domingo, 30 de novembro de 2014

" LAÇOS INVISÍVEIS "



O "farrusco do fiambre" perambula pelo terraço lá em baixo.  Afinal, ele é um residente !... Um residente e um resistente !
Verão após Verão, Inverno após Inverno, acumulando anos de vida, numa vida que não sei quantos anos já conta ... ele lá continua inabalável ... com as quatro patas firmes no lajeado, chova, faça sol, tempestade ou bom tempo.
Habitante único daquele terraço, não tenho a noção de como sobrevive.
Há tempos largos que o não espreitava. Cabeça demasiado preenchida, coisas a mais para a estrutura mental de que disponho, não me têm levado a espraiar as vistas  pela janela, preguiçosamente a olhar o tudo e o nada, por sobre os telhados a perder de vista, rumo a um horizonte verde, bem lá longe !

Hoje deitei o nariz de fora.  O ar estava liquefeito. O fim de tarde mostrava um céu diluído, um sol laranja, iluminado, distante ... farrapos de nuvens, como novelos de lã branca, espalhados lá por cima.
Nada grave !
E ele lá estava.  Entrevi-o entre o emaranhado de estendais, e de roupa colocada pressurosamente a secar, não vá chover amanhã ...
Era um recorte esfíngico, uma figura sonolenta, um "bibelot" de porcelana ... visto do alto do meu sétimo andar.

Quem também tenho pressentido por aqui, em passagens fugidias, em voos sonolentos e rasantes, é a "minha gaivota", que se anuncia com aqueles grasnidos que tão bem conhecemos, quando o mar encapelado apenas lhe permite que o sobrevoe ... em dias de tempestade anunciada.
Há tempos que não "conversamos".  Há tempos que não trocamos aquela promiscuidade  de "mulher para mulher" !...
Sempre costumava espreitar-me,  altaneira, do alto do terraço contíguo à minha tribuna, mirando-me de lado, olhos perscrutantes, argutos e  miudinhos ... Assim como quem me mede os humores ... Depois, deixou de vir.  A lixeira, super-mercado de Inverno, fica lá para trás da minha disponibilidade visual.
E também, ela frequenta-a no Inverno apenas, quando recua da orla costeira, porque o tempo madrasto,  lhe escasseia o peixe fresco na dieta.
Hoje, veio por aqui.

Coisa estranha esta, de me sentir órfã se os não vejo ... de me sentir acompanhada, se os vejo !
Coisa estranha esta, quando o ser humano se sente acompanhado por um gato e uma gaivota que só toca com o olhar, e que só acompanha com o pensamento !...

Às vezes, largo uma frase no espaço que nos separa ... convicta que a digo para quem a não escutará. Mas não importa, é assim uma espécie de código de coração, uma espécie de partilha de sentimentos, um diálogo surdo, mas generoso.
Uma cumplicidade de solidões ...
Eles não me conhecem, mas eu conheço-os e são por isso, um pouco "meus" ...
Porque como diz Saint-Exupéry, sempre "somos responsáveis por tudo o que cativamos".
E, cada um a seu modo, cada um à sua maneira, tornaram-se parte da minha vida, passaram a integrá-la.
Se mais não for, por  em dias como  hoje, em que me abeiro da vidraça em busca de vida lá fora,  a sua presença por perto, ser um afago na alma, que consegue trazer-me ao rosto um sorriso rasgado ...

Mesmo que o fim de tarde me não ofereça um sol laranja, iluminado ...

Anamar

Sem comentários: