segunda-feira, 26 de novembro de 2018

" SIMPLESMENTE ... "




" Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.
Não perdi nada, apenas ilusões de que tudo podia ser meu p'ra sempre ... "
                                                       
                                                               Miguel Sousa Tavares

Esta reflexão é dum pragmatismo que subscrevo em pleno.

Ao longo da sua vida, o Homem digladia-se, exaspera-se, desespera-se ... mata e esfola, pela posse, pela jurisdição, pela disputa de tudo o que considera pertença sua. Dos bens materiais, aos valores emocionais e sentimentais, tudo lhe parece passível de controlar, gerir ... possuir !

A filosofia budista, da qual me sinto próxima em muitos aspectos, ou pela qual nutro pelo menos profunda simpatia, fala-nos de dois princípios básicos, absolutamente meritórios, defensáveis ... e até indiscutivelmente  lógicos, eu diria, que, assimilados e interiorizados, nos simplificariam muito a vida, enquanto seres mortais, em trânsito por aqui.
Um deles, subjaz à postura do desapego que todos nós deveríamos praticar.  O desapego ao que nos rodeia, o desapego ao que detemos, o desapego por expectativas, certezas imaginárias, convicções instaladas.  Em suma, desapego por tudo o que tomamos como certo, garantido e até devido ... já que normalmente nos "concedemos" direito a privilégios, a futurologias favoráveis, a certezas invariavelmente garantidas, só porque ... merecemos, "temos direito" ... exigimos ...

O outro princípio de que pouco nos lembramos ou consideramos, prende-se com a impermanência da realidade que vivenciamos.
Nada é de facto mais real, do que a impermanência efectiva de tudo.
Bem ao contrário, a cada dia, a cada momento, em cada segundo ... tudo muda, varia, altera ...
Nada nunca é absolutamente certo, garantido, exacto ... A  vida é de precariedades, incertezas, dúvidas.  E dúvidas, porque nada pode de facto, ser tomado como certo e seguro.
O que nos rodeia é efémero ... nós, somos seres efémeros !
Talvez esse seja mesmo, o real encantamento da existência !
Talvez essa seja mesmo, a mola impulsionadora das nossas vidas !

Desconhecendo o que podemos atingir, desafiando o que ansiamos alcançar, lutando e superando-nos para o atingirmos, podemos levar o sonho à realidade, sem obsessões doentias, sem truculências, sem atropelos ... com respeito pelo outro, com relativização da importância das coisas, com uma visão mais humanista, civilizada e de menor sofrimento.
Tenho para mim, e com isso procuro viver, que na verdade, nada possuímos.  Nada nos pertence.
Chegámos sem nada.  Dessa forma partiremos.
Tudo é transitório.  Somos meramente seres "em passagem" !

Ao longo dos já razoáveis anos em que ando por aqui, tenho procurado mentalizar-me dentro destes princípios de vida.  Tenho procurado minimizar as afobações, as competições, as disputas ... as angústias e as ansiedades, e com isso, valorizar apenas o que importa.  Com isso, procurar uma gestão inteligente, equilibrada e não desgastante, daquilo que vou vivendo.
E para mim, o que importa é tudo o que se vive e guarda, no domínio do coração.
Refiro-me a emoções experimentadas, a sentimentos partilhados, a momentos inesquecíveis, a memórias indeléveis ...
Património nosso... enriquecedor, imprescindível, inalienável ...

Já perdi muitas coisas.  Já deixei muitas pessoas "insubstituíveis", pelo caminho.  Já me desapontei, já chorei, já me senti sem norte.  Já me vi como criança abandonada no deserto.  Já me indignei por me achar injustiçada.  E já acreditei que não mais seria capaz de sonhar e ter fé, de novo.  Já me senti tão desesperançada, que o único trilho que enxergava, na neblina escura de breu, era a desistência de tudo e de todos ... a desistência até de mim própria !
Mas como o Mestre afirmou, pedras no caminho, são todas para reunir, construir, reabilitar ... reerguer !

Hoje, caminho com todo o meu espólio, bem dentro de mim.
Hoje, procuro em cada topada, perceber qual o obstáculo que me dificultou a marcha.  Para contorná-lo, com sabedoria, furtando-me ao doloroso e ineficaz confronto.
Hoje, resguardo com todo o carinho do mundo, a memória dos que amei muito ... vivos, ou mortos.
Procuro adocicar os azedumes do dia a dia.
Hoje, procuro um aperfeiçoamento gradual.  E acredito nele.
Hoje, não dispenso ninguém que me dê a mão, que me sussurre ao ouvido, que me faça rir ou mesmo gargalhar.
Procuro agarrar com todas as minhas forças, os que me cercam e me são importantes.  Os que compõem a minha história.  Os de perto e os de longe ... porque todos cabem na caixa que tenho no peito.

E todos, indistintamente, são a minha fortuna, a minha riqueza, a minha herança ... aquilo que me acrescentou e faz de mim, eventualmente, um  melhor ser humano, mais justo e complacente.

Nada detemos.  Nada nos pertence.  O nosso único património é o que somos, aquilo em que nos tornamos diariamente, numa luta pertinaz de aprendizagem e aperfeiçoamento constantes !

Anamar

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