terça-feira, 6 de novembro de 2018

" APONTAMENTO "



Faz hoje sessenta e nove anos que os meus pais casaram.
Acordei com o coração doído, os olhos marejados e um aperto no peito.  O pensamento foi indo, debaixo de um édredon que não me aquecia a alma, e o cinzento do exterior  penetrava pela vidraça franca do meu quarto.

Sei que era um Novembro talvez como o de hoje, no Alentejo interior, na aldeia onde eu viria a nascer um ano depois.  Os meus pais já não eram jovens. Ele com quarenta e oito anos, ela com vinte e nove.  Ele ia num segundo casamento.   Ela, não.
Um e outro tiveram-me como prenda de laço e fita, como bênção do destino ... como sonho  concretizado e corporizado numa menina trigueira  como a terra que lhe dava  berço, de cabelo escuro e olhos castanhos.  Era e viria a ser até ao fim dos seus dias, a razão das suas vidas.
Sendo pessoas humildes vivendo exclusivamente do trabalho do meu pai, nunca nada faltou contudo,  naquela casa, na minha educação, na minha formação como pessoa de bem, detentora dos valores e princípios que para sempre viriam a nortear o meu destino.

Já passou muito e muito tempo.
Nenhum dos dois cá está para lembrar.  O meu pai partiu há vinte e seis anos ... a minha mãe, há meses.

Acordei com o coração doído, os olhos marejados e um aperto no peito. 
Acordei com os abraços que não lhes dei, espalhados na almofada.  Com as saudades que não partem e as memórias teimosas coladas no pensamento. 
Acordei estranhamente mais órfã, com o desconforto de roupa desaconchegada ao corpo, que nos deixa entrar o frio impiedoso.
Acordei com a nostalgia do irremediável.  Com a dor do que não é, porque não pode voltar a ser.  Com a ansiedade e o desejo do reencontro com a pessoa que eu fui, no tempo que já não me pertence ... porque o tempo não pertence a ninguém ...
Acordei com a estranheza de não mais me poder sentir a menina das tranças, a prenda de laço e fita, a bênção da vida dos meus pais ...

Lá fora chovia.  Uma gaivota planava, lançando o seu grasnido pelos ares.
Era Novembro outra vez ...

Há sessenta e nove anos, haveria sol ?...

Anamar

Sem comentários: