sábado, 21 de abril de 2018

" ... PORQUE ... "





" Eu escrevo porque respiro´
e escrevo p'ra respirar "...

Verdade absoluta que constitui uma estrofe de um dos meus poemas.
Eu sempre o soube claramente.  Não tinha talvez ideia do seu alcance.
Neste momento não escrevo, pouco escrevo, tenho uma claustrofobia na alma, sem tamanho.  Sinto uma sufocação de mordaça.  Vivo o silêncio de um coração que parece manietado.
Está pesado, pesa o mundo inteiro.  Tenho o mundo inteiro dentro do meu peito.

Entardeci de dia ensolarado.  Acinzentei como esta Primavera que mostra tantas caras, que nos surpreende.  Uma Primavera que parece doente.  Como se Abril não tivesse direito às  suas "águas mil " ...
Nada ou quase nada me impede de escrever.  Mas estou entupida de palavras que não saem.  Estou engasgada de sentimentos que se atropelam e não escorrem.  Estou atravancada  de contradições, inseguranças, mágoas e dores que não vazam.
A vida está-me descolorida.  Racionalmente descolorida.
Acho  que  perdi  a  capacidade do sonho, do  encantamento,  da  utopia, da  loucura ! Da  leveza ...

"A idade é só um número", dizia o David que conheci em Bali.  Parecia ser sabedor, o David.  A sabedoria  desse tal número ! ... Partiu há muito.  Deixou-me um molho de cartas trocadas, pequenas flores secas roubadas dos jardins, nos seus passeios matinais.
Sim, porque o David gostava, como eu, de ver nascer o sol em Bali.  Só nós dois, na praia, àquela hora.  Nós dois, os oitenta e muitos anos do David, o meu inglês que apenas chegava para nos comunicarmos ... e o sol, a nascer lá longe, num horizonte inesquecível ! A magia daqueles momentos !

Nos tempos em que eu ia à aventura, com a adrenalina de viajar só, solta, livre.
Vivia sozinha.  Acabara uma relação.  Juntava os cacos para me consertar.  Reunia pedaços p'ra me por em pé.  E saboreava o gosto do inesperado, do novo, do inédito, do possível.
E muita coisa era possível, então.  E as coisas tinham gosto, um sabor surpreendente, porque eram novas, inesperadas, surpreendentes mesmo ...  Coisas de valer a pena !
E as coisas eram coloridas.  Tinham as cores da ânsia que eu tinha de voltar a dar-lhes sentido.  Porque dar-lhes de novo sentido, era remoçar, recomeçar, acreditar, agarrar com ambas as mãos ... era viver ! Talvez renascer ...

Hoje, sinto-me como crepúsculo de tarde ociosa.  Sinto-me como se o David me tivesse enganado rotundamente.  Talvez a idade seja mesmo um número ... no meu caso.
Sinto que nada de novo sou já capaz de fazer, na minha vida.  Parei de sonhar, de querer, de lutar, porque não há por que lutar, afinal. Estou cansada, esgotada, asténica ...
Sinto a vida suspensa, sinto-a parada em águas mornas e sinto em mim o susto de a viver até ao fim, exactamente assim ... em águas mornas. Águas pútridas ... infectas ... Águas paradas, de pântano lodoso.


Precisava das pinceladas de Deus ou do Diabo, nesta aguarela insípida, de tons pastel.
Precisava  de revivenciar utopias.  Levantar voo nas asas do pássaro, rumo ao infinito. Ser tão livre quanto as águas do regato que corre sem perguntar porquê ... tomar a aragem que passa, e ir ... simplesmente ir ... sem perguntar onde, neste alvoroço de sonho incompleto, sempre por sonhar ...
E talvez pela primeira vez, me sinta com escoras que me prendem ao chão, me sinta com umas raízes tão fortes que nem um vento de tempestade arranca, me sinta como o barco cujas amarras jamais o soltarão do cais.  Deste meu cais ...

Hoje, aqui e agora, irreversivelmente entristeci.  Haverá pior que um barco parado que olha o vai-vem das marés ?!

E como eu precisava sentir que afinal estou viva ... apenas esqueci !...

Anamar

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