domingo, 28 de julho de 2024

" ÁFRICA ... "

 


Enfim ... África é "aquela coisa " ... Não se descreve, não se explica, só se sente ...
É um misto de sensações e de emoções que nos extravasam e nos deixam impregnados até à alma, de algo invisível que nos desperta os melhores acordes da essência de nós mesmos.

Conheci África nos idos anos 70.  Vi-a mas não a senti, menos ainda a usufruí ... sequer desejei "tê-la".
Pela primeira vez deixara os meus pais, era uma recém-adulta, se é que os vinte anos se podem considerar já, como um período de adultícia.
Rumara a África onde não tinha ninguém, só eu e o homem com quem casara quinze dias antes.
Era uma menina acabada de sair do lar paterno, a minha vida havia experimentado uma reviravolta total.  Tudo mudara, tudo era desconhecido, enorme, avassalador, eu estava verdadeiramente num trapézio sem rede ... e África esperava.me.
Vivi dois anos em Luanda e aprendi, com algum sofrimento, a conhecer aquela terra ardente, de chão vermelho, de acácias e embondeiros, onde os limites e os horizontes estavam sempre mais além, onde o apelo da terra era um chamamento de cheiros, de cores e de sons estonteantes e irrepetíveis em qualquer lugar do mundo e onde a única palavra definidora era liberdade !...

Reencontrei África muitos anos depois, mas igual a si própria, envolveu-me de novo naquele abraço de carinho, de afecto, de calor humano, tão grande quanto aquele que abrasa a savana, tão generoso quanto o céu negro pontilhado de fogueiras acesas em cada estrela que o ilumina, tão misterioso e indizível quanto uma mágica que não se consegue alcançar nunca, porque os mistérios também não se explicam !

África é o cólo primordial, é o útero materno indefectível, é o irrecusável chamamento ás origens ... é o silêncio doce dum berço sem tempo, rumo à eternidade !...

Anamar

quarta-feira, 10 de julho de 2024

" PEDAÇOS "

 


A minha vida amodorrou como já aqui referi vezes sem conta.  É como se tivesse deitado para a sesta, debaixo de um chaparro lá pelo meu Alentejo.
Vivo assim uma coisa pouco "temperada", insossa, desenxabida, cinzentona ... E para mim, não há pior que isso, essa falta de cor, esses dias vividos por viver, numa espécie de mero cumprimento de horário, sem entusiasmo, vontade, alegria, sem perspectiva, sem horizonte ... sem sonho ... sem metas !

Sou uma pessoa de "copo meio vazio", muito desesperançada, sem grande capacidade de luta ou reacção, como o náufrago que acha que já não compensam mais braçadas, ainda que a praia se divise, à distância de mais um esforço.
Soçobro, ou julgo que sim, perante maiores exigências de vida. Não me aprecio particularmente, e tenho-me em pouca estima ou valorização.
Às vezes, quando olho vidas ao meu lado, penso: eu não conseguia, eu já tinha desistido !
Pareço buscar portanto, o mais fácil. Não tenho arcaboiço p'ra grandes coisas, na verdade, mas insatisfaço-me afinal com prestações fracas e pouco exigentes.  Sempre fui perfeccionista, e isso quase sempre arrasou e arrasa a minha vida, porque nunca serei suficientemente "boa" para cumprir os desígnios que teria como ideais, e o meio termo não me faz feliz !
Sou mulher de oito ou oitenta. Sou sôfrega, sempre fui, no viver.  Equilíbrio não é comigo, nunca foi. 
Revigoro-me com emoções fortes, não gosto do trivial, com dificuldade vibro com fasquias "normais" ... coisa de gente, comum, que não me preenche. 
Por tudo isto, e em análise mais pormenorizada e aprofundada, flagro-me como sendo uma out-sider da vida, desajustada às realidades duras e objectivas das pessoas ditas enquadradas.
Portanto, existe uma digladiação constante e objectiva, entre mim e mim, que, costumo dizer, começa de manhã ao pôr os pés fora da cama, e se arrasta até à misericórdia do sossego nocturno.  Um cansaço e um desgaste insano e sem tamanho !

As minhas filhas têm de mim, creio, uma imagem e uma opinião pouco generosa e benevolente.  Acusam-me frequentemente de ter procurado sempre uma perspectiva mais facilitista na vida, acomodada, pouco lutadora e ousada, procurando os caminhos mais acessíveis e menos massacradores.
Penso que acreditam que me posicionei no mais fácil, no mais cómodo, no menos trabalhoso e exigente.
Olham-me como a "dondoca" mimada que de pouco investimento, tirou grandes lucros, a menina sempre poupada às grandes exigências da vida, a qual nunca lhe exigiu esforços titânicos e merecíveis.
No deve e haver, permitem-se mesmo tecer considerandos, analisar e até opinar, quase sempre doutoralmente, sobre realidades do meu percurso pregresso, que obviamente, temporalmente não têm dados para poder avaliar.
Aquela coisa bonita de se ouvir às vezes em conversas ou até entrevistas mediáticas a figuras públicas, em que os filhos manifestam gratidão, ou mesmo enlevo, orgulho e admiração pelos pais que tiveram ... nunca correrá o risco de comigo acontecer ...
Cá está, admito que os meus pais de tudo fizeram pra me aligeirar o piso, filha única que fui, no seio de progenitores cultuando o desiderato típico das suas gerações, proporcionar aos filhos o que eles próprios não puderam usufruir ... uma protecção excessiva e perniciosa que me acompanhou por todo o meu percurso enquanto foram vivos, uma inépcia que me incapacitou de enfrentar com denodo, coragem e sabedoria, a vida real !
Mas que culpa tive eu disso ? Bem ao contrário, o resultado prático foi exactamente o inverso ... não fui preparada para encarar os reais desafios da vida que me esperaria cá fora, quando tivesse que enfrentar o abandono do casulo.  Não ganhei armas nem de defesa nem de ataque para a luta real do dia a dia que me aguardava, em suma fiquei pouco apetrechada para ultrapassar os obstáculos inevitáveis, menos ainda no meio de pessoas traquejadas para isso.
Qualquer uma das minhas filhas tem um "know how", um "savoir faire" em matéria de viver e sobreviver que fica a anos-luz de mim !  Apesar de por vezes lamentar a dureza, fico muito feliz, orgulhosa e tranquila por isso !
Afinal, penso que se calhar não as lesei, não as ajudando tanto quanto me reivindicam ou desejariam ...

Bom, este meu post de hoje foi uma deambulação pelo meu eu interior, deixando que a voz das profundezas do meu coração emergisse , como se me ouvisse, pensando alto ...

Anamar

terça-feira, 9 de julho de 2024

" O QUE FICA ... "

 


Costuma dizer-se que ninguém morre enquanto for lembrado na memória de outro alguém.  Verdadeiramente partiremos quando a sombra em que nos tornamos se vai esbatendo até que ninguém já fale ou pelo menos lembre, aquela pessoa.
E "aquela pessoa" será seguramente lembrada, pela pegada que deixou atrás de si ...

Este fim de semana tive comigo a tempo inteiro, a minha neta mais nova, dos quatro que constituem a minha sucessão. Tem apenas sete anos, mas arguta, atenta e com uma capacidade cognitiva, acredito, que fora de série. 
Hoje em dia, mercê do tipo de vida que se vive, dos desafios, das exigências da mesma, das solicitações, do convívio com que nos confrontamos, dos recursos a todos os níveis de que dispomos, as crianças são na generalidade vivaças, chamadas em permanência  à intervenção familiar e social, solicitadas a uma posição constante de afirmação e posicionamento face aos desafios diários que se lhes apresentam.  Por isso a Teresa será por certo par para os amiguinhos e colegas seus contemporâneos, da vida do dia a dia ...
Eu é que sempre me maravilho com isso ...

Quando a minha mãe partiu, a Teresa tinha apenas dez meses.  A minha mãe vivia então na mesma casa, onde a minha filha era cuidadora informal da avó, e onde veio a falecer rodeada do cuidado e do carinho inesgotável que lhe era dispensado em permanência, com cuidados redobrados ou não fosse a minha filha uma enfermeira totalmente e sempre dedicada a esse papel, acrescidos pelo facto de se tratar da avó.
Assim, desde que nasceu, à Teresa foi propiciado um convívio com a "Bi", de aproximação extrema, ainda que a saúde mental da minha mãe infelizmente viesse progressivamente a degradar-se. 
Chegada da clínica, quando nasceu, logo a mãe a deitou ao lado da bisavó, na cama articulada que ocupava, nunca subtraíu a filha ao amor e ternura que ela lhe devotava, preocupava-se em fingir que a Teresa era cuidada pela Bi, tentando assim ter uma atitude pedagógica em prol da avó, que dessa forma se sentia responsável pela bebé, fazendo-a sentir útil, valorizando o seu papel, o que no meio da demência que se veio acentuando, era um lampejo de felicidade para a minha mãe.

Como disse, quando a minha mãe nos deixou, a Teresa era apenas um bebé de dez meses, mas em permanência e para todo o sempre, a memória daquela avó persistiu na recordação da Teresa.
São as fotos, os vídeos, os lugares, as coisas da Bi... o que a Bi dizia, o que fazia, como fora, o que falava sobre a Teresa ... tudo é perguntado cem vezes ...
"Avó, posso beber café na chávena da Bi? "  "Esta é a árvore da Bi " ( referência ao jacarandá que permanece no jardim e que era o encanto da minha mãe ), "A Bi também tinha uma máquina igual a esta !" ( comentário a uma Singer existente numa casa onde entrou ) ...
A Bi está "na estrelinha", segundo as informações fidedignas 😌😌... a Bi até fala com ela de quando em vez, e aí pelos três anos, ter-lhe-á atirado uma boneca cá para baixo ... Nos jogos de futebol, a Bi, aficionada que só, "está triste, ou alegre, ou mesmo muito contente", face aos resultados alcançados, pelo seu Sporting, pela Selecção de Portugal ...
Enfim ... a Bi tornou-se completamente imortal !...

Reflicto sobre tudo isto.  Prendo-me a pensar como é o percurso humano nesta passagem por aqui...
É certo que a minha mãe sempre foi muito presente na vida das netas e depois na dos bisnetos. Generosa, bem disposta, prestável, disponível, com uma fonte inesgotável de amor para todos, sempre a família foi o único objectivo da sua vida.  Por ela vivia, por ela sofria.  Os seus sucessos eram a felicidade da sua existência, os seus desaires, fonte de preocupação doída.
Ao seu modo foi feliz ... uma felicidade que analiso, às vezes, como doentia e obsessiva.  Comigo, um pouco castradora mesmo ...
Os meus avós não lembro de nunca ter amado assim, ou sequer de eles terem permanecido na minha vida, com esta presença e esta força.  Do meu avô ainda lembro algumas imagens de ternura e carinho que se me perpetuaram, apesar dos sessenta anos que decorreram.  À minha avó não me liga ou ligou sequer um resquício de afecto até hoje.  Ao contrário, penso que não conseguiu deixar-me rigorosamente nada ...
Invejo a relação a que assisto entre avós e netos, na vida de pessoas amigas que estão por aqui, de como as suas presenças são indispensáveis e insubstituíveis, de como a ligação se cultiva, se alicerça, progride e se consubstancializa, de como a partilha se materializa e levará por certo "ad eternum", a presença dos avós na vida dos que ficam depois daqueles, um dia, terem também subido "à estrelinha" !...

O que resta de nós, o que nos sucede, o que nos fica em rasto é afinal apenas o que fomos, como fomos, como deixámos a pegada enquanto por aqui estivermos, de acordo com a capacidade que a nossa impressão digital tiver de se impor com alguma definição e nitidez ... absolutamente nada mais !...

Anamar

quinta-feira, 4 de julho de 2024

" TALVEZ SEJA URGENTE ... "


Dia 2 de Junho passado, foi, ao que consta, o último dia em que postei algo por aqui.  Mais de um mês entretanto decorreu.

Tenho tido um problema de saúde que pareceu mais grave do que afinal será, contudo trata-se de uma questão algo incapacitante na medida em que é limitativa da locomoção, além das dores que transmite.
Contudo o meu maior receio, que seria a existência de uma hérnia discal, dissipou-se, e as dores têm-se atenuado com as tomas sistemáticas e ininterruptas de analgésicos e anti-inflamatórios. 
No fundo trata-se apenas de um problema de comprometimento a nível da coluna, afinal apenas típico da idade, fruto dos maus tratos que ao longo da vida infligimos a nós mesmos e que nem sempre acautelamos ou valorizamos.
Toda essa situação me tem retirado ainda mais a disponibilidade física e emocional durante as últimas semanas, e se o meu estado de espírito nos últimos tempos não tem facilitado ou propiciado a minha vinda a este espaço, nestas circunstâncias, obviamente menos ainda.
O malfadado PDI, com que brincamos tantas vezes, mas que com o avanço do tempo, mais e mais se acentua na nossa realidade de vida !

Entretanto deixei também de fazer as caminhadas mais ou menos programadas na minha rotina semanal, o que não ajuda nem física nem psicologicamente a vivência de um percurso saudável .
A natureza, o ar livre, a mobilidade que activa todas as funções orgânicas e que durante a pandemia da Covid 19 consegui manter e respeitar integralmente, desapareceram, e se eu já atravessava um período propenso ao isolamento, à ausência de convívio, ao confinamento doentio entre as paredes desta casa, à falta de paciência  para ouvir mas também para falar ... agora tudo se agravou.
Exaspero-me facilmente com as conversas, diminuí drasticamente a tolerância aos diálogos e busco no sono o conforto de uma tão almejada quanto doentia paz.
Cada dia me levanto mais tarde, o que reduz os dias a um acordar seguido quase de um deitar, vingo-me e busco arrego numa alimentação desregrada, pois a compensação e o conforto vêm duma procura insana e desenfreada, sobretudo de doces ...
Sejam bolachas, sejam gelados, sejam sobremesas nas refeições, tudo o que for doce me aconchega e conforta ... 
Depois vêm os problemas de auto-análise, de auto-censura, de raiva pela inércia, pela  incapacidade absurda de ausência de reacção, como se me estivesse nas tintas pela falta de controle, de resistência e de lucidez face a um cavalgar de descalabro nos meus posicionamentos.
O peso mostra-se descontrolado, o desgosto face à devolução da imagem por parte dos espelhos, o desamor por mim própria, remetem-me a uma espécie de política de terra queimada em que até pareço castigar-me voluntária e masoquistamente, em que pareço querer punir-me selvaticamente de uma culpa fantasmagórica qualquer ...

E vivo triste, num crescendo de uma desistência face à vida, como se nada já me valesse a pena.  Apenas esperar que se cumpra o que me estiver destinado, num descrédito e num desapreço face a este pântano fétido onde me sinto mergulhada.
Nada me motiva, os sonhos inexistem, a esperança que nos ergue todos os dias sossobrou também, vivo como em hibernação, como se nada valesse a pena começar, porque já não tenho tempo útil de qualidade para o usufruir.
Espero, portanto ...
Os meus dias são assim, descoloridos, sem encanto ou fé ! Amanheço e anoiteço ... não faço quase nada além de deixar rodar os ponteiros do relógio.  Vivo estritamente de emoções passadas, de memórias e de mágoas também ...
Ah ... e de medos, como se um ameaçador monstro perverso me aguarde e me mostre que garantidamente, sempre será pior ... 

E assim arrasto os meus dias em silêncio, neste abandono doentio e assustador, com uma incapacidade sentida de conseguir driblar este percurso anunciado ...

Sei que estou doente.  Este calvário é muito meu conhecido, infelizmente, só que agora abate-se no caminhar do Inverno da vida, onde a escuridão já se instala, onde a via sacra ainda é mais dura de percorrer e as forças também já faltam ...

Terei que lançar um grito de socorro ... talvez seja urgente !...

Anamar

domingo, 2 de junho de 2024

" HOJE O DIA É DELES ... "

 




Junho apresentou-se hoje no calendário, ou seja, o mês que vai dobrar o ano de novo ao meio, iniciou-se com um tempo absolutamente estival.
Temperaturas acima dos trinta em vários pontos do país, céu limpo, ausência de qualquer perturbação atmosférica, lembram que apesar de ainda ser Primavera, o Verão está a espreitar à distância de três semanas.

Dia 1 de Junho é uma efeméride mais, no calendário dos Homens ... a comemoração do Dia Mundial da Criança.
Como sabemos, as Nações Unidas aprovaram a 20 de Novembro de 1959 a Declaração dos Direitos da Criança, proclamando-os mundialmente.
Assim, este dia tem por objectivo centralizar a reflexão na criança e nos problemas que exponencialmente, creio, afectam muitas delas em todo o Mundo.
Insere uma obrigatoriedade de pelo menos hoje, repensarmos estes seres que serão a continuidade, o caminho, o futuro !...

Quando eu era menina, pelo menos no meu núcleo familiar, este dia não era assinalado de nenhuma forma.  Não era mencionado, festejado, menos ainda beneficiado com as actuais prendinhas que hoje em dia se tornaram "obrigatórias ".
Já na geração seguinte, sou eu, que sendo adulta e já mãe, acorro a providenciar  a comemoração da data, sem grandes festejos, mas sem dúvida, não a ignorando.
Depois vieram os netos, as escolas lembram, se nós esquecêssemos o dia, a sociedade fomenta e lucra como com todas as datas propagandeadas em benefício próprio, e a tradição continua.
Pelo menos até que os mais novos comecem a olhar para a própria sombra, que é como quem diz, se comecem, com a pressa habitual dos jovens, a achar "gente muito crescida" ... e desvalorizem então a causa.  Se calhar, só até que eles próprios venham a ser directos intervenientes, agora já noutra condição.

Hoje, com 4 netos respectivamente com idades de 23, 20, 17 e 7 anos, na realidade só escapa a benjamim, e suspeito que talvez já não por muito tempo, tal o ar, os jeitos e mesmo a maturidade , que exibe, pouco espectável para a idade ...
Significa isto que a "calha" impiedosa do tempo avança, nesta " linha de montagem" que não se compadece com quem vai ficando pelos apeadeiros da vida !...
E apercebemo-nos que na realidade, o nosso protagonismo enquanto avós, já foi chão que deu uvas ...
Cada um segue os seus rumos, os seus sonhos, os seus projectos.  
As células familiares que habitam, quase sempre longe fisicamente das residências dos avós, não facilitam acompanhamentos regulares, presença expressiva, partilha em tempo real, da maioria dos acontecimentos das suas histórias.
Eles têm pouco tempo, a nós sobra-nos muito ... eles têm energia, força, vontade, sonhos ... nós estamos noutro timing ... eles vêem os projectos, os destinos que perseguem, a busca do amanhã, com os olhos e a fé  de quem acredita e tem um imenso amanhã ao dobrar da esquina ... O nosso amanhã já não é bem esse !...
Quase sempre me sinto / julgo dispensável ... quase sempre me sinto carta fora do baralho, quase sempre me sinto sem janela, balcão ou camarim donde possa assistir em privilégio, ao desenrolar das suas vidas ... quase sempre me sinto a "estorvar" ... 

Contudo, não quero / gostaria de ser injusta nas análises, tendenciosa nas conclusões.  Se calhar não será bem assim ... mas é o que sinto.
Precisaria ou gostaria de saber como é com os outros.  Gostaria de perceber até que ponto cometo erros de análise ou injustiças não cabíveis.  Mas fecho-me, isolo-me, silencio-me.
Cada vez mais reduzo os meus desgostos aos meus silêncios.  Não busco responsáveis ou culpados de nada.  Talvez os erros me sejam imputados exclusivamente a mim, que não semeei o necessário ... logo, não colhi o suficiente !...
Às vezes, muitas vezes, penso e repenso tudo isto, nas minhas insónias das cinco da manhã ...
No entanto penso também que não posso ser demasiado carrasca comigo mesma, demasiado intolerante com os meus erros, as minhas omissões ou os meus mal-feitos ... Afinal a vida tem tantos meandros, tantos vectores que convergem e determinam resultados dolorosos e imperfeitos ...

Bom, mas este post não ficaria completo para mim, ou não se justificaria, se nele eu não lembrasse as crianças de todo o mundo, particularmente aquelas para quem o melhor presente do dia de hoje, seja a concessão da vida, por mais um dia...
Refiro-me obviamente aos filhos sem pais, àqueles cuja realidade é o troar das bombas, dos explosivos, dos aviões que sobrevoam, dos mísseis que caem nos prédios que desabam...
Refiro os que lutam, tão pequeninos ainda, nas filas para a compaixão de umas conchas de sopa na lata que transportam ...
Refiro os que convivem com a morte, com a "normalidade" de caminhos sem rumo, com a dor da orfandade, da perda, do abandono, da solidão ...
Refiro os meninos que sonham em voltar às escolas que ficaram lá atrás ... os meninos que desenham sóis, arco-íris, flores e borboletas em pedaços de papel ... onde os aviões são transformados em pássaros livres e soltos ...
Ou apenas os meninos maltratados, violentados, negligenciados, abusados ... esquecidos, por uma sociedade sem amor, indiferente, de violência, miséria e sofrimento ...

E afinal, todos são crianças num mundo hipócrita, num mundo de faz de conta, cruel e quase sempre indiferente !... 





Anamar

segunda-feira, 27 de maio de 2024

" PERDIDA NAS CATACUMBAS ..."




"Nunca falámos muito, acho que nunca falámos nada. E não sinto necessidade de começar agora. O que poderia dizer? Existem séculos e séculos de silêncio entre nós e, debaixo dos séculos do silêncio, ocultas lá no fundo, se calhar esquecidas, se calhar presentes, se calhar apagadas, se calhar vivas e a doerem-me, coisas que prefiro não transformar em palavras, coisas anteriores às palavras..."

António Lobo Antunes


Este texto de Lobo Antunes caíu-me no papel, caíu-me no coração, caíu-me na alma. Logo hoje em que os cacos estão espalhados pelo chão !... Porque há dias assim ...
Não choro. Sequei por dentro. Que coisa estranha, pareço ter empedernido até às fímbrias do meu ser.
Pareço já não ser gente, vazia de emoções há muito despidas, como se um casaco fossem, sem serventia ...

Desisistir seja do que for, é difícil, é violento, é contra-natura, é como se nos amputássemos. Percebermos que o caminho parece ter fechado depois daquela curva e que não continua para nenhures, é desesperançoso, quase sempre dói muito.
Percebermos uma cerração densa, pesada, irreversível, cega-nos o coração.
Desistir é um acto de perda, de desaposta, de descrédito, de deitar a toalha ao chão, na percepção de fim de linha. Mas também de cansaço, às vezes dum cansaço mortal.
Desistir, surge-nos como uma fraqueza, uma incapacidade, uma inabilidade, um insucesso gigantesco. Uma fotografia rasca, uma história de déficit, um vazio atroz !
Mas ter envergadura para o entender, o olhar, o aceitar e o conseguir suportar nas costas, esse sim, um acto de coragem, um acto de humildade, um acto de submissão à vida.
Sim, porque esta nunca se compadece. Ordena, dita, decide. E cada um, aguenta-se ou cai ...

Desistir de pessoas então, é monstruoso. Sangra, deixa-nos em carne viva. Esfacela-nos por dentro.
Desistir de filhos ... não há palavras ditas ou inventadas, capazes de o traduzir.
Morre-se, morre-se mesmo por dentro. Sem remédio ou solução. Sossobra-se ao cansaço do determinado.
A princípio tenta perceber-se. É o período das interrogações infinitas, intermináveis. É o período da busca da compreensão, o período em que se revira o destino de trás para diante e de diante para trás, na busca de uma luz. É o período em que se esmurram as paredes que se nos erguem pela frente, em que se pontapeiam as pedras na esperança de as remover, em que se golpeiam as mãos na incapacidade de enfrentar as pontas das facas do que não se entende e em que uma impotência avassaladora é mais onda, que onda de borrasca em noite de tempestade !...

Mas a vida vai seguindo, coxa, aos trancos e barrancos, levando nas mãos um crer sem crer na verdade. E se o hoje ilumina o horizonte, o amanhã destrói toda a ânsia, toda a esperança, toda a convicção ancestral de que sempre depois da tempestade, o bom tempo se avizinha ...
E não se sai do mesmo sítio. E percebe-se a dureza das coisas, consciencializam-se os silêncios, a incompreensão das linguagens, a desafinação dos valores, o desacerto dos azimutes ... os silêncios de palavras estioladas nas gargantas ! Sem conserto, sem sentido, sem escapatória, em linguagem de surdos ...

E tanto para se dizer ... E tanta dor no coração para se cuidar. E tanta precisão de um olhar, de um afago, um mimo, um carinho ... um cólo ... tanta precisão de nos darmos no calor de um abraço ...
Impossível ! Já percebemos então, que impossível !...
Não há volta, não há solução, não há já verdades ! Uma irreversibilidade total instalou-se e tudo se transforma em desconhecido !

Cansaço, só cansaço ficou.
"Existem séculos e séculos de silêncio entre nós ... e lá no fundo, talvez apenas as tais coisas anteriores às palavras, que prefiro não transformar em palavras ... e que doem, doem horrores "
Mas tenho pena ... pena de perder esta batalha, talvez a última !...

Anamar

quinta-feira, 25 de abril de 2024

" MEIO SÉCULO PASSADO ..."



Hoje, 25 de Abril de 2024 , fui impelida a escrever. 

Sinto um misto de sentimentos e emoções que não sei muito bem explicar. Um aperto no peito, uma angústia, uma espécie de tristeza, um vazio, um buraco aqui dentro ... uma esquisita sensação de orfandade ... talvez nem eu saiba porquê ...

Festeja-se no país uma data absolutamente histórica, uma data indelével ... "a data" ... a primordial, a determinante, a matriz de um Portugal que nos arrebatou, nos envolveu e nos ensinou a sonhar, naquela  madrugada de Abril, faz hoje exactamente meio século.
Convidaram-me pra festejar, pra recuar no tempo, pra me deixar ir pelo sonho, Avenida da Liberdade abaixo, no que, estou certa, estará a ser uma nova expressão de unidade, de partilha, de felicidade colectiva.  Afinal, é o que se sente quando uma onda nos envolve, nos mergulha em turbilhão, numa embriaguês que nos transporta adiante, que nos aturde e nos leva do riso à lágrima, só porque a emoção é arrebatadora demais ...
São expressões inquestionáveis, são manifestações de massas que não precisam de justificações.  São fenómenos que acontecem, irreprimíveis, proporcionais àquela felicidade avassaladora que nos toma, que nos faz falar com quem não conhecemos, dar o braço a quem está ao lado, gritar até que a voz se oiça, cantar até à exaustão.  É como se um "porre" nos tomasse, como se o cérebro parasse e apenas quiséssemos viver o momento antes de acordar outra vez !
Recordo o Maio de 74, a que assisti, então por impossibilidade pessoal, apenas das janelas.  Engraçado, que, ao longo do tempo sempre lastimei assim ter sido.
Desta vez, fui eu que declinei.  E sem que o lamente !

Já escrevi alguns textos sobre o 25 de Abril, aquele, o de 74, aquele em que tudo pareceu possível, em que tudo foi tão intenso, que as águas oníricas  rebentaram as comportas  fechadas de uma vida,  extravasaram e inundaram.   
Já poemei sobre a avalanche que me submergia, já senti vezes sem conta um nó de ferrolhos na garganta e a escorrência incontida rosto abaixo, de lágrimas de emoção.
Já acreditei tanto em tudo, como a menina que antevê a felicidade que há-de experimentar com a boneca que acabou de ganhar ...
Eu ainda choro se escuto o Hino, choro se os acordes da "Grândola, vila morena" se ouvem ... choro se vejo pela décima vez  as reportagens de Salgueiro Maia à frente das tropas revoltosas ... nessa madrugada distante. 

Mas mudei, mudei muito.  Endureci, insensibilizei-me, tornei-me indiferente.  Acho que a velhice e o pragmatismo com que comecei a encarar a vida, me estão a roubar a parte mais bonita de mim, a parte mais encantatória e interessante, que advinha, creio, da capacidade de sonhar e acreditar. Uma espécie de faceta infantil, ingénua e pura.
Seguramente sou eu que não estou bem.  A minha mãe até ao fim da vida sempre foi doce, crédula nas coisas e nas pessoas, tolerante com as situações e esforçada por entender e aceitar o mundo possível.
Emocionava-se facilmente, tinha o coração ao pé da boca, como "soi dizer-se".  De lágrima fácil, sempre preservou valores e sentimentos de que nunca abdicou. 
Hoje, perante o rememorar das imagens da Revolução dos Cravos, quantas lágrimas já teria vertido pelo seu país !!!
Mas a minha mãe era uma pessoa boa !...

Anamar

quinta-feira, 4 de abril de 2024

" E AS SAKURAS AINDA DORMIAM ... "


Hoje, dia 1 de Abril, decidi descer ao terreno e escrever alguma coisa, neste absurdo e ruidoso silêncio que tem povoado os meus últimos tempos. 
Hoje até é o Dia das Mentiras, reza a nossa tradição popular.  Ainda assim, resolvi tornar verdadeiro este meu desígnio.

Em parte, na vida tudo tem uma explicação.  Sempre há uma lógica que preside a qualquer situação, consigamos ou não descobri-la e entendê-la.
Desta feita, a minha ausência neste espaço ( pela primeira vez na vida, desde que em 2008 iniciei as minhas andanças como hipotética escritora por estas paragens, criando este blogue intimista, sem qualquer pretensão assumida que não fosse apenas pôr no papel os meus estados de alma ) ultrapassou o razoável e até o aceitável ... um mês inteiro totalmente em branco !
Nem eu mesma, se mo referissem como possível, acreditaria em tal despautério !

Ora bem, uma série de eventos, de coincidências, de acontecimentos, estão na base deste meu desligamento das lides literárias.
Tinha marcada para o meio do mês de Março, uma saída para o outro lado do mundo, nove fusos horários para oriente, ao país do sol nascente, no cumprimento de um sonho antigo, não só conhecer um país, um povo e uma cultura totalmente distintos de todos os que conhecemos aqui pelo nosso quintal, mas fazer o dois em um com esta viagem :  agregar a este desiderato, o sonho de poder desfrutar de um espectáculo que suspeito único no mundo ... a floração das sakuras, ou seja a floração inebriante e incomparável das cerejeiras, árvore endémica proliferante em todo o Japão.
Este acontecimento anual prevê-se acontecer por todo o país, entre meados de Março e Abril, com início variável de cidade para cidade de acordo com a sua localização geográfica.  Constitui, por assim dizer, um marco histórico que para os japoneses define como  o início da sua Primavera, sendo mesmo o dia 27 de Março, considerada a sua data oficial.
As famílias reúnem-se em parques e jardins, fazendo piqueniques debaixo das árvores, cuja floração não dura mais que uma semana a dez dias, após o que os espaços se atapetam das pétalas brancas e rosa numa imagem idílica e onírica.

Pois bem, adoeci algum tempo antes da partida, tendo sido inclusive colocada em risco a concretização da mesma.  Pela primeira vez, do que me lembro, uma afecção respiratória conseguiu levar-me à cama. 
Muita medicação tomada, com a agressividade terapêutica imposta na urgência do tratamento, desorganizou-me por completo todo o equilíbrio orgânico, fragilizando-me e retirando-me consequentemente as resistências.  Fui portanto para o Japão com as capacidades físicas a cinquenta por cento, o que obviamente, só por si, me prejudicou toda a dinâmica da viagem.
Tive que enfrentar uma rotina exigente e inteiramente diversa, um clima inesperado e excessivamente frio em relação ao previsível, uma alimentação completamente adversa para quem ainda por cima é dificilmente adaptável a novos cardápios, ritmos de sono igualmente complicados não só por curtos mas porque vividos no fuso oposto ao habitual ... em suma, as exigências de uma viagem em grupo, experienciada não nas melhores condições físicas.

E depois, há ainda a considerar, pelo menos assim o senti, a difícil gestão das expectativas, colocadas numa fasquia, confesso que elevada.
Sempre vivo o que me motiva, a duzentos por cento.  Só assim, a perseguição e a concretização dos desejos, se me justifica.
O Japão está como se sabe a muitas milhas de distância, a muitas horas de voo ... a muitos sonhos sonhados em noites de insónias ...

Mais que conhecer um país que me impressionou em organização, disciplina, inovação, capacidade laboral ... um país a sério na planificação e na concretização, descobri uma terra de espiritualidade, interioridade, delicadeza e contemplação. 
"Precisamos de muito pouco para sermos felizes !"  ou, "Temos muito mais do que precisamos !" ... valores difundidos pelo xintoísmo e reiterados pela filosofia budista, norteiam e orientam o povo japonês no trilho da mitologia em que o Céu e a mãe Terra são as principais divindades e em que o Homem está em permanente ligação com o culto e o respeito  pela natureza.

Ironia do destino ... embora globalmente faça um saldo positivo desta minha viagem, não pude concretizar o sonho primordial que ao país do sol nascente me levou : o deleite da visão de uma terra totalmente engalanada e pintada de branco e rosa, em abóbodas fascinantes de sakuras em flor.  Anormalmente fria esta época do ano, em que até mesmo a altitudes invulgarmente baixas apanhámos neve, motivou a que, contra o expectável, na generalidade as sakuras ostentassem apenas  borbotos fechados ao longo das ramagens ainda despidas, e não mais.  
Pontualmente algumas árvores já exibiam flores abertas, mas não é isso que torna icónico e único o espectáculo que está na base da demanda ao Japão, de turistas de todo o mundo, nesta época do ano ...
Portanto, a razão maior pela qual enfrentei não nas melhores condições esta aventura, frustrou-se completamente. 

O Monte Fuji, que também era para mim, um ponto alto da viagem e que vê-lo ou não, é perfeitamente aleatório, dependendo das condições atmosféricas com que sejamos presenteados, também esteve em risco, com a persistência duma cerração quase total.
Felizmente, depois de um dia de tempestade indescritível e chuva copiosa que nos roubara todas as esperanças, amanheceu uma nova madrugada, corroborando a certeza de que também no Japão, depois da tempestade vem a bonança !... 
Um dia claro, imaculado, de céu azul, sem uma nuvem no horizonte e iluminado por um sol radioso, desvendou-nos, manhã cedo, assim do nada, como se de um quase milagre se tratasse, a tão desejada montanha coberta de neve perpétua, grandiosa e altaneira ... o Monte Fuji, aos nossos olhos numa aparição compensatória, como se me pedisse desculpa pela tristeza com que regressei, de um país onde já não voltarei seguramente !...

Anamar

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

" A MARCHA DOS DIAS "


" Quem nos faz novos, são os velhos ... e quem nos torna velhos, são os que vão partindo"... 

Mais ou menos foi esta a frase ou pelo menos o sentido da ideia que li, algures, escrito também por alguém cuja autoria já não consigo reportar.

A correcção do pensamento exposto é duma assertividade absoluta que contudo escapa quase sempre à nossa reflexão.  Poucas vezes, ou nenhumas, pensamos que nas nossas vidas nos sentíamos jovens, novos, esperançosos e com horizonte, enquanto tínhamos uma "linha da frente" que ocupava a prioridade dos lugares de partida.
De facto, enquanto a fila à nossa frente, largamente recheada ia caminhando com a lentidão desejável, não nos sentíamos "em perigo". Afinal, porque desígnios absurdos do destino haveríamos de saltar lugares, desrespeitar a ordenação ditada, antecipar ilogicamente o expectável ??!!
Éramos então jovens, quando os pais, os tios, os avós, às vezes até os bisavós, respondiam à chamada por aqui.  Éramos novos, não cabia nas nossas conjecturas sequer, a suposição que poderia ser subvertida a chamada "ordem natural" das coisas ...

E o futuro ... porque existia muito futuro então, com mais de dois terços para andar contra apenas um terço já percorrido ... espreitava risonho, sem demais sustos, medos ou mesmo preocupações.
Era o tempo dos sonhos, dos projectos, das ideias fantásticas em apostas de caminhos bem sucedidos.  
É o tempo dos amores, das emoções avassaladoras, da entrega sem restrições, em dádiva total, acreditando, sem nuvens a escurecer o céu ...
Era o tempo do valer a pena, o tempo em que a energia e a disposição nos emolduram os dias, os tempos em que para cada preocupação ou dificuldade, parece existir ao virar da esquina uma solução satisfatória, e em que o cansaço não nos desarma ... nunca !
Somos novos, o timing é agora, a esperança ilumina-nos a alma e somos craques no salto de obstáculos ...
Acreditamos que tudo tem solução, tudo se ultrapassa ... claro que com mais ou menos trabalho e dedicação obviamente, mas em que nada nos parará ...

É a Primavera da vida.  Manhãs radiosas, promissoras, em que de tudo somos capazes, em que parece haver uma possibilidade ilimitada para as realizações que perseguimos, pessoais, familiares, profissionais e outras ... Em que acreditamos ... fácil, fácil ... claro que somos capazes ... porquê não ??

E assim, com aquele ímpeto, aquela aposta, aquela alegria com que despertamos em cada manhã, saltamos da cama com a determinação de vencer mais uma etapa, mais uma prova ... Não é hoje, é amanhã ... não é agora, será mais tarde ... mas lá chegaremos, afinal há tanto chão para andar !...

Só que os dias passam céleres, os anos correm depressa demais, a fila que era compacta começa a desfalcar-se ... para desgosto nosso.  Partem os avós, partem os tios, depois os primos mais velhos ... partem os pais ... partem os primeiros amigos, os vizinhos que nos compunham o quadro relacional diário.
Começa a haver demasiadas ausências de resposta à chamada ... demasiados lugares vazios ...
"Mau ... o que é isto "? Como não demos por isso, distraídos que estávamos ?!...
Por cada um que sai, outro dá um passo em frente ... E lá vamos nós, continuando na engrenagem ...

A casa envelhece, as pessoas que cruzamos envelheceram, os corpos, os cabelos, os olhos, os ouvidos, os dentes ... até as mãos, as benditas mãos que eram esguias, elegantes, sensuais no que faziam e no que tocavam, deram em se pintalgar sobre a flacidez que se acentua ... tudo, de um dia para o outro parece, deu em nos fazer negaças e sinais de luzes ... Atenção, confiram o lugar na fila ... analisem os espaços devolutos já, à frente dos vossos pés !!!

E deixámos de ser novos.  Os que partiram encarregaram-se de nos projectar adiante !
Se dúvidas tivéssemos, aí estão as dores, as limitações, o caminhar com esforço, o arfar se o caminho se encomprida, as insónias que se tornam companheiras inseparáveis ... 
Aí está a solidão, a mágoa pelo percebido, o cansaço, a falta de paciência para nos suportarmos e suportarmos os outros ...
E progride um recolhimento interior e uma desmotivação, mesmo pelas coisas que nos mobilizavam, com as quais vibrávamos, nos levavam a sorrir, empolgados quase sempre, não há assim tanto tempo atrás ... parece ...
E percebemos que envelhecemos definitivamente quando já não temos mais ninguém por quem chorar ...

Não será assim com todos, eu sei.  Há pessoas que, felizmente para elas, sempre vêem o "copo meio cheio", plenas de uma positividade permanente, face mesmo às contrariedades. Abençoadas maneiras de ser e sentir !
Eu sou uma pessoa extremamente negativa, dificilmente ultrapasso as barreiras sem um desânimo e um sofrimento atroz.  Reconheço que talvez exorbitando a dimensão dos obstáculos.  Antecipando-os mesmo, o que nada de saudável tem.  Fui demasiado protegida talvez. Tive os caminhos demasiado acolchoados também, o que indiciaria um golpe de sorte no destino. 
Engano.  Bem ao contrário, quem me quis ajudar, ou facilitar a marcha, acabou retirando-me as armas e os mecanismos para a luta e para a confrontação na selva diária que é a vida.  Acabo com menos capacidades a todos os níveis, do que quem aprende a esbracejar, a cair e a levantar, a não sucumbir.
Olho as minhas filhas, artilhadas até aos dentes para enfrentarem com denodo aquilo que lhes boicota os caminhos, que nem sequer têm sido de brisa e água fresca ...
E elas lá vão ... Tem dias que me pergunto como ?!

E assim vamos.  Assim vou... Penitencio-me pelo que escrevo.  Reconheço serem "uma seca" estes desabafos cansativos, enjoados e saturantes, como aquelas pessoas que encontramos na rua e sempre e só puxam do cardápio das doenças e só delas falam ... 
Eu sei que é assim, mas estou "atolada" em sentimentos negativos, colados à pele, os quais não consigo sacudir da alma e do coração, que me esgotam e exaurem inapelavelmente.
Afinal é esta a marcha dos dias ...

Anamar

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

" EU NÃO DEIXO O VELHO ENTRAR !... "

 


Esta é a resposta que o admirado nonagenário actor Clint Eastwood deu ao cantor country Toby Keith, quando lhe perguntou qual era o seu segredo para se manter activo e brilhante, na sua idade.
"Quando me levanto todos os dias não deixo o velho entrar "

O meu segredo é o mesmo desde 1959 : mantenho-me ocupado.  Nunca deixei o velho entrar em casa.  Tive que arrastá-lo para fora, porque o cara já estava confortavelmente instalado, me dando um pé no saco a toda a hora, não me deixando espaço para nada além da nostalgia.

Você tem que se manter activo, vivo, feliz, forte, capaz.
Está em nós, na nossa inteligência, atitude e mentalidade.  Somos jovens com independência.  Você tem que aprender a lutar para não deixar "o velho entrar."
Aquele velho que nos espera, parado e cansado na beira da estrada para nos desanimar.
Não deixo entrar o velho espírito, o crítico, hostil, invejoso, aquele ser que perscruta o nosso passado para nos amarrar com queixas e angústias remotas, traumas revividos, ou ondas de dor.
É preciso virar as costas para o velho fofoqueiro cheio de raiva e reclamações, sem coragem, que nega a si mesmo que a velhice pode ser criativa, determinada, cheia de luz e protecção.

Envelhecer pode ser prazeiroso e até divertido, se você souber usar o tempo, se estiver satisfeito com o que conquistou e se continuar tendo a ilusão, acrescenta Clint Eastwood, uma lenda com dez nomeações para os Óscares, dos quais ganhou quatro estatuetas, todas elas depois de já ter ultrapassado o limiar dos sessenta anos.  A isso se chama "não deixar o velho entrar em casa " ...

Essas palavras atingiram o cantor country Toby Keith tão profundamente que o inspiraram a compor a música " Don´t let the old man in ", dedicado ao lendário actor.

Nota : Tradução brasileira 


Clint Eastwood é desde sempre uma das minhas referências na sétima arte, primeiramente como actor, depois como realizador ou director cinematográfico.
Com ele sonhei em variadas películas, das quais guardo memórias inesquecíveis. Filme estrelado por ele, era garantido que seria assistido por mim. Era uma época em que, por razões particulares, eu estava extremamente desperta e era frequente espectadora semanal de uma sessão de cinema.
Era programa, eu diria que quase obrigatório, dos sábados após o jantar, até mesmo em sessões da meia noite. Depois de um jantarzinho simpático e feliz, rumava quase sempre a uma das nossas salas de espectáculos em demanda do filme já previamente escrutinado durante a semana e eleito para encerrar o dia.
Foi uma altura em que, mercê da assiduidade, eu estava completamente entrosada na programação semanal em exibição.
Hoje, pouco vou ao cinema. Estou totalmente por fora do cine cartaz por sala, na nossa cidade.
Os actores que ainda ocupam lugar na minha cabeça e coração, são aqueles "monstros" cujos nomes tenho marcados dentro de mim. Quase todos já ultrapassaram o seu culminar apoteótico ... quase todos são "lendas" que preencheram, com as histórias que me contaram, dias felizes da minha vida ...
Eastwood foi um deles, um "grande", um enorme senhor, detentor dum talento que ainda hoje, já nonagenário o torna um ícone, uma figura mítica, um expoente inalcançável nesta arte que nos leva ao sonho, que nos aligeira os dias, nos subtrai, quantas e quantas vezes, ao cinzento desinteressante e cansativo de realidades pouco compensatórias e gratificantes ...
Invictus, Gran Torino, Cartas de Iwo Jima, Million Dollar Baby, Mystic River e o inesquecível e maravilhoso As pontes de Madison County, foram películas vistas e revistas que sempre me empolgam e preenchem por cada vez, como se da primeira se tratasse ...

Clint Eastwood é uma personagem absolutamente incontornável, multifacetado e completo. Dez indicações para os Óscares, das quais venceu quatro, é a única pessoa nomeada para melhor realizador e melhor actor numa mesma película.
Lúcido, capaz, objectivo, mantém uma performance invejável para os seus já vividos noventa e três anos, sendo inolvidavelmente uma honrosa referência para a sétima arte mundial.
O seu segredo, parece resumir-se a uma mente laboriosa e ocupada, que se recusa a parar, a uma nunca considerada desistência, a um foco permanentemente perseguido, a uma criatividade incessante, a uma aposta e uma assertividade espantosas bem como uma alegria irresistível de viver e de sonhar ... em suma , um empenho e uma vigilância para "não deixar nunca, o velho entrar "!!!
Absolutamente admirável, fantástico e fascinante !!!

A propósito de Eastwood, lembrei outra figura igualmente ligada ao mundo da magia e do sonho, desta feita brasileiro, um ícone novelístico, um actor igualmente carismático, que também completará em Março próximo, 94 anos ... Lima Duarte cuja vida parece ser muito idêntica à de Clint Eastwood.
Também ele não se entregou ao inevitável desgaste dos anos, também ele recusou sossobrar às inevitáveis limitações da escorrência do tempo, também ele continua, tanto quanto se conhece, a ocupar o seu cérebro, a exercitar as suas capacidades físicas, a viver intensamente numa fazenda que possui perto de S. Paulo, mergulhado na natureza, onde se refugiou definitivamente, aquando da pandemia de Covid.
Ali, usufruirá seguramente de excelente qualidade de vida, viverá uma existência saudável, partilhada com os seus cavalos, cães, as suas infinitas memórias e a paz inerente a uma vivência plena, realizada e feliz ...
Ali, certamente continuará a considerar-se útil, importante na vida dos seus e da sociedade, e provavelmente até continuará a alimentar e a regar as suas fantasias, já que o sonho comanda a vida !...
Também ele fechou , obviamente, a porta a que o "velho" pudesse entrar !!!...

Anamar

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

" SOBRE TUDO E SOBRE NADA ... "

 


Acho que já escrevi sobre quase tudo.  Por "tudo", entenda-se aquilo que me mobiliza, sejam acontecimentos do dia a dia, sejam perfis humanos que me tocaram, sejam experiências que no fundo do meu ser me acompanham, me empolgam, me assustam, me emocionam ... enfim, o mix de sentimentos que ao longo dos tempos vão recheando a minha vida !
Talvez por isso sinta em mim, nos últimos tempos, um vazio de necessidade de escrever.  Sempre acho irrelevante, sempre acho que não acrescento ou retiro nada de importante a qualquer tema, sempre me parece redundante qualquer posicionamento meu, por o considerar insignificante, sem interesse justificativo, ou mesmo desnecessário.
E o que tenho escrito, do que já escrevi, raramente rebusco para lembrar, raramente releio achando que vale a pena, raramente tenho paciência para revisionar, anos decorridos, uma outra vez,  o que quer que seja !
Isso aqui neste espaço, mas também em memórias mais longínquas.  Até porque desinserindo de contextos aquilo que se escreve, correm-se graves riscos de avaliações erróneas ou interpretações falsas.
Ontem, falando com uma pessoa conhecida, dizia-me esta que relê com frequência os diários que ao longo das décadas e décadas da vida, tem escrito.  Referia ter vinte e tal diários escritos, desde a juventude, quando ainda se passeava pelos bancos da faculdade, aos quais acede.
Acho isso fantástico e até interessante.  Eu não tenho paciência para tal !

Precisava dar uma virada na minha vida.  Está demasiado monótona e cinzenta, sem nenhuma ou pouca emoção, está cansativa, sem graça, totalmente rotinada, sem colorido ou loucura.
Contudo, embora tenha esta clara visão sobre o estado das coisas, falta-me totalmente o "combustível" para atear uma labareda interessante ... e o motivo prende-se exclusivamente ao óbvio peso do tempo que, como a minha mãe dizia , tudo dá e tudo leva ...
Não será, é claro, uma questão exclusivamente minha.  Muita gente, ou quase todos, referem exactamente queixas semelhantes, uns com mais, outros com menos capacidade reactiva, coragem e fé para apostarem na reversão possível deste lastimoso estado de coisas.
Eu, sou das mais tristes, das mais desistentes, das mais revoltadas ... acabando também por ser ironicamente, das mais acomodadas ... como se a minha insatisfação fosse na proporção daquilo que a vida me deu, daquilo que vivi, dos sonhos que criei, dos filmes que inventei ... Tudo proporcionalmente grande, tudo inevitavelmente irreversível, tudo em excesso, tudo imenso, como a pessoa extravasante e intensa que sempre fui. 
Fui ... e que não consigo ser mais !... "tudo dá e tudo leva ... "
Tudo  suficientemente  "dramático",  como  já  me  disseram ... tudo  astronomicamente  pesado !...
E como acho que falar destas queixas, destas insatisfações, deste cansaço é verdadeiramente uma "pepineira" que não interessa a ninguém, remeto-me mais e mais ao meu silêncio, ao meu canto, ao meu lugar.  As pessoas, individualmente, nesta vida tão conturbada, já têm chatices que cheguem, problemas que lhes tirem o sono, preocupações que as acabem, e vão-se também isolando, vão também encontrando pouco espaço ou disponibilidade nas agendas diárias, vão procurando formas construtivas de viver e sobreviver, e de não se deixarem sucumbir pelo cansaço, pelas angústias, pelas preocupações e pelo cinzentismo de vidas, quase todas já, crepusculares !  E fazem muito bem !

Entretanto ando cada vez mais irritada, com uma postura noticiosa, dos mídia, no relato de acontecimentos que vão ocorrendo na nossa realidade diária.  Trata-se fundamentalmente não dos conteúdos, mas da forma de abordagem das questões.  
Passo a explicar :  a terminologia adotada passou a ser de "um idoso, uma idosa ... " sofreu isto, aquilo, aconteceu-lhe isto ou aquilo ... etc, etc.
Deixou de ser "um homem, uma mulher ..."
Uma criança, está perfeitamente identificada, um jovem, também.  Até aos cinquenta continuamos como  "homens ou mulheres", designação de imediato extinta dos sessenta para cima !  
Aí, não há safa, adquirimos automaticamente o rótulo do idoso ... do "velhinho", do "empata", do "cota" pejorativamente falando.  
E é um desespero, porque ainda que provavelmente bem escorreitos física e mentalmente, quantas e quantas vezes, caímos em desgraça e passamos a fazer parte da turba cinzenta do pensionista, do desocupado, de quem não tem nada p'ra fazer, do que está cá para onerar o sistema ... do que "empata" ... finalmente, do sujeito passível de uma qualquer desgraça a engrossar a estatística do "idoso" !!!

Bom, isto foi apenas um desabafo, ironicamente aqui abordado para aliviar o peso da malfadada conotação ... da incómoda injustiça social !
Que saudade do tempo em que em última análise, eu era apenas "uma mulher de tantos anos "... etc, etc, etc !!!...

Anamar

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

" SEMPRE SEREMOS AS NOSSAS MEMÓRIAS ... "



O tempo fechou totalmente.  O meu horizonte, aqui do alto da minha janela, circunscreveu-se apenas aos prédios próximos.  São cinco horas duma tarde gélida e chuvosa.  Estamos sob a influência duma frente glacial polar que coloca Portugal sob condições adversas, com temperaturas severas bem abaixo dos valores normais para esta época, embora estejamos como se sabe, em pleno inverno.

É segunda-feira, dia de caminhada, hoje não realizada.  Havia comprado um saco de comida para os gatos da colónia da mata, só que, deixar lá o saco sob a chuva que cai poderia comprometer o seu aproveitamento.  Assim, levarei amanhã em que não se prevê mau tempo.
Aqueles mais de vinte animais que ali vivem, dão-me conta da cabeça e do coração.  
Se no Verão é aprazível a zona da mata onde estão os abrigos engendrados pelo senhor Sérgio que deles, à custa de dedicação, esforço físico e monetário, cuida diariamente, agora no Inverno, com este tempo carrasco que se faz sentir, aquilo vira um pesadelo de frio e humidade ... pobres bichos !!!
Estou aqui sentada frente ao radiador que o Jonas não permite que eu desligue, a pensar nos desgraçados que não nasceram em berço de ouro ou que o destino jogou na rua, pela maldade e insensibilidade humanas.  E dói-me a alma !

Num dia, como disse, perfeitamente insuportável, e felizmente sem nenhuma necessidade de ir à rua, fiquei por aqui a escrever, a ouvir música, a passear-me pelo computador, sem objectivo definido.
Entre fotos arquivadas de pessoas conhecidas ou amigas falecidas no período da pandemia, apareceu-me a foto do Rui Mendes, aquela figura pequenina, bastante desengonçada, mercê do problema físico que o atormentava.  Artista plástico que trabalhava aqui na Câmara da Amadora, não sei bem em que área, sempre com um aspecto negligenciado mesmo a nível de cuidados de higiene e limpeza, o Rui  frequentava o Pigalle a que eu também ia para o café da manhã.  Convivia pouco, as pessoas evitavam a sua companhia.
O Rui era portador de nascença, duma doença grave e rara, do foro hemático  que desde sempre lhe lera a sentença duma esperança de vida limitada, inclusive já atingida.  Semanalmente deslocava-se ao Hospital de S.José onde levava uma determinada injecção sem a qual a sua vida perigava.
Sempre vivera só com a mãe, a qual esteve acamada durante alguns anos, e era ele que a tratava e a rodeava do conforto possível.  O Rui, mercê daquela responsabilidade, tinha então a sua sobrevivência como o foco da sua vida. Até que ela partiu.
Após o seu falecimento o Rui ficou só e mais abandonado ainda.  
Depois veio a Covid e fomos deixando de saber uns dos outros. A tertúlia e o convívio diário que se ia mantendo com aqueles que acabavam tornando-se figuras familiares, extinguiu-se.
Os sucessivos confinamentos, encerraram-nos entre quatro paredes, quebraram-se laços, extinguiram-se pontos de encontro, fecharam até definitivamente muitos outros.  E do Rui e da sua bonomia e boa disposição, no rosto sorridente com a barba de "pai natal" bem branquinha, fui deixando de ter notícias.
Até que, quando já deitávamos um pouco a cabeça de fora, indagando junto da Cátia do Pigalle, soube acidentalmente que o Rui também partira, num qualquer dia de Novembro de 2020, mergulhados que estávamos em plena Covid ...
Entristeci.  Fiquei mais pobre e mais só. 

Não mantive com ele nenhum laço privilegiado de amizade além do que me conferia a tertúlia quase diária de alguns momentos, em conversa de circunstância ... pouco mais.
Não interessa ... o Rui atravessou num determinado período a minha vida, e é hoje mais um lugar vazio nas memórias que ao longo dos tempos me compõem a existência.
Que esteja em paz ! 
Mais de três anos volvidos, quem lembrará hoje o Rui Mendes ?!...😢😢

Anamar

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

" FIM DE LINHA ... "

 


Ontem, olhando os títulos que circulam nos tablóides, deparei-me com o do suicídio de dois jovens respectivamente de quarenta e sete e trinta e oito anos, figuras públicas ambos, do nosso meio artístico. 
Ambos modelos, artistas na área da ficção, ambos com filhos ... aparentemente com histórias de vida em fim de linha.
Ela com três filhos, com um arrastar de uma vida sem escapatória, da qual terá desistido.  Ele, com um bebé de três anos, e mergulhado, também ao que parece, numa depressão profunda que o terá atirado para o tapete ...

Até aqui, infelizmente são apenas situações mais comuns e frequentes do que o imaginável, inseridas num panorama que quase sempre nos escapa, obviamente porque não se referem a ninguém com visibilidade mediática.
Mas são seguramente situações extremas de dor, de cansaço, de desistência, para as quais a sociedade foi absolutamente incapaz de ter uma resposta preventiva, atempadamente. 
São dramas sangrantes bem frente aos nossos olhos, são pessoas para quem todas as portas parecem ter-se fechado, pessoas que esbracejaram até à exaustão e a quem nenhuma bóia de salvação foi atirada.  Ao contrário, os horizontes cerraram, a borrasca abateu-se e as forças, certamente, esgotaram a capacidade de resistência.
E atinge-se aquela altura em que os corações esgotaram o limite de esperança, aquela altura em que todas as armas são depostas, aquele momento em que a escuridão é de tal ordem que nada já interessa. As perspectivas inexistem, os projectos defraudam-se, o futuro some da história, os afectos já não têm força pra segurar o que quer ou quem quer que seja ...
E pronto ... arranca-se a ficha da tomada !  Fim de linha !...

Todas as pessoas que têm a coragem de consumar este acto tresloucado, merecem o meu mais profundo respeito.  A coragem necessária para fechar os olhos e "saltar", é duma dimensão inalcançável !
A sociedade não soube protegê-las, não soube responder-lhes, "vê-las" ... não soube sequer acarinhá-las.  Andamos todos demasiado ocupados a salvar-nos, demasiado insensíveis para sequer percebermos, lermos as entrelinhas, vermos os sinais dos que, bem ali ao nosso lado, os foram deixando ...
Não conseguimos visualizar a luz vermelha da desistência, a piscar-nos.  Não conseguimos sentir o grito de socorro que quantas vezes nos é lançado, das mais diversas formas...  Não temos capacidade para descodificar palavras, olhares, ouvir frases aparentemente enviesadas ...
Estamos todos demasiadamente distraídos ... a esbracejar também por aí ... às vezes também apenas à procura dum nexo, dum rumo, duma alvorada a levantar-se ...
O mundo torna-se insuportável, desaprendemos de viver.  Às vezes guardamos ainda no fundo do nosso âmago um lampejo de esperança que sonhamos, mas em que na verdade não acreditamos.  Não sabemos o que buscamos, apesar de vivermos cercados de uma poluição informativa, de uma poluição de soluções, caminhos aparentemente fáceis e acessíveis, num mundo do parecer e cada vez menos do ser ...
E vamos indo, calcorreando as veredas que às vezes apenas nos confrontam duramente com uma solidão a que parecemos também já não pertencer, e em que o túnel da desesperança estreita mais e mais, convidando-nos a partir ... 
À nossa volta já não existe mais sinal de pertença ... o cansaço não dá tréguas, a voz estiola na garganta e ir embora é a solução que nos resta ...

Há então aquele segundo maldito em que o vazio se estende mesmo até à alma e em que a exaustão nos apaga por dentro.  São instantes de silêncio, de escuridão ... de abandono imenso e total ...
Já não fazemos parte deste chão, já aqui não pertencemos ... e simplesmente, partimos !...

Nada mais faz sentido .  A linha chegou definitivamente ao fim !

Anamar

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

" ÀS VEZES A GENTE SÓ QUERIA UM MIMO ..."



Dia 3 do primeiro mês do ano que há pouco se iniciou.  
O tempo, profundamente instável, presenteou-nos com um dia escurecido, abóboda cinzenta pesada, com chuva ininterrupta desde ontem.  Dia bom para estar à lareira, ou não a tendo, dia bom para deixar perder a vista até onde ela chega, através das vidraças, por onde os pingos escorrem desenhando linhas incertas e imprecisas.
Hoje foi o funeral de uma colega de trabalho, contemporâneas que fomos a vida toda na mesma escola e antes disso, colegas de liceu, da mesma turma, no tempo em que éramos estudantes.  Tínhamos portanto exactamente a mesma idade.  A doença "da moda" vitimou-a depois de prolongado sofrimento, ao que parece.
Fui ao velório ontem.  Hoje, poupei-me.

Com o avanço dos anos, estou a atingir um grau de fragilidade enorme, absurdamente preocupante.  Sempre fui saudável, costumava dizer que nem as "simpáticas dores de costas" que se tornavam amigas inseparáveis das pessoas minhas contemporâneas ( inevitáveis parecia ), queriam nada comigo.  Nem coluna, nem "cruzes", nem pernas, nem braços me atormentavam.
"Sortuda" ... era assim que me diziam, era assim que me considerava ...
Só que, sem eu dar por isso, de repente, de supetão, apanhando-me na curva da estrada, parece que tudo se me chegou. Ou então sou eu que de repente também, dei em viver com medos, com temores assombrados, com fobias idiotas... E aquela mulher destinada a varar a bitola do tempo, ficou da noite para o dia, como um passarinho assustado.  
Deito-me e até que o sono faça a caridade de me levar para os seus braços, passam por mim todos os filmes possíveis.  Sozinha em casa, com o gato aos pés, em cada noite que chega, a reprise assustada vai desfilando.  Tudo fica passível de acontecer.  Tudo é mais do que provável que aconteça ...
E fico encolhidinha entre o macio dos lençóis e o quente aconchegante do édredon, tentando sonhos e não pesadelos ...

Eu sei que a vida se fez, que os anos foram indo.  Sei que os filhos cresceram, que as crianças que eram não são mais, que hoje estão aí aos comandos das próprias vidas e próprias responsabilidades.  
Olho-lhes as rugas à socapa, para não darem conta da fortuita avaliação ... Sei-lhes as dificuldades, as preocupações. E lamento-as.  E sofro com elas ...  
Percebo-lhes o tempo de que não dispõem, o muito que têm que fazer ... Falar-lhes da dor do joelho que me atormenta, é pura ousadia ... lamentar que os olhos ainda que operados, não voltaram a ser o que eram e que os ouvidos também me atraiçoam despudoradamente, é falta de senso...
Não caibo nos cólos que já aninhei ... nem posso embalar-me nos braços que já embalei ...
O equilíbrio ... ( Queres o quê ? Tens a idade que tens !... )... é inquestionável, pieguice e exigência absurda, esperá-lo afinado ...
E tudo o mais ... o medo do "escuro", do frio, da dependência ... os degraus da escada ... o esquecimento, a confusão que se gera quando à nossa revelia os neurónios resolvem fazer um baile de trapalhões na cabeça, que até há algum tempo atrás, era finória, esclarecida, decidida mesmo nas curvas do caminho ...

E acontece tudo num piscar de olhos ?!  E de repente a estrada fica caótica no trânsito do raciocínio ?!
E sabotam-nos os pensamentos, esvaziam-nos as ideias, fazem-nos tropeçar nas palavras como se precisassem de bengala para andar ?!
E de repente ficamos estranhos face ao espelho.  Nem fisicamente ele nos devolve a grata imagem que ainda, esbatida, lembramos de nós mesmos ...
E foi apenas há meia dúzia de anos !...

Falar  estes  despautérios,  com  quem ?  Expor  esta  avalanche  de  mágoas  onde  e  para  quê ?  
Desvendar estas ironias tontas, em praça pública ?  Ridículo !  Será que também perdi o senso do razoável, do lógico, do real ?... 
Ou simplesmente conflituo com a inevitabilidade da vida, recuso o percurso inexorável comum a todos, digladio o destino ... escrito sei lá por quem ?!...

E é isto !

É que às vezes a gente só queria um mimo !...

Anamar

domingo, 31 de dezembro de 2023

" SEM PALAVRAS ... "

 


" Sou uma criança ... nascida para viver, não para morrer !... "

Não sei porque não escrevi, até hoje, sobre mais uma guerra devastadora no planeta. Um genocídio ... mais um, levado a cabo pelo ser humano desprovido cada vez mais de sentimentos de empatia, compaixão, fraternidade.  Uma guerra sem contenção ou fronteira, insensível, absurda, cruel, um conflito sem limites, totalmente radicalizado onde parece não haver mesmo cabeças a pensar, que dirá corações a sentir ...
Com a guerra na Ucrânia sem sinais de acalmia, com o ódio, a prepotência, a ganância, a total indiferença face ao sofrimento alheio a grassarem exponencialmente,  a observância do respeito pelos valores humanos é algo completamente ignorado.   
Por isso, a violência e todo o tipo de crimes de guerra são a realidade vivida por todos aqueles que resistem, e as imagens que nos chegam diariamente, são indescritíveis, terríficas, duma dimensão que nos questionam se são homens ou monstros que os praticam.
E são os mais vulneráveis e desprotegidos, velhos, crianças e até os animais companheiros das vidas, os que mais sofrem, perdidos que estão no tempo e no espaço, jogados aleatoriamente no meio de bombas, de mísseis, de drones ... no meio do inferno nem nos piores filmes de terror imaginado ...

Chegámos ao fim de mais um ano, a folha do calendário vira, lentamente, dos confins do planeta, varrendo fuso a fuso todas as terras, desde as mais perdidas às grandes e insensíveis capitais ...
Logo mais, será a meia noite por aqui.
O dia está triste, melancólico, enfadonho.  Cai uma chuva miúda pouco convincente.
As gaivotas pairam em voos erráticos neste cinzento uniforme de borrasca.  Gosto de as ouvir, gosto de as ver em bandos dispersos em gritos reclamantes, com o mar em tempestade na costa.
Eu estou profundamente melancólica e triste.  Olho esta manta de rasgões que é o Mundo à nossa volta, e não enxergo uma réstea de azul que aconchegasse ou iluminasse os corações ...
As pessoas, afobadas, têm urgência de se desejarem votos e votos de paz, saúde, felicidade, como se conseguissem aturdir-se com as bolhinhas do champanhe que mais tarde irá estoirar,  como se fizéssemos todos de conta que além das nossas fronteiras pessoais, tudo está e estará perfeito.
O tempo, o tempo magistralmente cantado por Drummond de Andrade, numa visão redentora, positiva e quase feliz, para mim representa uma implacável, infalível torrente impetuosa como as imagens que a televisão nos passa quando os tornados, as tempestades, assolam aqui e ali o planeta, semeando dor e morte.  Ninguém contém, ninguém refreia ... ninguém domina !!!  Assim é o tempo !...
Não consigo assumi-lo de outra forma, com outro rosto, com outro rumo ...

Este será o último post aqui no meu espaço, no ano que agora finda.  Em cima da mesa, todos os textos que escrevi, aguardam a vez de o encadernador os transformar em mais um livro, respeitando este a 2023, e onde se arquivam todos os pensamentos, todas as histórias, todas as emoções diversas que me assolaram ao longo dos últimos trezentos e sessenta e cinco dias.  
São o meu espólio pessoal que ficará para quando eu partir, ser dividido pelas minhas filhas, e que não é mais do que eco dos meus sentires, expressão das minhas dúvidas, angústias, mágoas ... mas também sonhos, esperanças, desejos ou vontades.  São reposição de tudo, tudo aquilo que é a minha essência, tudo aquilo que simplesmente sou eu, sem filtros ou máscaras ...
Muito pouco expressivo será o livro deste ano ... tão pouco escrevi ... tanto abandonei esta válvula emotiva de escape, na minha vida !!
Certamente, sinal de muita coisa, de muitos vectores acontecidos, de desânimo ... sobretudo de falta de vontade e de aposta !

Bom, e agora relendo tudo isto que escrevi, penso que sei exactamente porque o não escrevera antes.  
Dentro de mim experimento uma impotência atroz, um desespero e uma tristeza sem tamanho !  
Penso que de alguma forma sucumbi à dureza da realidade, à negritude das imagens, à violência dos sons, à dor das palavras, à crueza dos sentimentos, á incapacidade de acreditar no ser humano.  E desisti de escrevê-las !
As palavras soam-me vazias, curtas, incapazes, ocas, distantes ! 
Ouvindo este vídeo dos meninos de Ramallah, percebo claramente que não há uma só palavra, em nenhum alfabeto, que dita, dimensionasse com verdade, autenticidade e realismo a ausência do AMOR, que afinal será sempre a chave de tudo !!!

"SEM PALAVRAS", portanto !...



Vídeo -  Coro de Ramallah Friends School   ( 2023 )

Anamar


Nota :  Adiciono o vídeo com o poema declamado, de Drummond de Andrade