sexta-feira, 31 de outubro de 2014

" OLHOS DE GATO ... "



Estou a ver se vejo isto pelos olhos dos gatos ...

Eu tenho dois ... gatos de apartamento.
Agostinho da Silva alimentava os que vagueavam nos telhados circundantes, pelas madrugadas, e vinham ao sótão filosofar com ele, discutir-lhe os estados de alma ... consta.
Porque, não tenho dúvidas ... os gatos são filósofos.  São-no, além de muitas outras coisas que escapam ao entendimento humano.

Olho os meus, e sinto que os injustiço.  Como eu gostaria de ter uma qualquer "porta de serviço", directa para as estrelas, para que eles as pudessem olhar, na frescura das noites !
Porque os gatos preferem as noites.  Por isso são seres místicos e míticos, já que nas noites, os seres que as povoam, são mutantes, não tenho dúvidas.
São seres de silêncios e de penumbra, aquela luz difusa que define com total clareza, contornos que só alguns olhos sabem ver.
E os deles sabem !

O Óscar era feliz nas telhas da Verdizela.   Calcorreava-as de ponta a ponta, de nível em nível, ora para a frente, ora para trás, perscrutando lá de cima, o pinhal, cuidando de perceber os ruídos, apercebendo o resmalhar da folhagem das buganvílias trepadoras, que subiam alto ...
Era um pequeno tigre garboso, recortado na escuridão do firmamento, absorto em contemplação, ou de tocaia aos sons do silêncio.
O Óscar não descia as ramagens, mas às vezes tinha a visita de parceiros mais felizes ... os gatos vadios, gatos de ninguém, gatos de pinhal ... gatos do mundo !
Gatos inteiros, ousados e curiosos de desfrutar o "poleiro" privilegiado do Óscar.
E então era aquela coisa da demarcação de território ... E nessa matéria, ele não dava abébias.  Aqueles telhados eram  seus, afinal !!!

Mas como os meus gatos são gatos de apartamento, o mais que fazem é olhar a lua, que quando é cheia, os endemoninha.  A eles e a mim !...
Semi-cerram os olhos para melhor focarem aquela estrela no infinito ... ( aquela lá longe, que parece piscar-lhes um segredo ).  Ou seguem fixamente o voo provocador dos pombos que os desafiam, ou  olham nostalgicamente a minha gaivota quando poisa perto demais, equilibrando-se ora numa ora noutra pata, numa espécie de sapateado, no altinho dos terraços.
Aí, rilham os dentes, e transformam essas figuras livres e soltas, em presas imaginárias, em caçadas  mais imaginárias ainda ...  até que lhes saiam do horizonte visual ..
Então, retomam a vigília em que passam as horas, sobretudo se o sol abençoar os seus lugares de estar.

Os meus gatos de hoje, os tais que dividem o apartamento comigo, não sabem o que é um quintal, um telhado, um beco mal cheiroso, sequer a sombra protectora de um carro ...
Por isso aspiram, aspiram profundamente, os cheiros que alcançam a nesga da janela do sétimo andar.
Tudo é novo, além das paredes, das janelas e da porta da rua !
Bebem o ar fresco que corre, o vento endiabrado que lhes abana os bigodes, brincam com as gotas da chuva que escorre nas vidraças ... como bênçãos dos céus, num deslumbre absoluto !
E queimam os dias a dormir, ronceiros, nos locais mais inimagináveis da casa, e tentam brincar com bolas, tampinhas, fitas de embrulho em caracóis provocantes ... porque até os ratos, tristemente são a fingir ...
E claro, desafiam-se, surpreendem-se, perseguem-se, lambem-se, mordem-se e enroscam  os corpos numa bola única de pelo ...
E voltam a dormir !!...

O Chico, o pachorrento grandalhão, atreve-se à escada, se consegue passar pelas minhas pernas distraídas, quando entreabro a porta.   E desce-a, apressado, como se conquistasse algum paraíso perdido.
Um dia não dei por ele e ficou fora, no emaranhado de um mundo novo que é o meu prédio de sete andares.  Algum tempo depois, chamava do lado de fora, reivindicando a entrada.
Ficam assim, meio burros, os gatos de apartamento !...
Mas também, o Chico é um pouco tímido, já percebi, e carregado de bonomia.
Já o Jonas, não se atreve.  É um ladino do caraças, um reguilóide movido "a pilhas".  Pequeno de porte, magro, elegante, é um vivaço  com olhos de miúdo safado ... mas um medricas permanente.
Basta uma sapatada do Chico para o meter na ordem, e acalmar a sua hiper-actividade.  Então, que remédio ... brinca sozinho e de tudo faz um brinquedo.
Lembra os filhos únicos, que têm que entreter-se por conta própria ...

E o tempo passa, e estes pobres gatos do "betão", nos redutos musculados que são as nossas casas ( e que sempre achamos serem as suas maiores maravilhas ), não vivem ... vegetam.
Esperam ( se calhar como nós ), apenas que o tempo passe.

É certo que têm o prato cheio, é certo que não sofrem a intempérie e a insegurança da terra de ninguém ... e na generalidade são rodeados de muito carinho e afecto.
É certo que os maltratos da rua,  não os atingem ...
Mas sofrem outros, infligidos à sua condição de seres vivos.
O Homem castra-os ( "trata-os", como as pessoas dizem, para adoçarem o acto ).  Não acasalam, não procriam, portanto.   Há quem lhes extraia as unhas, para que os sofás fiquem incólumes ...
Fazem  pouco  ou  nenhum  exercício  físico,  porque  obviamente  o espaço  de que dispõem  é  limitado.  Em  consequência,  tendem  a  tornar-se  obesos, com  inerentes  problemas  de  saúde ...
Mas  não sofrem depressão  como os humanos, nem problemas existenciais ... porque os gatos, não são dados a essas minudências ...

Tenho pena deles ... dos gatos do "betão" ...

A vertigem do pinheiro, não a conhecem, a emoção da caçada, também não, os instintos da defesa, do ataque e da emboscada,  inatos nos felídeos iguais a si, não os apuram ...
O sabor do vento e da chuva,  a felicidade dos caminhos francos,  os espaços amplos  ou o esconso das ruelas ...nunca virão a saber como são ...
Não apanham pardalitos, lagartixas ou borboletas ...
Não sonham ... não vivem romances tórridos, pelo luar de Janeiro ... nas escapadelas nocturnas !...
"Liberdade", não é palavra do seu léxico ...
Afinal, estes gatos "civilizados" não são mais que pássaros de asas cortadas,  habitando gaiolas douradas e  olhando o infinito perdido !!!...


Anamar

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