segunda-feira, 23 de abril de 2018

" COISAS DE MULHERES "





O dia amanheceu de borrasca, mas a tarde compôs.  Um sol amarelo adocicado de Primavera emoldurava a paisagem.  A estação não enganava.  Os pássaros chilreavam em devaneios de acasalamento.  A excitação das urgências libidinosas, neles como nos seres humanos, começavam, ainda o dia esfregava os olhos ensonados.
Sempre assim é.  Esta estação é poderosa.  O sentido da renovação, remoça-nos, torna-nos capazes, crentes, imparáveis, irresistíveis.
De repente há um acreditar generalizado de que a vida reinicia mesmo.  Saímos das trevas dos Invernos escuros e olhamos de frente a luz da vida, com que o sol ilumina e pinta os nossos sonhos.
A vontade dispara, a força multiplica-se, a esperança agiganta-se e, da noite para o dia, ficamos outros, tornamo-nos outros, surpreendentemente, o milagre opera-se ...

Lembrei uma tarde igual a esta, naquela mesa de café, à beira-rio, faz tempo.
Também havia chovido toda a manhã e custámos a confirmar o encontro pela tarde.  Afinal, o dia não garantia nada seguro.  Mas acabámos por ir, num Abril lá para trás, com um sol amarelo adocicado de Primavera ... como hoje, a emoldurar a paisagem.
Como sempre, falar das "nossas coisas",  " arear os talheres", como diz um amigo meu ... inevitável entre mulheres, quando se encontram.
Há sempre um atraso notório ... Ainda não te contei,  cheguei a dizer-te ?   Imagina tu ... e por aí adiante.
Ela estava apreensiva, um pouco silenciosa demais para o hábito.  Estranhei-a.  Mas connosco era questão de começo.  Como as cerejas, as conversas não se negariam.

Acreditas que a última vez que fizemos amor foi há mais de dois anos ?  Sei exactamente qual o dia.  Já então a nossa relação resvalava.   Ele nunca entendeu.  Uma mulher só faz amor se houver amor, se houver afecto, se houver romance, história.  Se houver lastro afectivo e emocional, cumplicidade.  Caso contrário, uma mulher faz sexo.  E juro-te, é muito mais fácil fazer sexo, que amor.  O amor implica dádiva, partilha, presença.  O amor tem códigos secretos, linguagens, memórias, imagens.  Deixa rasto, marca uma mulher.  O sexo não.  O amor faz-se de perto ... não com lonjura ...
E ele deixou de ter tempo para mim ... para nós.
Havia um fosso cavado dolorosamente, já então.

Eu olhava-a em silêncio.  Conhecia a história ao pormenor.
Juro que vi raiva, mágoa e dor nas lágrimas que lhe afloravam os olhos e que custava a dominar.
Mantive-me em silêncio.  Se quisesse ser honesta com ela, ela sabia exactamente o que lhe diria. Talvez hoje não quisesse ouvir ... Era uma mulher profundamente sofrida ! Uma mulher decepcionada face à vida ... triste, quase desinteressada.
E continuei apenas uma ouvinte atenta.
As amigas têm estas partilhas, a qualquer preço.  Contra tudo e contra todos.  A solidariedade e o afecto, um afecto fraterno consegue torná-las muros de lamentações silenciosos.
Não julgam, não censuram.  Choram junto, vibram junto, festejam junto ... mas sem juízos ou recriminações.  Com um entendimento que eu acho ser coisa de género.

E depois, ele começou a afastar-se mais e mais.  Sempre tinha justificações que não me faziam sentido. Nem podiam.  Afinal, para mim, a união, a partilha das dificuldades é que poderia tornar-nos fortes, corajosos, vencedores.  Quando se quer, não se abandona.  Quem ama, não promete ... faz.  Sempre encontra forma de fazer.
Mas ele nunca o fará.  Eu sei que não conseguirá fazê-lo. Ele nunca será capaz de alterar o esquema cómodo em que vive.  Os homens acomodam-se.  Acobardam-se.  Não enfrentam.  Também é coisa de género. E auto-justificam-se, numa comiseração consigo mesmos, que dói ...
Arrastam uma infelicidade sem tamanho, compensam-na com infidelidades mais ou menos satisfatórias e romanceadas, e seguem sempre o mesmo caminho.  Continuam no mesmo trilho.  Aquele que conhecem e lhes é mais cómodo.
Achas que alguém pode viver assim ?  Achas que se suporta indefinidamente uma insatisfação, ano após ano, semana após semana, fins de semana, férias, festas ... só... completamente só ?
Isto é uma relação entre duas pessoas ?
Ele achava que sim, e que eu, porque o amava, o esperaria indefinidamente.  Eu continuaria ali sempre, se preciso fosse, até que a vida lhe permitisse alcançar os patamares que considerava imprescindíveis para assumir a relação.
E eu fui vivendo, de facto.  Tanto sofrimento, tanta mágoa na minha vida então ... como sabes.
Tanta insegurança, tanta dúvida e ansiedade.  Tudo tão escuro à minha frente.  Tantas lágrimas de impotência e desespero.  Solidão atroz.  Infelicidade que me roía as entranhas ...
Mas fui vivendo ... Só ... sempre só !
Das recordações, das loucuras, dos risos e das gargalhadas felizes, que cada vez pareciam mais longe.
Fui vivendo dos sonhos que continuava a sonhar ... Do mar e da serra, das falésias e das gaivotas sobranceiras.  Dos sítios e das memórias.  Dos cheiros, das cores, das palavras e da música que haviam feito o mágico da nossa história

As lágrimas romperam diques.  Eram de mágoa e injustiça....

Mas tu sabes, o cansaço domina-nos.  A dor corrói-nos e a angústia mata-nos.
Cheguei a hoje.  A minha vida parece-me uma fraude.  Sinto-me com o coração amordaçado.  E pergunto-me ... fazer o quê ? Perdi totalmente a fé e a confiança.  Nada disto deixa dúvida.  Sempre tudo foi rigorosamente coerente na sua postura.  Não há absolutamente nada a esperar.  Sempre tudo foi sem surpresas. Expectável.
E no entanto, tudo poderia ter sido diferente.  Daí, a raiva que sinto. A mágoa que me toma.  E tantas vezes lhe toquei os alarmes ... atenção, olha o rumo das coisas... atenção, eu não sou de ferro. Eu sinto-me só e desamparada.  Eu não tenho um ombro, um apoio ... nada ! E no entanto, nunca lhe neguei os meus ...

Diz-me ... o que faço com isto que sinto no meu peito ?  Para onde deito as rosas magoadas que tenho no coração ?  O que faço com os dias ensolarados, no azul do mar cavalgando as rochas ?  Com as matas, os pinhais, as flores vadias e insubmissas,  ou simplesmente os sonhos que sonhei ?
O que faço, quando Enya me canta docemente  que "só o tempo o sabe" ?...

Coisas de mulheres ... Todas diferentes e todas iguais.  Dramas vividos no feminino.  Dúvidas sem resposta.  Histórias sofridas, estradas percorridas vezes sem conta ... sem saída, bifurcação ou sequer escapatória !

Era uma tarde de Abril, com um sol amarelo adocicando a paisagem ...
Onde é que eu já ouvi algo semelhante ?! ...

Anamar

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