sexta-feira, 16 de outubro de 2015

" A LINGUAGEM SECRETA "




Não sei quanto tempo mais, a minha mãe viverá.
Não sei por quanto tempo, ainda, beneficiarei do seu cólo ...

Hoje, as pernas descarnadas semi-esquecidas, a figurinha frágil de passarinho, a mente que oscila entre o certo e o errado, o real e o irreal, já não abrigam grande coisa.  Já não fazem regaço de embalar ... porque não podem.
Hoje,  a  minha  mãe  aninha-me  no  coração.  Esse,  cresceu  na  proporção  do  mingar  do  corpo ...

É a esse ninho que nunca ma faltou, é a esses ouvidos que nunca ensurdeceram para mim, é a essas mãos que continuam sábias no acariciar, que recorro, onde continuo a buscar arrego ... ainda que não me perceba direito, que não me escute com clareza, que não saiba nem sonhe, tudo o que tenho aqui dentro.

Ainda que os seus horizontes sejam agora os limites daquela sala dividida com estranhos, agora "amigos" ... ainda que a televisão lhe conte ininterruptamente, histórias cá de fora, do mundo que deixou, ainda que acorde de manhã sem ter por perto os rostos familiares que gostaria ... tem aqueles que já se tornaram extensão dos outros.  Dos que estão agora um pouco mais longe fisicamente, porém ali, ao lado, no afecto e no espírito ...

A minha mãe teve um período demasiado longo e sofrido, de corte com a realidade.  Um período em que deixou de estar no meio de nós.  Um período em que a sua única ponte  era, ou com os que a deixaram há muitos, muitos anos, ou com aqueles que espera "encontrar" no futuro.
Então, aquela minha mãe, não era mais a minha mãe !

E ela sabia-o.  Sempre o soube.
Nos lampejos de lucidez que tinha no meio daquela bruma cerrada da mente, dizia-me em desespero : " Filha, a tua mãe já cá não está há muito " !
E era um grito lancinante e um sofrimento atroz, que me aterrorizava e me deixava sem chão e sem ar, olhar e ver à minha frente, uma desconhecida, um lamentável equívoco do destino, uma injusta e patética pirraça da vida ...

E de facto, a minha mãe havia "partido" mesmo ...

Mas como sempre foi teimosa, obstinada, determinada, e sempre lutou contra todas as marés adversas no seu caminho ... como nunca foi mulher de "entregar os pontos" e sempre driblou o que parecia irreversível ... "regressou" ...

Hoje, ali onde divide os dias com os seus parceiros de percurso, parece a menina que no infantário escolhe amigos, partilha brincadeiras, conta e ouve histórias, sorri e parodeia com todos ( e são quase todos mesmo ) que se aproximam do seu rosto aberto, sorridente e disponível.
Um rosto que se ilumina à nossa chegada ... aqueles que ela guarda no mais fundo de si.

E percebo como é aconchegante, preenchedor, IMENSO ... pegar-lhe de novo nas mãos secas de carnes, onde apenas as veias desenham rios, beijar-lhe de novo a face "plissadinha", olhar-lhe sem pressa os olhinhos "piscos" ... ou simplesmente ... e é TUDO... absorver a linguagem silenciosa da sua alma, os recados mudos do seu peito, deixar-me tocar pelos fios invisíveis do seu amor, sorver a generosidade escorrente do seu coração, ler a mensagem eloquente e terna do seu olhar, sentir-me embalada nos seus braços outra vez ... e dizer-lhe tão somente, sem falar, com todo o tempo do mundo : " Mãe, estamos aqui !...  Continuamos aqui ... ainda ... OBRIGADA !... "

Anamar

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