sábado, 14 de abril de 2018

" AS ÚLTIMAS PALAVRAS "




A minha mãe foi cremada.
Num dia triste, cinzento, de uma intempérie sem tamanho  apesar da Primavera já se ter instalado, será reduzida a pó, aquele pó que nos faz, aquele pó donde vimos e onde terminamos.

Quando se perde alguém muito nosso, um vendaval varre-nos sem piedade, um raio atravessa-nos e rasga-nos as entranhas ... uma faca afiada dilacera-nos o coração.
É como se fôssemos uma árvore desgrenhada, ameaçando sucumbir à força da ventania, à mercê da judiação do destino !
O tempo associou-se afinal à minha dor ...

A minha mãe viveu noventa e sete anos de uma vida pacata, simples, sem exigências ou pretensões.  Viveu o seu dia a dia mais em função dos outros, do que de si própria.
Privilegiou a família como esteio para a sua vida.  Vibrava com os seus sucessos,  doía-se com as vicissitudes menos boas do destino.
Era generosa ( muito ) .... disponível, presente  sempre.  Dava-se sem condições.
Escolheu o dia do seu aniversário para partir, fechando um círculo perfeito de vida.  Escolheu, como que a dizer que não a esquecêssemos.  Como se a pudéssemos esquecer algum dia!
Ironizou com a rota determinada.  Como menina mandona e pirracenta, só foi quando quis ... em pleno dia de "festa" !
Estou certa que decidiu festejá-la com os outros, todos os outros que chamava desesperadamente nas suas demências constantes.  Decidiu que desta vez, a festa seria do outro lado.
E acho que estará em tertúlia amena, para lá do "túnel" ... onde, imagino, haverá um campo verde, com todas as flores que sempre amou.  Haverá regatos a correr, haverá fontes de água fresca e límpida e haverá pássaros a cantar. E os corações estarão leves, como a brisa azul que perpassa ...
E tanta coisa teriam a se dizer ... tantos os que lá estão !...

A minha mãe foi, e uma orfandade atroz, desceu-me.  Uma sensação estranha de desconforto e abandono, um vazio gélido, de amputação, cortou-me metade do coração.  E esta metade não tem como repor-se ... nunca !
Dou por mim já, a ir ali, conversar com ela ... a dizer-lhe as últimas.  A dizer-lhe como teve tantos amigos em seu redor, na partida.  A contar-lhe como foram lindos os ramos, com que lhe perfumaram o leito.  E como ela estava linda, serena, cheirosa e quase sorrindo, num adormecimento cálido e doce de quem partiu em paz !

Mas não será preciso.  Vou deixar isso para mais tarde, porque hoje eu sei que ela, feito luz, foi
pairando por ali, como mais um ponto luminoso que nunca se irá apagar, no firmamento de breu que tantas e tantas vezes é a nossa existência!
Hoje estou mais "rica", mais amparada, mais ajudada. Ao lado do meu pai, que me deixou há vinte e seis anos, tenho por lá agora, mais um bordão, mais um colo, mais uns braços para me guiarem neste rumo,  para me levantarem do chão, para me secarem as lágrimas ... tenho a certeza !...

Foi tudo isso que ela me sussurrou, quando trocámos as últimas palavras ...

Anamar

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