quinta-feira, 30 de novembro de 2023

" REVISÃO DA MATÉRIA "

 



O dia está profundamente cinzento.  Uniformemente escuro.  Ainda não parou de chover, chuva grossa, agressiva, forte.  Bate nas vidraças com ímpeto, não facilita a vida a quem, nas ruas, tenta cumprir as rotinas diárias.  Corre-se, procuram-se abrigos, porque a inclemência do temporal não deixa margens ...
Queiramos ou não, a interioridade a que este tempo nos remete, leva a uma introspecção incontornável.  
Afinal será Dezembro dentro de horas, o Inverno está por dias e consequentemente, o caminho que percorremos nas nossas vidas está claramente a par do ciclo da Natureza.

É já uma estrada em que o que andámos bate objectivamente o que temos para andar, em tempo e em qualidade, e em que à nossa volta, as pessoas, as conversas, as preocupações que nos tomam, os sentimentos e até a forma como respondemos emocionalmente ao dia a dia ... são em tudo muito próximos, senão idênticos, às vivências daqueles que nos cercam.
Uns mais optimistas, outros menos, efectivamente todos de uma maneira geral partilhamos similitudes sensoriais.  
Convivemos preferencialmente com pessoas da mesma faixa etária, que já cessaram a actividade profissional, com famílias dispondo de uma lógica autonomia, com as independências naturalmente adquiridas, pessoas que ou têm uma vida familiar cujo desenho se mantém desde sempre, ou se encontram sós pelas mais variadas razões.  De qualquer forma, temos todos obviamente uma linguagem muito próxima, posturas e reacções comuns.  Quase todos nascemos e crescemos nas mesmas décadas, passámos por experiências semelhantes, crescemos em figurinos com forma e linguagens comuns, habituámo-nos a olhar o mundo de forma parecida ... até os sonhos e os trilhos percorridos para os alcançar, foram formalmente próximos.
Portanto, não será estranho que as nossas conversas sejam idênticas, as preocupações também, as angústias e as incertezas idem, até as sensibilidades se tornaram indiferenciadas.
As doenças, as limitações de natureza física ( mas não só ), que diariamente nos vão surpreendendo, as dificuldades materiais que indistintamente se experienciam fruto da sociedade e dos tempos que atravessamos, a falta de paz com a conjuntura sócio-política universal que nos rodeia, a insegurança e as incertezas que diariamente nos surpreendem ... em suma, o dia de amanhã ... ponteiam as nossas conversas, assombram os nossos sonos.
Os filhos quase sempre estão longe, física e emocionalmente muitas vezes.  A vida corrida, exigente, de competição, com valores e interesses diversificados já bem distintos dos nossos ( afinal, outra geração, outra visão e foco ), não lhes deixa folga, disponibilidade ou mesmo vontade para se fazerem presentes.

Nós, os do costume, já nos rimos às vezes, porque na verdade, andando andando, e reclamando, ainda assim lá vamos parar às doenças, lá vamos parar à solidão, ao isolamento, à resistência a sairmos de casa, de convivermos, de combinarmos programas.  Falta de paciência para ouvir, falta de complacência para entender e aceitar ... intolerância mesmo...
Antes ficar em casa, o telefonema amanhã se devolve, o chá fica para outro dia ... Saturação mesmo ! "Pachorra", nenhuma !

E vive-se, vive-se muito do que era, como era, como foi, o que foi, nos registos do passado.  Revisita-se vezes sem conta esta data, este acontecimento, estes dias ... num saudosismo que dói, que objectivamente amachuca, pois nos flashes que nos descem, o cenário está lá, apenas nós hoje somos apenas meros comediantes duma peça cujo pano já fechou ...
E fica estranho. É uma brutal sensação de desconforto ...

Hoje estou melancólica, ou melhor, mais melancólica.
Talvez o dia ... talvez o telefonema ou a tentativa de chamada a uma grande amiga com demência profunda, com quem já não consegui trocar mais que duas ou três palavras ... talvez um livro fantástico que estou a ler ... talvez ... talvez tudo isto e apenas isto, me tenha encapsulado no silêncio que acabou a envolver-me nesta tarde cinzenta e chuvosa.

Anamar

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

" OUTRA VEZ NATAL ... "

 


São pouco mais de quatro horas e a noite espreita.  O dia fechou completamente e até já chove lá fora.
As gaivotas recolheram.  Andava aqui por cima um bando em desnorte, rodopiando na aragem, como se sem rumo estivesse. Ouviam-se claramente os gritos que emitem ... não sei interpretá-los.  
Uma coisa é certa, parece terem recuado da orla marítima, prenúncio de tempestade.  Ou não seja verdade que "gaivotas em terra" sempre denunciem borrasca lá longe...
A meteorologia bem a sinaliza.  Parece que as próximas anunciadas chuvas que aí vêm, se devem à aproximação de "rios atmosféricos", uma nomenclatura recente, creio eu.
Pelo menos tem sido nestes últimos tempos que esta "novidade climatérica" surgiu no nosso léxico.  Antes, ou eu andei distraída, ou ainda não tinha dado por tal, na linguagem comum ... 

Entretanto é quase Natal.  Novembro, o "tal" mês para mim, encerra as portas já amanhã.

De ano para ano, esta quadra mais me cansa.  Aliás os únicos Natais que recordo com doçura e alegria foram os Natais da minha infância, aqueles que eram vividos com a família nuclear ainda intocada, em casa dos meus avós.  Até aos meus treze anos sempre esta quadra era passada no Alentejo, na casa grande, com pais, avós, tios, primos ... enfim, todos para quem estes dias de lazer eram pretexto para uma confraternização que reunia até os que lá não viviam.
Morávamos então em Évora, a escassos trinta e cinco quilómetros de distância.  As aulas haviam terminado, estávamos em férias, o meu pai em período de balanço na firma, e como tal o trabalho que desenvolvia permitia que fosse feito naquela mesa baixinha, dentro da grande lareira de parede a parede, que ocupava o fundo da cozinha dos meus avós.
A seu lado, de manhã à noite ardia o madeiro imenso que vinha rebolando pelo quintal fora, já que não havia viva alma que pudesse arrastá-lo de outra forma.
O meu pai, cutucava o lume, mexia as brasas, usava incansavelmente o abanico, e consequentemente enchia-se de cinza da cabeça aos pés ...  Mas isso, que importava ? Era o preço do consolo que representava o calorzinho com que eram aquecidas as noites gélidas do Alentejo !
As chamas bruxuleavam e o seu luzeiro era cúmplice dum conforto inigualável.  Os chouriços, as linguiças e as morcelas, como roupas num varal, dependuravam-se por cima das nossas cabeças, num fumeiro que reunia os enchidos da matança anual.  
Ao jantar, numa mesa que aos meus olhos de criança parecia não ter fim, quase sempre era o perú a fazer as honras, enquanto que os doces de tradição, arroz doce, aletria, leite creme, bolo de buraco ... do que me lembro... completavam o cardápio.  Lá pela meia noite, depois da Missa do Galo, a carne de porco frita, as filhós, as azevias, os mexericos e a pinhoada, aguardavam-nos, feitos pelas mãos de quem não fora à igreja.´
E os cantares ao menino Jesus, soltavam-se das bocas de quem, com a barriguinha cheia, entrava na desgarrada.
E eram de uma paz e de uma cumplicidade os sentimentos que ali se partilhavam.  Contavam-se histórias, lembravam-se pessoas, ríamos, assinalávamos os faltosos e mesmo aqueles que noutra dimensão haveriam de estar a ver os que ainda tinham lugar cativo na mesa da consoada ...

Eu era uma menininha de seis, sete, dez anos ... pra quem, uma roupa nova para estrear, umas sombrinhas de chocolate, uns lápis da Regina, umas libras igualmente de chocolate, brilhando do ouro que fingiam, já estavam de bom tamanho e chegavam bem para na manhã seguinte me transbordarem  de alegria, quando já, de olhos arregalados, descia ao sapatinho ...
E era assim, não me lembro sequer de um livro ou um brinquedo, juro que não lembro !...

Há memórias que se nos colam à pele sem que façamos o mínimo esforço para tal.  Há outras que "deletamos" mesmo sem querer ... novamente não carecendo de qualquer vontade ...
Há momentos que ficam, com cheiro, som e cor para sempre. 
 
Eu ia com a minha avó à Missa do Galo.  Só as duas e o frio daquela noite gelada.  A Igreja da Saúde resplandecia com uma luz clara, onde a talha dourada reflectia a luz dos círios acesos. Cheirava a cera, lembro claramente que cheirava. O xaile da minha avó era macio, fofinho, tinha uma cor azulada escura como veludo.  A minha mão pequenina cabia nele na perfeição.  O lenço adamascado cobria-lhe a cabeça totalmente branca.
Os cânticos ressoavam , amplificados pela abóboda bem alta da Igreja e o Menino Jesus na toalhinha de linho era dado a beijar no fim da cerimónia.  
E era tão lindo aquele querubim róseo, de caracóis dourados !!!
Cá fora o céu estava escuro.  A vila tinha poucas luzes nas ruas e por isso a luz das estrelas piscava lá no alto.  E o ventinho, aquele sopro cortante que corria e nos gelava a ponta do nariz, lembrava que era Dezembro, que nos esperavam lá em casa as iguarias e as doçuras, o calor aconchegante do lume aceso, a magia da noite que havia de nos envolver, a união familiar, o afecto a pingar dos corações ... e que era Natal outra vez !...

Anamar

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

" INDEFINIÇÕES ..."

 


Quase em tudo na minha vida, queimei etapas, atropelei timings, acelerei processos.  Ou seja, quase em tudo na minha vida, meti as mãos pelos pés numa pressa e numa ânsia de rapidamente virar esquinas e ver mais além, de chegar rapidamente aos horizontes, só para ter mais horizontes, para que o tempo não se gastasse antes dos meus sonhos se consumirem.
Corro atrás do tempo, sempre, sou escravizada por ele, tenho a angústia da falta dele para cumprir os desígnios que persegui e persigo.
Por sorte do destino, ou dos acasos de vida, não me tenho dado mal.  Pergunto-me às vezes, como ?

Sou uma incoerência nata, sou uma utopia além da conta.
Agarro o tempo, mas não aproveito o tempo !  Estranho, isto !...
Nunca usufruo o momento.  Nele, já me angustio com o que vem a seguir, nele, eu já sinto saudade do que ainda não foi ...

Guardo contudo, religiosamente, as sobras, que é como quem diz, as memórias.  Essas já não têm para onde se perder.  Pertencem ao arquivo indelével da mente e do coração.
Nelas me espanejo em dias de repouso, quando o cansaço é muito e a tristeza me toma conta.  Então, entro nelas, como se de um "país de maravilhas" se tratasse, no espanto e no êxtase.  Percorro-as de frente para trás e de trás para a frente, num deleite único e inalienável.  É como se entrasse num mar sem ondas, doce e quente, como as águas de lá longe que busco quando posso ...
São espaços de interioridade, vedados, privados e únicos.  E re-experimento as emoções, as angústias e as mágoas, mas também as alegrias, as conquistas e as realizações.
Mas depois farto-me.  Termino a visita, saio pé ante pé e fecho a porta de novo, até uma próxima, até que um outro dia me amanheça a vontade louca de descer às caves das lembranças e verifique, com alívio, que elas ainda por lá estão.
Às vezes quero remexê-las, tirar-lhes o pó, mudá-las de prateleira, segundo a vontade de lhes pegar ou não.  Outras, abro e franqueio a entrada, simplesmente ... espreito pela talisca da porta entreaberta e nada mais.

E o tempo continua.  Sempre continua ...

E de igual forma me envelheço a correr.  Dei por mim, sem remédio, de um dia para o outro, entre momentos que não preciso, a ficar definitivamente envelhecida.  E espanto-me como não me apercebi, como de repente morreu uma e no seu lugar nasceu outra, que é, de certa forma, uma estranha em mim.  Não sei como foi, não sei quão distraída ou dispersa eu estava que não enxerguei a mutação a ocorrer.
Deve ter sido nos tempos em que deixei empoeirar os sonhos por já não valerem a pena, em que deixei de acreditar em estrelas, nasceres e pôres de sol no meu céu, em que perdi a inocência das grandes descobertas, e em que perdi a vontade de ter vontade de sorrir ...
Possivelmente foi isto.  E nisto, não se volta atrás, nunca se volta atrás, pois o caminho de regresso perdeu-se no nevoeiro.

O desconforto toma-me.  É como se vivesse dentro dum fato que não é meu, dentro duma pele que não me pertence, dentro de uma entidade que não me assenta e desconheço.
Olho-me no espelho e pouco identifico da que fui, busco no avesso e não encontro o rascunho.
E zango-me.  Zango-me com o espelho por não me ter avisado, e garanto a mim própria não voltar a cruzar quem integrou a película que chegou ao fim.
Adoro pessoas resolvidas.  Vou morrer sem o ser.  Mas há pessoas que vivem com certezas, que sabem exactamente com toda a tranquilidade as escolhas que devem fazer, que certificam com igual tranquilidade os caminhos que já pisaram, as lutas que dirimiram. 
Adoro gente sem equívocos, esclarecida, decidida, clarividente ...
Logo eu que sou um poço de interrogações, uma montanha de dúvidas, um trabalho por terminar, uma reflexão por fazer !...
E insatisfaço-me comigo mesma,
Para quando uma pausa no conflito de histórias sem epílogo ?!
Para quando a paz que o fim da turbulência que me assola, me transmitiria ?!
Para quando o fim da inquietude da obra inacabada que eu sou ?! 

Anamar 

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

" POR ESTES DIAS ..."

 


Por estes dias fui e vim de viagem como relatei, entretanto contra minha vontade, aniversariei ...😉😉, coisa que me irrita profundamente não poder controlar ...😁😁 
Enfim, retomei as rotinas de sempre, porque a vida faz-se todos os dias .
Este ano o dia caíu em cheio num domingo ( também nasci num domingo de acordo com as informações maternas ), e como tal, estava mesmo a pedi-las que eu juntasse a família toda, não só porque há séculos me não propunha partir para um evento desta envergadura, mas porque sendo domingo não havia desculpas por parte dos participantes de se demarcarem da respectiva presença. 
Dessa forma, a minha filha mais velha calar-se-ia com as acusações habituais de que sou uma egoísta e comodista, que nunca me disponho a tais confraternizações como as matriarcas das famílias "normais" fazem ... e patati e patata ...
Reconheço-lhe de facto alguma / bastante razão, pois fujo abissalmente ao paradigma da família funcional, e como também a afectividade e a proximidade entre os elementos da nossa micro-estrutura familiar não são a marca reconhecida, pautando-nos bem ao contrário, com uma imensa falta de partilha e cumplicidade  ( sobretudo com o referido núcleo ... ), desde que nos saibamos com saúde e sem particulares contratempos, mantemos o distanciamento prudente para que alguns conflitos não possam eclodir mais violentamente.
Devo referir que as maneiras de ser e pensar entre mim e ela são totalmente opostas, os valores que defendemos também, os interesses e preocupações raramente se afinam, a forma de estar na vida, e ver o mundo ao redor, igualmente. 
Como tal, existe potencialmente uma mistura explosiva iminentemente pronta a deflagrar à mínima fricção, que se deve evitar a todo o custo.
A fórmula "familiarmente correcta" de convivência pacífica, passa portanto por nos sabermos bem de saúde, sem problemas significativos de outra ordem, sem grandes ondas, perturbações ou turbulências.
E assim vamos andando !...

Entre as duas irmãs, e porque a mais nova é substancialmente parecida comigo, logicamente o "status quo" é idêntico, e portanto a situação é paralela.
O relacionamento é feito "com pinças", sempre num equilíbrio ameaçado. O que uma entende não entende a outra, o que uma defende nada tem a ver com os objectivos da outra, e assim sucessivamente.
Não foram poucas as vezes em que ao longo do almoço eu espetei beliscões na mais nova, ou lhe dei pisadelas por debaixo da mesa, por iniciar caminhos "suicidas" nos temas abordados.  Já sabíamos onde iriam dar, e sinceramente, não tenho pachorra ou folga emocional pra grandes embates que de nada valem a pena e a lado nenhum, nos levam ...

Como se vê, uma verdadeira e interessante animação, foi o meu almoço de anos !

Chegados ao fim, apresta-se a necessidade das arrumações.  Tudo sai dos lugares e tem que voltar, tudo se suja e há que limpar, etc, etc, etc.
A minha realidade diária é de uma pacatez total. Sou eu e o meu gato, com um esquema de vida e rotinas que preservam os espaços e as coisas, pelo que os dias se passam sem grandes afobações ou tarefas exaustivas.  Cheguei portanto à noite, totalmente feita em fanicos.  
Pude constatar claramente o que o avanço do tempo nos causa, em capacidades, resistência, frescura.  Há alguns ( não necessariamente muitos ) anos atrás, estas tarefas eram realizadas com uma perna às costas, a frequência com que se promoviam por ano estes convívios, era largamente maior, e o grupo que desta vez se sentou à mesa era bem mais alargado, por evento.
Pois, mas o tempo é carrasco e não se compadece !...

O cansaço físico e a falta de disposição que me confina grande parte dos meus dias à casa, sem que me anime a grandes outros programas, é acompanhado igualmente dum exasperante cansaço mental e emocional.
Hoje em dia, o nosso mundo alargado, as realidades doídas que se vivem lá fora, o horror que nos aturde de todos os lados, a dor que dói mais porque não se entende ou justifica, são um "ruído" assustador, deprimente e mortal !
Há uma "poluição" emocional tão desestabilizadora que nos mata aos poucos.  A impotência experimentada, o cansaço da dor das imagens sem alívio, de duas guerras a grassarem em simultâneo, a cegueira e a surdez do Homem que parece ter-se transformado numa espécie amputada de sentimento ou emoção, num estado de alucinação ou loucura, deixam-nos também a nós em desvario, petrificados, gélidos, anestesiados ... em choque !

No nosso universo estrito, que é como quem diz, na nossa realidade diária, num país que estrebucha mergulhado em corrupção, compadrio, desonestidade ... crime ... e em que cada um procura tirar o melhor quinhão para si, apenas para si, mesmo que tenha que pisar, trucidar, levar na avalanche todos os que se meterem à frente ... a vida é feita a pulso, tostão por tostão, degrau a degrau, subindo um e descendo quantas vezes, dois ... num esforço e num desencanto sem tamanho.  
Numa competição feroz e doentia, num oportunismo descarado,  numa insegurança tormentosa, as esperanças fenecem, os sonhos estiolam, o cansaço torna-se patológico ... o reconhecimento e a compensação quase nunca acompanham as competências, o esforço e a dedicação ... 
Bem ao contrário !...
E tudo isto derruba, esgota, instala o cansaço, exponencia a incerteza e adoece a alma.  E atrás de uma alma doente, é fácil um corpo desistir ...
Afinal, fica difícil, muito difícil costurar os pedaços !...

Enfim, já me alonguei neste mix atordoante a preto e branco ...
Só que ... foi assim por estes dias ...

Anamar

domingo, 5 de novembro de 2023

" MARROCOS - do Atlântico ao deserto ... "



Marrocos já vai sendo uma memória... Mais uma memória singular e inesquecível, como para mim sempre são todas as viagens.
Todas elas são aprendizagens, são enriquecimento, são lazer, novidade, certeza de sair mais plena no regresso.
Conhecer sempre mais mundo, ou melhor, juntar mais mundo ao meu mundo é um privilégio e um fascínio que não canso de repetir.  
Afinal habitamos um planeta comum, a que uma multitude de espécies diversas conferem diferenças, particularidades, peculiaridades irrepetíveis.  E sendo embora "vizinhos", quando daqui saímos, nem uma gota de água deste oceano imenso cruzou os nossos destinos !

Deveria ser possível a qualquer um de nós, poder ver, sentir, perceber, tocar-se com o mundo lá fora, com os seres, as cores, os cheiros, as vozes, as palavras, os costumes ... em suma, a realidade que existe, pois assim seria mais fácil para cada um conviver com a diferença, aceitar a igualdade dos desiguais, cumpliciar com os sonhos dos que têm em comum connosco, o facto de sermos humanos apenas ... e trabalhar a tolerância, a empatia, a generosidade, a aceitação do outro !

A viagem de doze dias em que percorri Marrocos de ponta a ponta, entrando por Tânger e saindo por Casablanca, tendo rodado praticamente por todo o país, esteve comprometida, quando no passado 8 de Setembro o país foi assolado por um terramoto de intensidade significativa, que provocou mais de três mil mortos.  Só em segurança a Agência de Viagens a efectuaria, o que veio felizmente a concretizar-se.
E em boa hora, porque se trata dum país efectivamente muito particular, que eu lamentaria agora  profundamente não ter conhecido.

Marrocos é fundamentalmente uma terra de cor e som, um país em constante efervescência, com um povo hospitaleiro, humilde e sacrificado.  Com uma clivagem abissal entre as classes sociais, regido por uma monarquia absoluta e ditatorial, apesar do monarca ser conhecido como aberto a mudanças constitucionais, dividindo o poder com o primeiro ministro e o parlamento, a pobreza e miséria são extremas, face à sumptuosidade da vida de verdadeiros sultões e magnatas que constituem uma faixa social privilegiada, envolvida em luxos e riquezas astronómicas.
O rei Mohamed VI, é descendente duma longa linhagem de governantes que fazem parte da dinastia alauita, originária de povos que chegaram na região no século XIII, vindos da Arábia.  Assumiu o trono em 1999 após a morte do pai Hassan II e é igualmente considerado o chefe religioso no país, que é de maioria islâmica.  As mesquitas proliferam em todo o território, mesmo nas aldeias mais inóspitas do Rift, ou do Alto Atlas, enquanto que as catedrais católicas são praticamente inexistentes.
É divorciado e tem dois filhos, vivendo preferencialmente fora do país, apesar de nele possuir dezasseis sumptuosos palácios.  Assim, a sua residência fixa-se quase sempre, em Paris. É detentor de inúmeros automóveis de luxo e igualmente coleccionador de cavalos de raça provindos dos quatro cantos do mundo.

Falar sobre este país de uma diversidade espantosa, conseguir relatar, ainda que por aproximação a globalidade das suas características de culturalidade tão diferente da nossa, configurar-se-ia uma tarefa hercúlea e impossível.
Assim, vou remeter-me apenas a alguns aspectos talvez mais marcantes, face à minha sensibilidade.

As cidades, com uma arquitectura hispano-mourisca típica do norte de África e da Península Ibérica, têm características e designs absolutamente ímpares.  Influenciado por diversas culturas, tribos, árabes, romanos, berberes e colonizadores europeus que moldaram o seu estilo arquitectónico,  no Marrocos de hoje, prevalece como maior influência,  a islâmica, sobretudo nos ornamentos. 
Pode claramente observar-se esta afirmação na arquitectura das mesquitas, riads, souks, kasbahs, palácios e madraças.
As casas de adobe grassam nas zonas rurais do interior e nas cordilheiras longínquas do Rift ou do Atlas.
As medinas ou "cascos viejos", um emaranhado labiríntico de ruelas, que mais não são que o miolo histórico das cidades, são um mirabolante mundo de comércio onde tudo se vende nos souks, de comida a bens de consumo, numa agitação e numa promiscuidade de raças, cores, tipos e costumes.  Ali, tudo se regateia, as gilabas denunciam a miscigenação das etnias, os turbantes coloridos encimam rostos, na maioria ainda cobertos quase na totalidade com os véus do preceito religioso.
Os animais vivem da caridade dos habitantes.  As centenas de gatos e cães surgem de e em todos os lados, e vivem esfomeados.  Os burricos e as mulas, são quase em exclusividade os meios de transporte que cruzam as medinas, onde o brouhaha  parece nunca silenciar ...
As cidades do norte e da orla costeira, como a antiga Mogador hoje Essaouira, a "noiva do Atlântico", ou El Jadida, a Mazagão do tempo dos descobrimentos, assim como Fez, Arzila e outras, ostentam ainda sinais históricos deixados pela presença portuguesa, como as muralhas, os escudos em pedra ou os canhões por entre as ameias das fortalezas.  
Na orla atlântica, são cidades de fachadas brancas e azuis, a cor da espuma e das ondas, abertas e luminosas, onde os alíseos soprando, esculpem a paisagem ...
Cidades piscatórias, de barcos, gaivotas e gatos, de bom peixe e marinheiros nos portos, sabem à maresia que perpassa.
No interior, nas montanhas do Rift, a noroeste, surge uma pequena cidade isolada, na calma da cordilheira ... a inesquecível cidade azul do Marrocos, Chefchaouen, cuja fundação remonta ao século XV.  Para mim, foi o expoente máximo desta viagem, situa-se entre Tânger e Tétouan.  
A sua medina é absolutamente ímpar, com todas as ruas de paredes tingidas de azul, onde se pode caminhar, tirar fotos e observar calmamente a vida local,  os souks vendendo lamparinas marroquinas, peças de couro ou metal, roupas, panos, tapetes, especiarias e tinturas.
Foi a existência desta beleza única, a responsável máxima pela minha deslocação a Marrocos !

Pra não alongar excessivamente a minha narração, que fica a anos-luz do que lá vi e experienciei, refiro apenas o nascer do sol no deserto, em Erg Chebbi, onde subi lentamente, encaminhada por um berbere na condução de um dromedário, e onde a magia do silêncio da madrugada se acendeu aos poucos com as cores róseas, lilazes e laranja do primeiro esgar do sol por detrás das dunas do Saara !...
Jamais o esquecerei !...

Finalmente a "cidade ocre", Marraquexe, a cidade turística por excelência, onde o tipicismo da Praça Djemaa el-Fna, a maior de todo o continente africano, uma praça com o mundo inteiro dentro, mistura um furacão de experiências culturais e gastronómicas.  Os bazares labirínticos fervilham, os cafés com terraços panorâmicos onde se toma o chá de menta enquanto em fundo, do minarete da mesquita Koutoubia ( 70 metros e 800 anos de História ) se ouve o muezzim chamar para a oração do fim do dia.
Os encantadores de serpentes, as videntes a lerem as mãos, as pintoras artísticas da henna, os saltimbancos mágicos, os aguadeiros, os domadores de simpáticos macaquinhos e suas palhaçadas, convivem com as tendas ou os carrinhos com as ofertas gastronómicas de apelativo cheiro às especiarias, aos grelhados, às tagines ou ao sumo de laranja incomparável ...
Djemaa el-Fna é um espaço único, carismático, vibrante ... quase mágico !

O dia fora quente, a viagem aproximava-se do fim a passos largos, mas o cansaço não cedia à insaciável busca do bizarro, do desconhecido, do novo ...
Agora a brisa da noite já corria, mas a profusão das luzes, o colorido dos toldos, a música imparável, o recorte negro da Kotoubia em contraste com o sol já moribundo, e a magia de um chá de menta tomado no Grand Balcon du Café Glacier, encerraram indelevelmente da melhor forma possível esta incursão ao coração marroquino !...

Bslama Marruecos ... choukran !






Anamar


terça-feira, 3 de outubro de 2023

" E AFINAL ESTOU VIVA !..."


Moro ao lado do Centro de Saúde da cidade que habito.  E moro aqui fará cinquenta anos no ano vindouro.
Ao longo dos tempos, não muitas vezes, devo convir, recorri ao mesmo, quase sempre exclusivamente para a obtenção de receituário, prescrições de análises ou exames de rotina, pouco mais.
Sempre fui absolutamente saudável e até hoje, tirando uns comprimidecos para o meu amigo colesterol não se armar "em pintas", nada tomo a nível de químicos.
Acresce que, sendo beneficiária da ADSE, por questões de praticidade, já que os Centros de Saúde funcionam como bem se sabe, prefiro quase sempre pagar do meu bolso a parte que me cabe e procurar médicos com ou até sem convenção com este subsistema de saúde. 
A médica de família que então tinha, era-o também dos meus pais, pois havia conseguido que o seu agregado familiar  fosse anexado ao meu, já que haviam perdido a respectiva médica na unidade da freguesia a que pertenciam, por esta se ter afastado.  
Assim, com o avanço dos anos e a inerente dificuldade de locomoção, sobretudo quando o meu pai acamou, a Dra.Dulce passou a responder também pelo apoio de que necessitavam.
Era o tempo de, apesar de eu viver, como poderá dizer-se "porta com porta" com o "meu" Centro de Saúde, eu descer frequentemente pelas cinco da manhã para conseguir a bendita senha para o que precisava para os meus pais.

A Dra. Dulce foi posteriormente embora também, e o nosso agregado familiar iria com ela para o novo centro para onde foi, numa freguesia ainda bem mais longe de casa, o que pelas razões que expus, inviabilizava mais ainda a situação.  Ficámos então sem médico de família, entregues em cada circunstância, aos chamados médicos de recurso..
Tal situação nunca mais se resolveu apesar de n exposições que fiz, de n reuniões que tive com a responsável pelo Centro, com a Assistente Social, e todas as estruturas responsáveis, e em que solicitava que pelo menos os meus pais pudessem ser apoiados duma forma estável por um médico fixo atribuído.  Lembro que o meu pai estava acamado, algaliado, com ameaça de escaras consequência da situação, carecendo de tratamentos de enfermagem ao domicílio, tinha 90 anos e a minha mãe, idosa, também com limitações motoras, com necessidade de acompanhamento na área da cardiologia e outras patologias associadas à idade, precisariam de estabilidade e segurança na área da saúde.
Não foi possível reverter-se a situação.

Os meus pais entretanto partiram, a minha mãe viveu os dois últimos anos na casa da minha filha, que sendo enfermeira, chamou a si toda a logística e apoio que em excelência prestou à avó até falecer.
Também já aqui não residia, e eu, cansada de todo este filme, simplesmente desliguei.

Em Outubro de 2018, ano da morte da minha mãe, resolvi reanalisar a minha situação no SNS e reactivei a minha inscrição.  Foi-me informado já ter atribuída uma médica de família, mas inexplicavelmente, pertencente a uma Unidade de Saúde Familiar noutra freguesia a alguns quilómetros de casa.
Ainda assim, resolvi fazer a marcação de uma consulta, via informática, pelo site do SNS, a fim de estabelecer um primeiro contacto com a médica referida, para uma primeira abordagem.  Foi-me informado não dispor a mesma de horário na especialidade requerida, obviamente de clínica geral.
Meteu-se todo este período conturbado de antes e pós Covid, e não sendo nada urgente, voltei a silenciar deste lado.

Há cerca de um mês acedi de novo ao site e voltei a fazer uma nova tentativa de marcação de consulta para a Doutora que não tenho sequer o grato prazer de conhecer e que já terá pensado ser eu por certo, um espécime extinto ...😁😁

Ontem, para felicidade geral, constatei que afinal ... estou ainda viva ... ainda sou um dos números da Segurança Social, e tenho FINALMENTE uma consulta marcada, pasme-se !!!

Ora bem, tamanha emoção trouxe-me à escrita, claro, porque trata-se duma conquista mais importante que Aljubarrota, ou até mesmo o Buçaco ou S.Mamede, para começar pelo princípio !!...

E estou tão, mas tão emocionada, tão mas tão agradecida, tão mas tão feliz e realizada, por ver como o SNS me tratou tão bem ... marcando-me no fim deste folhetim, a auspiciada consulta ... só que, para o dia 1 de Março de 2024 ... só cinco mesinhos depois ... 
Mas também, o que são isto, 5 mesinhos nos tempos que correm, e na vida de uma pessoa, Dr. Pizarro  ??!!😂😂😂

A ver se não morro até lá !!!

Anamar

domingo, 1 de outubro de 2023

" O CORDÃO UMBILICAL "

 




Não se pode viver a vida dos filhos ... não se pode viver a vida pelos filhos. 
O bendito cordão que cortamos à nascença, sempre vai marcando presença ao longo da vida, estou convicta que, verdadeiramente, na figura materna apenas.
Ouve-se dizer a propósito da relação entre pais e filhos, "mãe é mãe e pai é pai", exactamente reiterando essa ligação simbiótica e inapagável, tatuada pela biologia humana ao longo dos nove meses de gestação.
E tudo aquilo que partilhámos, essa chama vital que assegura a vida da criança até que fisicamente se separa da mãe, vai coexistir a vida toda transmitida por tantos outros cordões, tantas outros laços, tantas outras formas quase irracionalmente inexplicáveis.
A necessidade quase absurda de uma protecção constante que uma mãe sente em relação ao seu filho, o imperativo da sua presença cujas "asas" o defenderiam de todos os riscos, a ânsia de o poupar a todas as adversidades possíveis, chegam, em casos extremos roçando o patológico, a serem doentios.
Na natureza, as mães são defensoras e protectoras inabaláveis das suas crias.  
Assisti há poucos dias na minha viagem ao Quénia, à fúria de um bando de elefantes, encabeçado pela progenitora, na protecção de uma cria que estava ferida.
Racional ou apenas por razões biológicas, contra tudo e contra todos, viramos feras na protecção das nossas ... 

Hoje em dia, a desejada e desejável autonomia dos jovens em relação à casa paterna está objectivamente comprometida, consequência, além de outros factores sociais vividos neste momento, da crise que sobre todos se abate ... na qual ressalta a incapacidade material de se alcançar o legitimo direito à habitação.
É insustentável conseguir-se por aluguer ou compra, um espaço minimamente digno, ao alcance da maioria.  Se se faz face às despesas alimentares e outras do quotidiano, não se consegue de nenhuma forma ter acesso a uma renda especulativa ou à prestação bancária de um empréstimo, ainda que o mesmo tivesse sido alcançado.
Assim, é absolutamente dramático o que muitas e muitas pessoas singulares, ou famílias constituídas, estão a sentir, com o estrangulamento dos seus futuros.
As manifestações sociais multiplicam-se, as vidas hipotecam-se, não se seguem estudos superiores porque não há alojamentos compatíveis para os estudantes que da província acedem às Faculdades ... da noite para o dia, encurraladas e sufocadas, as pessoas caem na rua ...
Há dias, subindo a Av. Almirante Reis em Lisboa, deparei-me, para angústia minha, com sete ou oito tendas, só no espaço de um quarteirão, sob as arcadas de um prédio. Um verdadeiro acampamento em plena capital !... 
A tal, nunca ao longo das minhas já consideráveis décadas de vida, tinha assistido !
As televisões reportam situações idênticas, de pessoas que embora com empregos e respectivas remunerações, não conseguem suportar minimamente as responsabilidades diárias, e por isso dividem com outras em iguais condições, tendas aninhadas em parques ou espaços sem condições dignas de vida ... até que as deixem e não as escorracem para outros poisos. 
É o fim da linha pra muitos nossos concidadãos, é o que lhes sobrou num Estado e numa estrutura social que os marginaliza, os exclui ... porque simplesmente parece não haver mais caminho para andar.
Mães que acabam por entregar os filhos à guarda de instituições, porque o lugar de uma criança não pode ser uma tenda no meio duma rua ...

E depois há também os outros ... os que são despejados do caudal inestancável dos canais de emigração desde os países mais sofridos, e que buscam, numa Europa promissora, o sonho de um futuro, uma vida, subsistência, alguma dignidade e alguma paz ...
Vertidos das guerras, da violência, do vazio de horizontes, do abandono, da fome e da miséria, mais sós do que nunca, entregues à sua sorte, à exploração, às máfias e ao sofrimento, empilham-se às dezenas enlatados numa precariedade inimaginável, em quartos miseráveis, imundos, onde o sistema da "cama quente" é frequentemente o que têm ...
E são de facto uma fauna que pulula nas nossas cidades, bem aqui ao nosso lado, em olhares que a esperança há muito abandonou ...

Também  eles  têm  ou  tiveram  mães ... lá  longe,  numa  terra  que  já  só  deve  ser  uma  memória ...

Como aquele rapaz de vinte e oito anos, silencioso, de olhos tristes e vazios, que pediu para comer mas que teve vergonha de entrar no supermercado comigo, e preferiu esperar na rua.  O seu país, a família, a dor e a guerra, lá ... A dignidade também ...  
Cá, até o trabalho que tinha lhe falhou há um mês ... Tinha fome ...

A angústia é avassaladora.  Sabemos o hoje, nunca o amanhã foi tão incerto ! O viver tornou-se um pesadelo, e mesmo investidas do "super poder" milagroso das mães ... não podemos viver a vida dos filhos ... nem viver a dureza da existência pelos filhos !!...

Anamar

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

" VIAJAR ENTRE VIAGENS "

 


Parece uma coisa meio absurda ... Afinal, viajar entre viagens é o quê?

Já tive um post totalmente escrito, pronto a publicar, e eis que num passe inesperado de mágica, foi o mesmo "comido" pelas tecnologias que não domino o suficiente, das quais não me defendo e me exasperam profundamente !
Golpe rude para quem já anda a escrever tão pouco, tendo em conta que o que havia a explanar a propósito, sucumbiu no que fora escrito ...
Incapaz de refazer aproximadamente o texto elaborado, a fúria subsequente zerou-me toda a capacidade de o retomar.
Assim sendo, com algumas semanas de permeio vou hoje tentar deixar aqui, certamente apenas um simulacro da abordagem que havia feito, não mais !  Sempre assim sucede quando se perde qualquer coisa que até nos havia satisfeito razoavelmente ... Tudo o que se tente posteriormente, não atinge a fasquia desejada !

Ora bem, "viajar entre viagens" é o que normalmente mais faço, quando ao chegar de uma acabadinha de fazer e da qual venho invariavelmente sempre plena e feliz, recomeço da estaca zero, que é como quem diz, recomeço a pensar no próximo destino ...😁😁, que poderá pertencer simplesmente ao domínio  do  real  ou  ao  dos  sonhos ! O gozo  é  o  mesmo !... 😃
É um período de tempo, mais ou menos longo, dependendo dos condicionalismos, e em que tudo é permitido.
É um período de lazer absoluto, em que tanto posso pensar numa viagem futura com muitos dígitos, como numa mais modesta ... pela simples razão de que nesse timing, não existindo disponibilidade económica absoluta e obviamente nenhuma ... tudo se resume portanto a uma mera diversão.
Sonhar é gratuito, inventar também, "passear" pelas propostas tentadoras das agências, idem ... analisar, esquematizar, recolher informação sobre lugares apetecíveis, sem compromisso ... sempre me levam por aí fora, sem limites ou barreiras, a "viajar" sem sair do sofá.
Leio a propósito, busco a propósito, escolho, planeio, defino estratégias ... itinerários fascinantes, paisagens únicas, paragens aliciantes e irrepetíveis, melhor altura do ano... chego a analisar o clima mais propício para o efeito ...
Enfim ... divirto-me e deixo o espírito ir, ir, como aquela ave rumo ao horizonte ... E eu, com ele !...

Sou um espírito inquieto.  Sentir-me confinada a um espaço, a uma rotina, aos dias que se repetem, aos mesmos rostos, às mesmas conversas, à mesma realidade - afinal todos temos inevitavelmente as nossas - deixa-me neurótica, desanimada, entristece-me, cansa-me, satura-me.  
A vida vivida nas cidades, com os muros, as casas, o betão, sem escapatórias ou alternativas, os ruídos desinteressantes e fastidiosos como companhia, as casas encavalitadas em edifícios de gente maioritariamente desconhecida e indiferente, isola-nos, larga-nos mergulhados em nós mesmos, apenas em nós mesmos.
O casulo que acabamos por construir à nossa volta, creio que por defesa, porque na verdade os dias são vividos num mergulho doentio não aberto ao exterior, mas num vórtice concêntrico de silêncios e desinteresse, passa a ser um reduto estranho em que nos fechamos, e não mais ...
E nada disto nos dá saúde, sequer alegria.  Nada disto nos ilumina os dias, ainda que das janelas se perscrute um céu azul e se adivinhe um sol generoso lá fora ... Porque cá dentro as luzes vão sendo reduzidas e outonais ...

Lembro que o meu pai, viajante de profissão, qual pardalito de ramo em ramo, que não considerou nunca a hipótese de ficar em trabalho fixo na sede da firma ( apesar da mesma se sediar em Lisboa e esta ser a sua cidade de coração ), quando teve que parar mesmo ( passando a ir diariamente para o escritório resolver apenas questões contabilísticas, burocráticas e enfadonhas ), entristeceu, desinteressou-se gradualmente de viver, envelheceu, perdeu todo o gosto pela existência e passou simplesmente a arrastar-se, em cada dia que começava.
Parecia um prisioneiro sem cela, um pássaro de asas cortadas em gaiola aberta ... O seu olhar perdeu o brilho, ensimesmou, silenciou por dentro, começou aos poucos a cortar laços de comunicação à sua volta ... definhou e partiu, não muito tempo depois ...
Em suma, o meu pai deixou simplesmente, sequer, de poder "viajar entre viagens" ... e esse era o seu oxigénio ! 

Parece uma coisa meio absurda ... Neste momento acredito ser uma característica genética... talvez uma questão de sobrevivência !
A  interpretação  alternativa, é  que  não  estarei  bem  de posse das  minhas  faculdades  mentais ! ... 😁😁😁

Anamar

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

" ÁFRICA "

 



Identifico-me com África ... identifico-me profundamente com África !...

Talvez por ter nascido numa geografia de traços comuns com aquele continente, me sinta numa espécie de "regresso a casa" quando ali chego.
Trata-se duma terra sem horizontes, uma terra avassaladoramente sem limites ou contenções, onde a palavra liberdade se encaixa na perfeição.  
É uma terra de silêncios, onde a música que ecoa dimana apenas da brisa perpassante ... quando a há.  
Tudo o mais são os trinados das aves de ramo em ramo, ou a linguagem dos animais na savana.  Tudo o mais é o bafo sufocante que emerge do chão, aquele chão ocre ou sanguíneo, agora que, sendo seca a época, a água inexistente não pôde acordar o verde da mata.

África é a natureza pujante. É um cântico à existência.  É um hino à Vida.
As coisas são simples, porque são genuínas.  Porque África é verdade!
O desprendimento, o desapego, a humildade, a inexistência de exigência face à vida que se detém, a alegria de simples fruição do que os dias nos concedem, são lições de vida a aprender diariamente ...  nós, os que filhos da época do estrago e do desperdício, numa sociedade de consumo feroz, sempre queremos mais e em que a palavra insatisfação ocupa quase sempre o nosso quotidiano.

A paisagem repousa a alma, quando os olhos se perdem na imensidão da terra que alcançamos.  
As acácias erguem-se garbosamente solitárias contra o céu.  Os animais, das aves aos répteis e a todos os outros que povoam o território, convivem no respeito pelas leis da sobrevivência.  Matam p´ra comer, acordam ainda os alvores do dia se não prenunciam, dormem sestas nas sombras abençoadas ou pastoreiam sem descanso nas planuras a perder de vista.
As hierarquias são respeitadas, os clãs definidos, as relações familiares inquestionáveis.  A protecção aos mais fracos e vulneráveis, aos mais jovens e inexperientes, e aos doentes ou incapacitados, são garantidas pelos grupos, liderados pelos machos alfa ou pelos anciãos respeitáveis.
Os cheiros da terra, do capim seco, as árvores esquálidas e esfíngicas em recorte na paisagem, os pôres e nasceres de sol na fogueira laranja do alvorecer ou na mornidão da dormência da tarde, com a sua magia ímpar transportam consigo uma energia primordial de útero materno. 
 
Não é à toa que, cientificamente, a "terra natal" do Homem moderno parece coincidir com a região a sul do Zambeze ( norte do Botsuana ), área de salinas que albergou um imenso lago, o qual pode ter sido o nosso lar ancestral, há duzentos mil anos ...

Tudo é autêntico em África. As etnias respeitam as origens, continuam vivendo nas normas e costumes.  A pobreza é avassaladora, a alegria também.
O calor abrasador não impede os jogos e as brincadeiras das crianças descalças, no chão de terra batida, em convívio pleno com os animais que ciscam em coabitação.  O ranho desce-lhes à boca, as roupas já sem cor definida, às vezes desajustadas no tamanho, quase sempre com rasgões e buracos alegram-lhes os dias.  A escola vive-se na tribo, ensinada pelo mais letrado da aldeia, aprendida nos bancos de madeira, debaixo da acácia que sombreia ...
Os meninos de África são únicos.  Os seus sorrisos tímidos de inocência e deslumbramento iluminam-lhes os rostos e denunciam-lhes a pureza da alma ... 
A nós, inundam-nos os corações e tactuam-nos a mente "ad eternum" ...
Por tudo isto, o Quénia ficará comigo para sempre !...

Anamar

sábado, 12 de agosto de 2023

" LIVROS DE HISTÓRIAS ..."


A vida é um livro que, desfolhado, sempre conta uma história.  
É a história de vida de cada um, mais ou menos simpática, mais ou menos doída, mais interessante, mais difícil, com final feliz ou com um fim conturbado ... ou mesmo parecendo não ter fim, tanto o cansaço que arrasta ... tal qual o nosso livro de cabeceira, que umas vezes é lido na ânsia do conteúdo, outras vezes é "mastigado" e não nos sai das mãos, por enfadonho, cansativo, desinteressante ... chato !

A vida sempre começa pela infância, quase sempre os melhores anos, leves, despreocupados, em que os olhos se esbugalham face a tudo o que de novo se nos depara;  quase tudo é encantamento, porque é desconhecido, é experimentado, é história, é sonho ... quase tudo é feliz e alegre, como os contos, que o pai ou a mãe nos liam ao deitar.
Começamos a entender o mundo, começamos a olhar as coisas que nos cercam, começamos a experimentar, a registar, a observar, a saborear ... a concluir.  Dizem que as nossas primeiras memórias remontam aos quatro, cinco anos.
Costumam ser tempos felizes e promissores.  Deseja-se que de facto, o sejam !

Crescemos e as responsabilidades, as primeiras preocupações a sério, já as primeiras angústias, já as primeiras tristezas, crescem connosco.  
São os anos da aprendizagem, os anos dos bancos da escola, onde começamos a integrar-nos em grupo, onde as brincadeiras forjam reais amizades, onde convivemos e socializamos já com uma visão mais real e objectiva do mundo que nos cerca. 
Rumamos à adolescência e novos "mundos", novas realidades, novos caminhos, sonhos, objectivos e metas começam a desenhar-se. 
É período de outras descobertas, é o crescimento e suas dores, a tomada de consciência do nosso papel na sociedade, a maturidade a exigir-nos a seriedade inerente ao avanço dos anos.  Damos os primeiros passos p'ra valer, nas vidas profissionais, procuramos corresponder sem nos defraudarmos nem defraudarmos as expectativas em nós colocadas.
Na minha geração tacteavam-se os primeiros projectos familiares independentes.  Estudos terminados, iniciava-se a vida activa, e o encaminho sem fugir muito à regra, seria casar, ter filhos, continuar a senda ...
Fazia parte da engrenagem para que nos programavam, e não se questionava muito o porquê das coisas.  Era assim e ponto, na generalidade.
Eram poucas as pessoas, eram pouquíssimas as mulheres que "avistavam" novos horizontes e se permitiam ao voo.
Era a família que ficava, eram as idades do pai, da mãe a avançarem, e a separação era assim algo um pouco contra-natura, como se outro cordão umbilical se fosse de novo romper.
E se desse mesmo, ficávamos ... íamos ficando e encurtando o tamanho dos sonhos sonhados.  Afinal, era como que um pré-destino inevitável a cumprir ...

Tínhamos filhos ... claro, tínhamos filhos, e começava tudo de novo.  Agora em prol deles, sempre prioritários nas nossas vidas.
Passámos a sofrer as suas dificuldades, ficámos a viver os seus sucessos e os seus desaires, ficámos a projectar-nos nas suas vidas, literalmente "inchando" por cada êxito, chorando em silêncio por cada escolho dos seus caminhos, querendo que fossem mansos, tentando afastar-lhes os pedregulhos ...
Varremos quase sempre os nossos sonhos um pouco para baixo dos tapetes.  Às vezes, retirámo-nos mesmo o direito a sonhá-los ... Ficámos muitas vezes prisioneiros de solidões acompanhadas ...
E se o nosso percurso não teve acidentes de maior, estaria desenhado, eu diria, até ao fim das nossas vidas, no dia em que o tal livro dobrasse a última página !

Mas às vezes não era tão linear assim.  Às vezes, instalava-se no nosso caminho, um cerrado de "nieblas" e mau tempo.  E dissipá-las e andar adiante, revelava-se uma estóica aventura.
Escolhi ficar só com mais de meio século vivido.  Entendi que este presente que me era oferecido por cada dia que se iniciava, agora era mesmo meu.
E foi como se me tivesse aventurado em terreno baldio e desconhecido, entregue exclusivamente à minha sorte, com todos os custos inerentes, tendo que pagar, se fosse o caso, o preço que me fosse devido.
E quase voltei às primeiras páginas do livro, reescrevendo agora uma outra história.
Agora as cores já só podem ter os cambiantes laranjas, amarelos e os ocres do Outono.  Os verdes risonhos, os azuis de céus límpidos e a mescla dos borbotos a despontar, são só desperdícios largados lá atrás...
Mas a saga continua e quando os tempos de mornidão pareceriam adequar-se, quando a paz almejada e esperada pareceria óbvia e legítima ... quando inevitavelmente pareceria não haver muito mais história a contar ... até porque o cansaço de fim de jornada já se anuncia, eis que outras páginas exigem letras e frases, e parágrafos e ideias ... e tudo se impõe e regressa ao princípio, só que agora já não sou eu a protagonista das histórias, e só que agora pouco já posso fazer para dar o rumo escolhido e o final desejado às histórias que fosse contando !...

Anamar 

quinta-feira, 27 de julho de 2023

" UM OUTRO DIA ... A VIDA A RETOMAR O RUMO ... "


Hoje no "Dia dos Avós" ao que parece, a Teresa quis falar comigo em Face Time.
Já há algum tempo que não nos víamos, pois a mãe teve uns dias de paragem laboral, depois chegou o pai para o habitual período em Portugal, e com tudo isso, a Teresa não veio cá para casa.
Entretanto ocorreu o desenlace triste com o Chico, o gato bonacheirão que ela adorava e a quem podia fazer todo o rol de brincadeiras, festas e tudo o que lhe ocorresse, porque o Chico nunca soube o que eram garras ou dentes.
Agora, eu que sempre fui chamada de "avó dos gatos", já só coabito com o Jonas que sendo igualmente dócil e muito manso, é medroso, o que o torna arisco e distante.  A Teresa, o melhor que consegue é fazer-lhe uma festa fugidia quando ele passa por ela meio a correr, e esse facto, mesmo assim deixa-a exultante e eufórica.  "Avó, consegui dar uma festinha ao Jonas !"- diz-me feliz da vida.

Pois antes de falarmos o que quer que fosse, a Teresa tinha uma pergunta "séria" a fazer-me: queria saber se eu tinha feito o funeral ao Chico.
Não consigo descortinar qual o contexto mental em que na sua cabecinha se insere esta preocupação ...
Tentei desmistificar a questão, e garanti-lhe que tinha dado ao Chico tudo o que ele merecia, lhe tinha dado muitos beijinhos dela e lhe tinha dito que nós gostávamos muito dele.
A Teresa olhava p'ra mim com uma dificuldade imensa em conter as lágrimas que teimavam assomar-lhe aos olhos.  Estava, como costumamos dizer, "embaçada", entupida com a emoção que a tomava e quase a denunciava.
Perguntei-lhe : " Estás  triste,  meu  amor ?  " Que  sim ... ( só com a cabeça ).   "A  avó  também !"💔💔

Acho que lhe poderia ter dito muito mais, para a consolar, sei lá ... coisas do tipo "ele estava doente e agora já não sofre mais" ... ou, a imagem poética com que sempre reconfortamos uma criança na hora duma perda difícil : "foi para a estrelinha onde tu sabes que está a Bi e tu vais olhar para o céu à noite e descobrir, de certeza, a estrelinha mais brilhante que lá está.  É essa, tu já sabes ..."

A realidade e a dureza da vida, que sempre tentamos escamotear ... o sofrimento, que sempre tentamos poupar a quem amamos, também me bloqueou e emudeci.
Terão tempo por certo, para que a inocência seja perdida, e a idade adulta seguramente não os poupará dos escolhos que inevitavelmente terão que enfrentar.  E assim tentamos proteger como podemos, sobretudo as crianças.

Felizmente, facilmente o seu foco de atenção mudou.  
O  cão de que gosta muito e o gato preto também, diabético também ... o "gordo" como lhe chama ... que provavelmente será qualquer dia o novo desgosto da Teresa, pois a sua saúde é precária e a idade também já lhe pesa ... chamaram-lhe a atenção à chegada a casa.
O meu embaraço desfez-se, finalmente !

Por aqui, voltei-me de novo para Enya.  Já há tempos não escutava a sua música, ela que foi minha companheira em permanência, anos e anos.
Mas parece que Enya me está destinada quando busco conforto, interioridade, silêncio, cumplicidade.  Enya representa anos da minha vida, foi imagem de muitos momentos marcantes, e continuará por certo a sê-lo.
A sua voz liberta-me, apazigua-me, transporta-me a uma dimensão celestial, velada, ao silêncio e à penumbra dos claustros de uma catedral onde, no meio da loucura e da adversidade, nos reencontramos connosco mesmos !...

Anamar

terça-feira, 25 de julho de 2023

" O DAY AFTER ... "


O dia seguinte é o pior dia !
Acordar e perceber que nada daquilo foi um sonho mau, foi apenas um pesadelo que nos assombrou a noite, e que tudo o que julgámos ser verdade, o era de facto, e não se tratou simplesmente dum daqueles sustos que se desfaz em nada, quando finalmente abrimos os olhos e consciencializamos que um novo dia começou ... é alguma coisa duma dureza e duma crueldade sem tamanho !
Quando o torpor do sono nos abandona, e somos chamados a raciocinar, a reagir ... a voltar a viver com a realidade que nos cai em cima, aí sim, as forças objectivamente faltam e uma vontade louca de retroceder no tempo, toma conta do nosso espírito.

Depois duma noite de sono pesado induzido por uma droga qualquer tomada para que os olhos começassem a fechar, na renitência de se manterem abertos, acordei realmente vazia.  Vazia de esperança, vazia de vontade, vazia de vida. 
Fiquei quieta naquele limbo irreal duma realidade nova para lá daquela porta do quarto.  O silêncio era total, nem o Jonas nem o Chico vieram miar-me à cama, com uma precisão matemática, parecendo terem um qualquer relógio biológico, certo ao minuto.
Todos os dias eu vociferava irritada, por não haver uma margenzinha de tolerância para a dorminhoca da casa.  Mas o horário da insulina era religiosamente respeitado ...

Hoje não havia insulina a ministrar, ontem também já não, e amanhã e depois e depois e depois ... e nunca mais será necessário fazê-lo, porque, de quem a recebia, já nada resta ...

Revi tudo outra vez.  Fiz rewind das últimas horas da minha vida, das nossas vidas.  
O Chico foi internado na madrugada de domingo, em hipoglicémia declarada.  Aceitou entrar na caixa transportadora, ainda os primeiros raios de sol não haviam despertado.
O Jonas, em cima da minha cama desfeita, acompanhou com o olhar, na penumbra do quarto, as voltas anormais a essa hora do dia ... mas nem se mexeu, resolveu ficar, talvez já sem entender.
Ao transpor a porta e aceder à escada onde o Chico, sempre que podia gostava de ir, escutei os seus miados baixinhos e doloridos.
Um mau pressentimento assolou-me ... Voltaria o Chico a transpor aquele umbral, de regresso à sua casa ?
Mas segui, decidida, enfrentando o que viesse, o que estivesse pra chegar.  Afinal, sem comer há vinte e quatro horas e numa prostração total em que nem os olhos abria, não poderia continuar.  
A noite fora vencida, apesar de haver momentos em que julguei que ele ia desistir.
Eu, nauseada, com vontade de vomitar, só ansiava conseguir vencer a estrada e chegar rapidamente às urgências.  O percurso fez-se em silêncio.  O Chico não reclamava, sequer reagia .
Depois da observação prévia, foi-me comunicado ser preciso colher sangue, urina para análises, e fazer uma ecografia abdominal para observação de órgãos vitais associados obviamente à patologia diabética instalada.

Uma longa e ansiosa espera na sala onde ninguém mais estava, num hospital vazio e sonolento àquela hora, aguardando a saída dos primeiros resultados, parecia não terminar nunca.
Finalmente o Chico voltou a ser trazido para junto de mim, mas já com um colar isabelino no pescoço e as patas anteriores enfaixadas para a fixação de cateter com acesso.  
O médico anunciou que já viria falar comigo.
Sem posição e logicamente impaciente e em desconforto, o Chico procurava aninhar-se para deitar a cabeça na mantinha que cobria a transportadora.  Eu metia os dedos por entre as grades da porta e falava-lhe  baixinho ...  "É a  dona ... está  aqui  a  dona.  Não  tenhas  medo !"...
Finalmente chegou o veredito: o Chico tinha as análises totalmente alteradas. Uma glucose a menos de metade do normal, potássio mais do dobro, creatinina e toda uma série de parâmetros descontrolados.  Eu já nem ouvia as explicações do médico, só retive "tem que ficar internado, tem que ficar internado, tem que ficar internado ..."- uma espécie de ribombar de trovão nos meus ouvidos.
"Vamos tentar estabilizá-lo ; através do soro vamos fazer-lhe um choque de glucose, imediatamente. Dos resultados do estudo ecográfico ainda não há notícias.  É a médica ecografista que os fornece e provavelmente só amanhã".

Regressei a casa.  Do trajecto lembro pouco. Sentia-me um zombie. Uma sensação de frio, de solidão e de medo tolhiam-me.  Mas vim e cheguei a casa.
Comi uma torrada e um café e fui caminhar.  Precisava esvaziar a cabeça, se pudesse, deixar de pensar.
O que sentiria o Chico por lá ?
Notícias mais concretas, tê-las-ia ontem, segunda-feira, pela hora de almoço.

A noite foi de "apagão", pois a anterior tinha sido em claro, e aguardei ansiosa as informações que a médica me daria.
Por volta das duas da tarde, o telefone tocou e lembro-me de ouvir a médica dizer : "Venho dar-lhe notícias do seu príncipe.  Conseguimos estabilizá-lo e já trouxemos a glicose e o potássio a valores normais ( não sei se outros valores foram referidos ), mas não tenho boas notícias a dar-lhe.  O estudo ecográfico mostra um pâncreas alterado, o que indicia uma pancreatite e os rins, sobretudo um deles ( também já não sei qual ), mostrando sinais de falência.
Isto indica termos um animal numa situação muito grave que terá que ficar em internamento por tempo indeterminado e carecendo de vigilância permanente e sem qualquer qualidade de vida.  Não esqueçamos que tudo isto é potenciado pela diabetes de que sofre.
Portanto, de acordo com a equipa médica, deixamos e acatamos inteiramente o que venha a decidir !"

Sentia-me perdida, como se uma violenta paulada me tivesse atingido em cheio.  Uma decisão hedionda que me cabia agora tomar. 
Não podia ser egoísta e permitir que o meu companheiro de tantos anos continuasse limitado e a sofrer. Afinal eu defendo a eutanásia, e tenho esperança que também para o ser humano, lá haveremos de chegar.
Mas decidir, dizer "é agora", retirem-lhe o último sopro de vida, chegou a hora para o Chico ... é duma violência atroz, que infelizmente muitos de nós já experimentámos.  Eu própria já passei por vários destes momentos, e lembro cada um deles como a ante-câmara dos horrores ...

Mas havia que seguir adiante.  Voltei ao hospital e resolvi.  
Por ele, por mim, por todos nós que com ele privámos e que tanto o amámos, que com o maior amor e carinho possíveis, chegara mesmo a hora ...
Embrulhado numa mantinha, o Chico esteve no meu cólo, numa sala privada, alguns minutos só nossos.  Falei-lhe bem baixinho, falei-lhe do Jonas, da Teresa que o adorava, disse-lhe como a nossa casa, agora lá longe, ficaria vazia, triste e escura ... pedi-lhe que me perdoasse, disse-lhe como o amei, registei-lhe o olhar em meia dúzia de fotografias que farão parte do meu espólio enquanto viver ...
E deixei-o ir ... 
Será que me sentiu até ao fim ?  Será que confiou que eu o protegeria ... ou terá sentido que o traí ?

E hoje ... bom, hoje é o "day after", o tal dia dos horrores. O tal dia em que nem acredito ... o tal dia em que o espaço é demais, o vazio se instalou e a luz se apagou...
É tudo isto o que eu sinto, sem empolamentos, sem preocupação de medida ou proporcionalidade, sem receio que me achem exagerada, tonta ou piegas ...
Afinal, foi "alguém" muito meu que me deixou e partiu ...

Mas juro que ainda há pouco o vi passar por aqui ... 

Anamar

segunda-feira, 24 de julho de 2023

" MAIS UMA LUZ LÁ POR CIMA ... "



                                                                2012  -  24 Julho 2023


Primeiro são os olhos.  Sempre primeiro são os olhos e a ternura que passavam ao olhar-me. 
Até ao fim ...
Depois, as mãos.  As mãos são sábias.  Não precisam de voz p'ra exprimir o que sentem. As mãos ou as patas, tanto faz.  E era assim ... ele não saciava nunca a ânsia de um afago, quando nos puxava pelo braço, uma e outra vez. 
Era uma festa, e outra, e mais outra ... porque não sabia dizer "mais"... não aceitava que eu lhe dissesse "chega" ... e ronronava deliciado...
Finalmente vem o cheiro, o nosso cheiro que sempre buscam nos nossos lugares, nas nossas coisas, nos espaços que deixámos vazios ...
O cheiro que nos identifica, o cheiro que nos deixava ao roçar-se ... no cumprimento, na marca ... na saudação, e também na ternura e no reconhecimento .

Vazio está tudo agora.  Profundamente vazio ... pesado de vazio ...
Já não me vens esperar à porta, sempre com ar de aceitação e alegria, mesmo quando eu havia dito "a dona já vem ... espera só um bocadinho !"... e esse bocadinho tinha sido uma semana, dez dias ...
Não importava.  Eu já estava de novo, para passares pelas brasas chegadinho ao meu corpo, quando dividíamos o enfado da televisão.
Já não corres atrás da vassoura, ou me pedes água no poliban.  As gotinhas, uma a uma, eram um fascínio para um gato brincalhão ... 
E os teus passeios à escada, quando a porta se abria e a tua curiosidade te convidava à liberdade do lado de fora, também já não vão mais repetir-se...
Estou aqui a pensar se te despediste do Jonas, que agora anda meio perdido à tua procura, por certo sem perceber grande coisa. 
Da Teresa, que te adorava, sei que não te despediste.  Afinal, não houve tempo.  Ela passará a olhar-te, por cada noite, lá longe, na estrelinha ... a mais brilhante que o céu agora tiver !...
A Teresa, afinal, já vai coleccionando algumas "estrelinhas" lá por cima ... infelizmente ...
A esta hora, com o calor da tarde, estarias aqui no cantinho da secretária, deitado preguiçosamente, bem relaxado no sono profundo que fazias com gosto.  Eu, no computador, escrevia, ouvia música, ou simplesmente vagueava por aí ...
Percebia-se claramente que já sonhavas, e só contemporizavas em abrir um olho e arrebitares as orelhas, quando o teu nome era proferido bem mais alto ... "Chico, oh Chico" ... e era assim todos os dias ! 
Olho para lá e não te encontro. Só o tal vazio pesado e um silêncio tonitruante que me trespassa a alma ! 

Os teus ritmos, as rotinas, tudo aquilo que nos desenha a vida, todos os sinais, as memórias ... o que fizemos, dissemos, com que marcámos as nossas existências e as de todos os que se cruzaram connosco, são de facto o que fica, sempre ficará, e constroem as nossas histórias ... Até um dia ...

Partilhámos um pedaço delas, Chico.  As nossas estradas são feitas de parcelas, de pedaços indeléveis, pelo bem e pelo mal.  Acompanhámo-nos, dividimo-nos, "dialogámos" ... até chorei contigo, algumas vezes, em marés mais alterosas. 
Eras o meu gato XXL ... como eu dizia e como o eras, no princípio, antes da maldita doença te devastar.
Hoje, pelas quatro da tarde, no meu cólo adormeceste rumo a outra dimensão.  E eu fiquei mais pobre, muito mais pobre, porque um imenso pedaço de mim, do meu coração e da minha alma, também foi contigo.
Contei-te uma história. Falei-te do Jonas, da Teresa ... de mim ... e sussurrei-te que era injusto deixares-me por aqui ... tremenda deslealdade ... nem parece teu, Chico !!
  
Um dia talvez nos encontremos.  Acredito que vocês todos, os que foram adiante, hão-de esperar pelos que ficaram um pouco para trás.  Até é uma ideia esperançosa que me agrada e ajuda, nesta hora em que tudo é triste e escuro à minha volta ...
Havemos de fazer uma grande festa e eu prometo-te levar os "baguinhos" gulosos com que te aliciava quando queria que viesses atrás de mim ...  

Adeus Chico, obrigada por teres iluminado o meu caminho.  Sem ti, nunca nada mais vai ser igual !
Onde estarás agora ?  Será que nos vês daí donde estás ?  Já estou cheia de saudades ...
Descansa em paz !

Anamar

quinta-feira, 13 de julho de 2023

" AS PROFUNDEZAS DO NOSSO EU ..."

 


O ser humano é de facto uma máquina extremamente complexa.  Não me refiro, obviamente aos seus contornos físicos mas sim à impenetrabilidade da sua mente, da sua psique, daquele "mundo" hermético e inacessível que é o seu eu interior ... onde o alcance, o conhecimento e consequentemente a compreensão e descodificação, de tão impenetráveis, eu diria serem uma impossibilidade, mesmo para os especialistas entendidos na matéria, independentemente de disporem ao dia de hoje de infinitas ferramentas e metodologias desafiadoras, testadas e largamente ensaiadas.

De facto, o "eu" interior de cada um é um universo tão avassalador e escuro, que até à própria compreensão escapa.

Não sou estudada nessa área, não tenho conhecimentos seguros no domínio científico que me confiram qualquer grau de conhecimento ou autoridade que me permitam pronunciar a propósito.
Só tenho a informação do que vou lendo, associada a uma curiosidade pessoal, preocupação e interesse de pesquisa de auto-conhecimento, um interesse profundo em analisar procurando entender, em mergulhar sempre mais fundo para explicar determinados padrões comportamentais que reconheço em mim.  Um interesse genuíno e legítimo de "me" auto-conhecer, afinal ... 

Ao longo da vida, quase sempre me impressiono por exemplo, com inexplicáveis posturas de recorrência, aparentemente incoerentes e indutoras até de sofrimento repetido, mas que assumo teimosamente, como se houvesse um qualquer determinismo de vida que me comanda e contra o qual eu não tenho capacidade de enfrentamento.  
Apesar de as identificar, é como se no meu "computador" mental existisse impressa uma matriz emocional condicionante do meu comportamento ... um registo algoz que me pressiona, me empurra, dele eu fosse refém ... ele sim, com ascendente sobre a minha mente e a minha vontade, contra o qual eu perco a capacidade decisória, a força interior e o livre arbítrio ... 
Duma  forma absurda e ridícula ... como se eu fosse refém ou marioneta desse "mundo" das profundezas !...

Porque razão se repetem recorrentemente os mesmos erros, como se os perseguíssemos?
Porque razão agarramos os mesmos paradigmas posturais, fazemos as mesmas escolhas desastrosas, como se cultivássemos um masoquismo estranho e doentio do sofrimento ?!  Sabendo-os não obstante, erráticos !...

Exemplifico :  Porque razão, no meu percurso afectivo, o perfil de homem e ligação que sempre persegui e onde me refugio gratificantemente, corresponde a uma personalidade que já demonstrou não me fazer feliz?!
Contrariamente, duma forma racional, o perfil que teria toda a potencialidade para me trazer estabilidade e paz, é desprezado por mim.  Sempre !
E como tal, já se imagina o resultado prático das coisas.

O mesmo se passa com uma das minhas filhas. Parece ter uma tendência mórbida para o insucesso emocional e afectivo.  Busca, busca e não chega a lado nenhum, ou seja, privilegia escolhas que, à partida, ela já sabe só servirem para lhe encrencar a vida.
Reflecte, analisa, percebe claramente onde erra o caminho, não consegue afastar-se o suficiente para, usando de algum pragmatismo e frieza de cabeça, corrigir a mão e enveredar por outro trilho.
Desperdiça sempre, o que ( pelo menos do ponto de vista analítico de quem não está directamente envolvido ), lhe valeria a pena em detrimento de uma realidade cujo filme já conhece, que já visualizou vezes demais, que sabe sobejamente, a fará infeliz.  
Mas a atracção do abismo parece ser mais forte que tudo, e é manifestamente "suicida" ...

A mim, de certa forma isso foi explicado por uma psicóloga em consultas de psicoterapia.  Passo a expor :
Fui filha de um pai idoso.  Quando nasci o meu pai tinha 48 anos.  Viajante de profissão, foi, ao longo da vida, uma figura distante, "fugidia", alguém que eu via de quinze em quinze dias, alguém que não estava fisicamente, desde que comecei a ter consciência da vida.  
Era portanto alguém que nunca estava no imediato, cuja segurança e protecção nunca poderiam por isso, serem providenciadas em tempo real.  
Vivendo com a minha mãe exclusivamente, a qual assumia toda a responsabilidade da minha educação, foi-me incutida a incerteza do meu pai viver até à minha independência e autonomia.  Hoje, com a longevidade do ser humano, esta ideia não faz muito sentido, mas estamos nos anos cinquenta ... Sempre pairou, portanto, a ameaça do afastamento forçado da figura paterna, que consequentemente nunca foi segura e certa.  O meu pai era a figura masculina que na minha vida, entrava, saía ... digamos que perpassava por ali, como um "homem em fuga"...
Pois bem, psicologicamente o ser humano regista, fixa o paradigma de "homem" e tenta repeti-lo para si, ao longo da vida.
Pareceria que eu deveria escolher para mim, exactamente o oposto deste perfil que me fazia sofrer, ou seja, homens que me estabilizassem, com quem eu contasse, que fossem certos e seguros, homens que pela sua postura "presente" sempre me equilibrassem por me reduzirem as angústias e as incertezas ... Mas não !  
Ao que parece, eu busco nas figuras masculinas a repetição do que tive ... ou seja, as minhas grandes relações, sempre foram homens com um elevado grau de impossibilidade, alguém não certo, não disponível, alguém com quem eu nunca poderia contar até à exaustão, alguém que verdadeiramente nunca fosse "meu" e com quem eu na verdade jamais contaria a cem por cento !...
Isto, em detrimento de tudo o que afinal tornaria tão mais simples a minha existência, a tornaria teoricamente mais gratificante e preenchedora, na minha vida emocional e afectiva !

Mas eu estou numa faixa etária em que apenas reflicto, analiso, concluo ... e verdadeiramente já não me molesto com nada disto.  Foi assim, teve que ser assim ... pelos vistos há explicação científica para as coisas ...
Agora, ver alguém nosso a destruir-se com uma "maldição" titânica, em que apesar de todos os esforços, destrinças e alertas, continua a deixar-se atolar em profundezas inóspitas e escuras, como se num pântano mergulhasse, é desesperante e destruidor !!!

Anamar