sem filhos, de tantos velhos que mal se arrastam a viverem em caves bafientas e húmidas, há quarenta dias ... sob o som das sirenes que não silenciam, o pavor de cada míssil que atravessa o céu escuro das noites infindas ...  e o desespero da esperança que lhes foge ... no meio de tantas mulheres em carne viva que enterram com as suas próprias mãos os seus entes queridos, os seus amores, os afectos, o futuro e o sonho de vivê-lo ...
Sinto-me injustamente privilegiada, bafejada pela sorte de ter nascido aqui, neste canto de remanso e paz.  Sinto uma espécie de culpa e de vergonha, talvez ...

É então que penso na precariedade e na aleatoriedade da existência humana, no tabuleiro de xadrês em que jogamos por cada dia das nossas vidas ...
É então que penso nos que são escrutinados com um destino de sorte e nos que sem culpa ou pecado, expiam tudo aquilo que não mereceriam, no limiar do sobre-humano ...

E lá de longe escuto um apelo desesperado " Não se esqueçam de nós !..."

Oxalá todos aqueles que conhecem as palavras liberdade e paz sempre os recordem !

Anamar