segunda-feira, 5 de novembro de 2018

" DEIXANDO VOAR ... "



Olhei o plátano aqui das traseiras.  Quase todo ainda revestido de folhagem verde ... pasme-se !
Em anos transactos, nesta altura em que o Outono já se instalou, em que as alamedas das matas e dos jardins já se atapetam de folhas amarelas, castanhas e vermelhas, fazendo jus à típica coloração quente ... nesta altura em que o céu fecha de nuvens cinzentas escuras, carregadas e ameaçadoras ... nesta altura, dizia, o plátano já se havia despido.  Se não totalmente, pelo menos as folhas remanescentes, jamais eram verdes ainda !

Deve-se isto, à atipicidade climatérica vivida nas últimas semanas, em que o Verão parecia não desgrudar, com temperaturas elevadas, levando com toda a naturalidade, muita gente a pisar com satisfação ainda, a orla costeira da nossa terra.
Entretanto, anormalmente também, depois de uma tempestade estranha que nos atravessou ... um fenómeno climatérico meio inexplicável , pouco previsível e visto, o tempo virou da noite para o dia, as temperaturas desceram bruscamente, a chuva fez-se presente, o vento também, e pronto ... a estação outonal instalou-se a sério.
E ainda assim, com alguma benevolência connosco, aqui neste cantinho desapercebido, já que a Europa tem estado a ser fustigada por tempestades violentas com cheias gravíssimas, neve e ventos fortes , causando danos por aí fora !

Bom, mas quedei-me junto à vidraça, borrifada de gotas miudinhas, olhando o cinzento lá fora, perdendo-me pelos galhos sacudidos do plátano, e escutando o silêncio de interioridade aqui dentro.
E, porque o pensamento voa mais longe e depressa que as nuvens açoitadas pelo vento, fui-me deixando ir, sem explicação possível, aos tempos da minha infância.
Por essa altura, Évora era a minha cidade.
Morando um pouco afastada do Centro Histórico, vir até à Praça do Giraldo, exigia um motivo de razoável importância.
A minha mãe, pessoa com quem dividia as semanas, com o meu pai ausente em trabalho, não era dada a grandes passeios, a saídas de lazer, a convívios com quem quer que fosse.  Tanto quanto lembro, depois das aulas, era a casa que me esperava, invariavelmente.
Excluía-se alguma necessidade particular de uma compra, uma ida à modista ( porque por esses tempos o pronto a vestir era algo desconhecido ), uma deslocação esporádica ao dentista, o Dr. Pisco ( a criatura com a maior paciência que se possa imaginar ) ou, aí sim, por absoluto imperativo da existência, o abastecimento diário no mercado, pela carne, peixe, frutas e legumes, já que mesmo o leite nos chegava à porta, em vasilhas de zinco, aviado a contento, em medidas igualmente de zinco, e o pão se comprava na padaria, no início da minha avenida.
Outros artigos adquiriam-se  na loja do sr.Acácio, misto de mercearia e drogaria que ficava junto à padaria.

Quando pelas razões que apontei, eventualmente nos deslocávamos, eu e minha mãe, até às arcadas centenárias, era um acontecimento !
E como acontecimento que era, rodeava-se de alguns inesquecíveis rituais :  em primeiro lugar, nunca regressava a casa sem que tivesse adquirido mais alguns exemplares da minha primeira colecção de livros de histórias, na Papelaria e Livraria Nazareth, ex-libris da cidade, hoje com mais de um século de existência.
A coisa era negociada.  Eram mini-livrinhos.  Talvez cinco por cinco fosse a sua dimensão ... teriam meia dúzia de folhas ...
Havia-os a quatro tostões e havia-os a sete tostões.  Eu escolhia.  Se comprasse dos mais baratinhos, podia trazer mais um ou dois ...
Não sei qual o destino seguido por essas obras.  E tenho pena.  Penso que, de mim terão passado para uma prima um pouco mais nova, e depois ... por lá ficaram.
"Vejo-os" claramente na minha memória.  Não sei já  o nome da colecção. Lembro a "Princesa da Ervilha", o "Gato das Botas", o "Pedro e o Lobo", "Os três porquinhos " ... entre outros.
Todos os clássicos da literatura infantil a incorporavam, e imortalmente continuaram fazendo também as minhas delícias ...

Depois, era obrigatória a entrada na Alabaça, uma pastelaria fina da cidade, localizada igualmente "debaixo dos arcos", como se dizia.  O motivo era sempre o mesmo : a compra de um rim de chocolate que eu adorava, lambareira que sou até hoje.
No regresso, invariavelmente, a minha mãe contemporizava.  E porque o nosso caminho passaria pelo Jardim Público em direcção ao Rossio de S.Brás, faríamos uma pausa, num dos bancos, usufruindo de uma nesga do sol que se esgueirava através das ramagens.
Se fosse Verão, com um pedaço de sorte, teria direito a um Olá, do carrinho do vendedor que por ali parava. Os de fruta ... dez tostões.  Os de baunilha cobertos de chocolate ... vinte e cinco.
Se fosse Outono, beirando este S. Martinho que não demora, umas castanhas assadas também iam bem.  O  cheirinho  a  evolar-se  do  assador,  não  permitia  que  as  esquecêssemos ...

Cumprido o programa, impunha-se então o regresso.

E foi assim que neste dia cinzento e ocioso, em que o recolhimento me deixou por casa  juntinho à vidraça, deixei voar simplesmente o pensamento até lá bem atrás, ao túnel de um tempo que fui vislumbrando já só, por entre os farrapos do esquecimento.

E gostei da viagem !...

Anamar

Sem comentários: