segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

" NÃO SEI BEM PORQUÊ OU PARA QUÊ !... "



As mimosas já se adornam no manto dourado que as envolve.  São uma mancha de luz que ladeia os caminhos. 
Na mata, a única mimosa que a habita, também deverá ter as ramagens de Inverno, generosamente engalanadas com as bagas amarelas como pequenos sóis dependurados.  Irei ver, um dia destes.
É uma época do ano em que o amarelo tem o privilégio de preponderar.  As azedas multiplicam-se e atapetam os campos.  As macelas competem com as margaridas selvagens, e as cantarinas seguramente já treparão as encostas da Aguda .  Não demora, os narcisos festejarão a nova estação que virá ...
É como se o sol descesse à terra e aguarelasse os nossos horizontes.

Ontem fui verificar a caixa do correio da casa da minha mãe.  Não sei bem porquê, ou para quê...
Que carta ou que notícias espero lá encontrar ?!
Fiquei com as chaves, ainda.  Não sei bem porquê ou para quê...
De lá, só retiro publicidade que entope um receptáculo sem vida.  Para ali já ninguém comunica, já não há contas de água, de luz, de telefone, a aguardarem a devida liquidação.  Para ali, já não há comunicação personalizada, só papelada anónima sem destinatários ou receptores que a aguardem.
Retiro tudo, para esvaziar a caixa.  Subo os dois degraus que separam o hall de entrada dos andares térreos.  A porta lá está, silenciosa, cerrada, muda, inerte.  Morta ... também ! O mesmo tapete no chão.  A mesma ausência de gente, a mesma solidão ... o mesmo vazio.
Há tempos atrás, metia a chave à porta e entrava.  Como se quisesse verificar que estava tudo como foi deixado. Que continuava tudo exactamente como ficou.  Que a luz que atravessa a vidraça da cozinha, ainda ilumina da mesma forma o espaço que alcança.  Agora, vazio.  Devoluto.  Frio.  Gélido.  Sozinho.  Absolutamente abandonado. Serenamente abandonado.
Como se quisesse verificar, se dúvidas tivesse, que as flores já lá não estão, que os móveis também não, que não há sons, vozes, risos, passos ou correrias das miúdas.  Como se me esperançasse que, metendo a chave àquela porta, ela se abrisse e lá estivesse a minha mãe, na salinha, com o Gaspar aos pés, com a televisão ligada no programa do "Gordo" ... aguardando a hora de eu passar para as aulas, no último adeus do dia ...
Como se esperasse ... alguma coisa ... alguém ...

Agora, já não consigo fazê-lo.
Subo os dois degraus, é verdade.  Olho para a porta, silente e imperturbável.  O tapete permanece, indiferente. Por ele, contudo, nem eu já sou capaz de passar ...
Repouso o olhar naquela porta, sem precisar mais de entrar, porque sei de cor o que está além dela, centímetro a centímetro, oiço-lhe as vozes, sinto-lhe os cheiros, dia depois de dia do que foi mais de meio século de vida !
Cá fora, bate o sol dourado da tarde no parapeito das janelas ...
"Vamos p'ra dentro ? - dizia-me, quando depois do almoço espreitávamos o vai-vem da avenida, enquanto o sol baixo de Inverno nos presenteava.  " Ainda bate aqui o sol, mãe.  Já vamos !"

Estava lá ontem, que eu sei. Quando fui verificar a caixa do correio ...
Não sei bem porquê ou para quê !...

A vida !... 
Um dia fica assim. Parada. Inerte.  Insensível.
Um dia fica assim ... uma memória que rasga a indiferença dos tempos, uma imagem a sépia, a esbater-se na luminosidade de Fevereiro ... 
A mesma rua, as mesmas janelas ... a mesma porta ... até o mesmo tapete no chão ... ainda.  Tudo igual e tudo espantosamente diferente.  O mesmo sol a bater no parapeito ... Só que o sol nunca se repete ... nada se repete.  A vida segue adiante. As histórias reescrevem-se com outras personagens, outros rostos, outros corações a pulsar ... com outros figurantes ...
A vida segue adiante ... simplesmente !

Anamar

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