sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

" FLASHES DO QUE ME APETECE ..."



Já anoiteceu. São contudo apenas seis e um quarto de uma tarde sonolenta, de tez meio dourada, de um sol envergonhado que nem foi, nem deixou de ser.
Foi mais um dia de um Janeiro a extinguir-se, um mês decorrido já sobre o Natal, que parece ter sido apenas ontem.
Este silêncio que me aconchega, aninha-me.  É o quarto de sempre, a música de sempre, a janela com vista do alto sobre todo o casario que se estende adiante e lá longe, onde a linha do horizonte se fecha.  Daí, o meu pensamento segue então, cavalgando até onde eu quiser, e até onde eu sei estar tudo o que me apetecer lembrar, tudo o que me trouxer memórias, espaços, emoções e sentires, pessoas, sons, cheiros e cores.
Para lá, além do permitido pelos olhos, há o permitido pelo coração.  E esse, como a mente, não tem limites, barreiras ou muralhas que o confine ou cerceie.

Lá, onde o fraco sol da tarde adormeceu, fica o mar.  E esse, sei-o em cântico de languidez, em ladainha de embalo, em melopeia de adormecimento.
O mar, é o que não começa nem acaba, é o que não tem fim ou princípio, é o que vive para lá dos tempos e os eterniza para além do sempre.
E sempre, é uma palavra que não existe no dicionário dos Homens.  Como nunca.  Nunca, também não sonhamos sequer, o que seja.

E o mar não se define.  Como o Homem, que também não tem definição ou fórmula.
O mar encrespa-se irado. Roça-se de meiguice na calmaria das marés, se são rasas.  Empolga-se e agiganta-se se a lua cresce e se enfuna nas madrugadas.  Pintalga-se em espelho da poalha estelar, se a noite for mansa e escurecida.  Abrilhanta-se em prata, afogueia-se nos pores de sol, azula-se sob céus imaculados e esverdeia-se enraivecido e cavernoso, como olhos de mulher traída ...
O mar ... longe do qual nasci e  junto do qual quero ficar ... quando for ...

Hoje, não tenho sobre o que escrever.  Preciso escrever ... é o que sinto.  Entupo-me por dentro se o não faço.  A cabeça não ajuda, por entorpecida.
Vivo tempos estranhos.  À minha volta, dos que conheço, os problemas, as angústias, as dúvidas e as apreensões instalam-se.  São problemas de saúde, que mesmo nos mais saudáveis começam a anunciar-se.  São problemas existenciais, práticos e objectivos, ou mais disfarçáveis.  Daqueles mesmo que as pessoas carregam, sem que lhes venham ao rosto.  São insatisfações ou incertezas.  São medos ou fobias pelo que aí vem, quando vier e que não sabemos.  São horizontes, que pareciam tão distantes ainda, e que desataram a caminhar na nossa direcção, estreitando os caminhos, aproximando os limites ...
São também os "não problemas".  Desses, eu padeço muito, porque penso demais, acho.
Por vezes invento-os ... acho também.
Pergunto-me pelo tempo.  Pelo que tive, pelo que desperdicei, pelo que terei.  E, já aqui o disse ... tenho uma permanente e estranha sensação de últimas etapas.  É esquisito, eu sei, mas, depois de ter enterrado os meus pais, tios e todos os ascendentes sobrevivos, senti claramente que avancei um passo adiante.  Senti claramente que entrei numa calha de acesso.  Senti claramente que agora fui eu que ocupei os lugares que se esvaziaram na fila, e que serei eu que os esvaziarei de seguida ...

Um destes dias olhei as minhas filhas.
Meia idade, quase jovens ainda ... Quarenta anos,  não serão preocupantes, creio.  E achei que também a elas, o tempo não estava a poupar.
Vi-lhes rostos crispados, cansados, stressados ... com sinais dos primeiros cansaços a sério, das preocupações e dificuldades das existências.
Rostos que ainda ontem tinham luz, olhos que sorriam de despreocupação, silhuetas cuidadas, elegantes, bonitas mesmo ... revelando o desgaste da luta, mostrando o peso das responsabilidades de vidas que se foram fazendo, como se eu não tivesse dado por isso ...
Acho que as "olho / revejo", nostalgicamente, saudosamente, surpresa mesmo, como se os anos não tivessem rodado e eu pudesse espreitar lá atrás ... nos tempos, que agora percebo leves, da sua juventude.  Como se eu me tenha distraído por aí ...
Olho-lhes os primeiros cabelos brancos a espalharem-se, sem se anunciarem sequer ... e emociono-me, sem querer ... Como foi tudo, tão súbito, tão silencioso, tão em bicos ?!...
E vejo os netos, adolescentes, daqui a pouco adultos, daqui a pouco com as cargas que também lhes serão devidas ... e oxalá o sejam ...
E de novo, tudo tão súbito, tudo tão silencioso ... tudo tão em bicos de pés ...

Estranho, tudo isto ...
Qual estranho ?! - dirá quem me ler, atestando-me insanidade real.
Não será tudo, afinal o rumo normal das vidas ?  Não será afinal este, o percurso desejável, expectável e sem demais estranhezas ?!  Não será exactamente assim que se cumprem os itinerários de quase toda a gente ?!
Acredito que sim.  Daí eu falar nos meus "não problemas" ... como se eu, ou alguém pudesse ter algum ascendente sobre o desenrolar inevitável dos tempos ... Como se a minha vontade, o meu sentir, as emoções que experimento, pudessem alterar o desenrolar dos caminhos ...
Parece-me tudo tão irrelevante, tão precário, tão pouco importante ... tão insignificante e sem sentido, como peças de xadrês  atontadas, num tabuleiro incomandável ...
Um piscar de olhos e o ontem já foi ... um suspiro, e o amanhã está quase a ir ...

Fico por aqui, neste "non-sense" que se me impôs, que me ocupou a mente, que me assalta em noites que o sono abandonou ... numa espécie de escrever ao sabor das ideias, numa espécie de libertação dos sentires, sem censura ou filtragem ...
Uma espécie de cansaço ou desencanto ... talvez seja essa a única classificação possível ...

Anamar

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