domingo, 7 de março de 2021

" E NÃO MAIS ... "

 


As pessoas partem ...
E depois fica aquela coisa injusta e incompreensível, de tudo ficar exactamente na mesma.  O mundo passa tão igualmente bem, connosco ou sem nós.
O sol brilha, até mais do que em dias borrascosos, mais adequados à morte ... Os pássaros voam e deixam-se escutar com a mesma alegria de sempre ... As flores espanejam a beleza do seu exuberante colorido, adornando os caminhos, enfeitando os arbustos, emoldurando a paisagem ...
O vento sopra, em brisa ou irado.  O mar é igual e diferente, hoje, amanhã, sempre ... e vai continuar antes e depois de nós, a açoitar as falésias ... a beijar os rochedos ... porque é e será sempre assim !
E as pessoas repetem o que fazem todos os dias, com a indiferença do areal que ignora o grão de areia arrastado pela maré.  Um grão a mais ou a menos, que diferença faz ?!  Tudo continuará exactamente como antes.
Se amanhã tiver que chover, choverá.  Se a Primavera estiver p'ra chegar depois de amanhã ... chegará, com toda a certeza do mundo !
O nosso espaço permanecerá imutável.  A cadeira continuará no mesmo sítio ... só que agora, vazia !
Os sons de casa também são rigorosamente os mesmos, porque já o eram há muitos, muitos anos !
E tudo perdurará depois de nós.  
Este xailinho que me protege as costas, já protegia as da minha mãe, faz tempo.  Este xailinho de lã tricotada, foi-o por umas mãos que já partiram há mais de quarenta anos.  Ele continua por aqui, e pode mesmo proteger a minha neta, depois de eu partir ... Que importância tem isso ?
Haverá um tempo em que alguém o lembra.  Findo esse tempo, ninguém mais o lembrará ...
As coisas vivem enquanto alguém as lembrar e nelas falar ... Só !... E a memória do Homem é demasiado curta !

As pessoas partem ...
E o vazio que fica hoje, ficará só durante um tempo.  Porque o tempo se encarregará de o preencher .
A história lembrada hoje, será esquecida.  É só mesmo uma "questão de tempo" ... como se diz.
E o tempo é aquela entidade abstracta que inventámos, só para espalhar marcos incómodos na nossa estrada.  O tempo não serve rigorosamente para mais nada, além de nos angustiar, de nos confrontar com a sua finitude e com a nossa aproximação gradual ao chamado limite desse mesmo tempo ... o fim da nossa existência por aqui !
Ontem, ainda éramos.  Hoje, não somos mais.  
A  voz, a gargalhada que ainda parece escutarmos, o timbre que conhecíamos, o rosto e a expressão familiar aos nossos dias, vão-se esbatendo ... como uma fotografia a sépia, com o correr da vida.
Haverá um tempo em que alguém perguntará quem era aquela imagem naquele retrato ?  De quem eram aquelas palavras, largadas num dia feliz, numa folha de papel, num cartão de Natal ?  A quem pertenceu aquele livro que já pontuou a cabeceira de uma cama ... há eternidades ?
E se calhar, já ninguém o saberá responder, tal a irrelevância da questão.

As pessoas partem, e só vão continuando por aqui, enquanto houver um  que seja, que as lembre ... não mais.
Enquanto houver alguém que diga "era simpático, era meio doido ... apaixonado pela vida ... era insuportável, era doce, costumava dizer ... sempre dizia ... lembram, quando entrava ? ... era amigo ... generoso, sonhador, era alto, sentava-se sempre ali ... não estão a ver ?... "   
 ... enquanto  houver alguém que ainda diga ... nós continuamos a pairar por aqui !
Enquanto houver uma lágrima que escorra por nós ... enquanto  houver quem lembre uma data, quem recorde um momento, quem cite uma frase, quem desencave uma memória ... nós continuamos por aqui.
Enquanto houver ... e não mais !

Hoje foi um dia cristalino, de sol claro e luminoso .  Hoje devia ter sido proibido morrer ... mas as pessoas partem !...

Anamar

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