quinta-feira, 4 de março de 2021

" MEMÓRIAS ... "


Hoje acordei "fora do ar" ... explico : acordei desenquadrada, não situada, às pressas, como se qualquer coisa urgente estivesse por resolver, vá-se lá saber onde.  Acordei irritada, aquela irritação cáustica que sentimos, aliada a uma impaciência corrosiva que experimentamos quando tropeçamos nas próprias pernas ... nem p'ra frente, nem p'ra trás, nada nos sai das mãos !!  Estou portanto insuportável, sem mais folga p'ra aturar o mundo e a vida ... sem mais margem p'ra me suportar até a mim ... ou sobretudo a mim ! 

O dia está exactamente como eu, cinzento, nem carne nem peixe, amodorrado, sonolento, fechado p'ra balanço !
Fora anunciado um dia de chuva, da grossa, numa percentagem meteorológica que não deixava dúvidas.  Hoje e amanhã choveriam "canivetes", como "soi dizer-se".  E eu gosto.  Gosto que chova, e muito, quando sou obrigada a ter por horizonte o que diariamente tenho, igualzinho, frente à minha janela. Quando as raízes que entretanto cresceram e me colam a esta bendita cadeira neste bendito sítio, me cortam as asas, que à minha revelia sempre me projectam lá p'ra longe, p'ra qualquer lugar que não aqui !
Mas até o tempo atmosférico ou quem o "lê", já está apanhado do clima ... é furo atrás de furo ! Chuva, nem uma gota !
E a minha fasquia de paciência e tolerância p'ra tudo, atingiu o limite suportável !

Como dizia uma daquelas brincadeiras que circulam na net e que acabam por nos chegar às mãos, intitulada  "Balanço de um ano de covid": Não tive Covid, mas tive efeitos secundários : sono à tarde, alergia aos canais de informação, perda de vocabulário ( exemplo : "horizonte", "viagem", "projecto", "restaurante" ),  mais três quilos, pantufas gastas, overdose de "zoom" ... tendinite no braço do rato ...
assim estou mais ou menos eu!  
Acrescentaria : súbitos ímpetos de bater em alguém, sobretudo quando esbarro em incompetência, má educação, irresponsabilidade ou parvoíce. Não esquecer que estou em tolerância zero, a quase tudo !
Pareço aquele bicho enjaulado, do zoológico ... ( agora, bem que os entendo ... ).  É vulgar verem-se os grandes felinos, limitados a um espaço muito pouco natural dia após dia, caminhando impacientemente de muro a muro, p'ra frente e para trás, sempre em percurso igual, tempo indefinido.  Ou dormindo, dormindo muito ... aliás como os meus gatos ... como os gatos de toda a gente, acho eu ... que padecem de tristeza e neurastenia !...

Nada se desbloqueia diariamente.  Esbarra-se em portas fechadas, sistematicamente.
Aguardo a intervenção cirúrgica às cataratas ... nada !  Em confinamento, o médico não opera. 
Aguardo que os cabeleireiros reabram... o cabelo reclama !
Aguardo que o homem que viria colocar estendais da roupa novos, compareça.  Também não !
Aguardo que o técnico que viria consertar a máquina de lavar loiça, que "ficou de vir", venha ... Nada !
Aguardo a reabertura da loja do Cidadão p'ra entrega de documentos ... 
E mais que não lembro !  
A sensação de inutilidade, a sensação pantanosa que nos vai sugando o espírito, a falta de vontade e de disposição, são avassaladoras e progressivas.

Ontem era noticiada, por parte de médicos especialistas, a preocupação crescente sobre o avolumar de casos depressivos com contornos psiquiátricos muito graves, em crianças e jovens, fruto dos distúrbios provocados pela vida absolutamente anormal que vivemos, há tempo excessivo.  
Sem horizonte ou fim à vista definido, sem perspectivas, com projectos e sonhos adiados, com a amputação do convívio, da partilha e dos afectos, com um sedentarismo imposto, em confinamento frente a écrans de monitores, horas a fio, e em que a esperança que se acende dia após dia, é empurrada adiante e tudo continua igual ... esta geração, a já chamada "geração do álcool-gel" - ficará inevitavelmente marcada para o resto das suas vidas, com sequelas ainda não estimáveis nem mensuráveis, neste momento.

Nós, os da faixa etária descendente, com uma já longa experiência de vida, com uma resiliência consequente e inevitavelmente maior, com uma visão obviamente mais alargada sobre os percalços e os tropeções com que a vida é useira e vezeira em brindar-nos, com "calo" forjado pelos tempos, pelas desesperanças tantas vezes, pelas dificuldades e pelos desgostos que já enfrentámos ...
nós, que já não sentimos as cócegas imperiosas na sola dos pés que nos obrigam à estrada, nem os frissons ou sobressaltos nos corações de grandes e sonhadas emoções ...
nós, como dizia o meu pai, que já "não corremos a foguetes"... até porque o fôlego da juventude se diluíu com os anos ...
e por tudo isso ... nós que nos sentimos roubados, esportulados e fragilizados pela clara noção de que estamos na verdade a viver tempos "não vividos", estamos na verdade a perder tempo, o "último" tempo das nossas estradas ...
ainda assim ... 
nós ... eu ... sentei-me hoje frente à minha "vitrina das viagens" como lhe chamo, o móvel que mais amo em todo o meu espólio de vida.  É um repositório com centenas de pequenos objectos que fui coleccionando ao longo do tempo, trazidos dos diferentes lugares até onde viajei, ou constituindo recordações trazidas por amigas ou filhas, também de lugares por elas visitados.
São objectos normalmente artesanais que contam histórias sobre tantos países de todo o mundo, das suas gentes e costumes, e que fui guardando religiosamente.  
Eles falam de tempos felizes, de momentos inesquecíveis, de acontecimentos memoráveis.
Alguns, já não tenho certeza absoluta de onde vieram ... mas não importa.  Olhá-los, perder-me a contemplá-los, é um exercício de fuga, de liberdade, de sonho.  É a fruição, outra vez, desses dias, desses anos ... desse tempo!
A minha história também passa pela deles, a minha memória cruza vivências, gentes, cores, cheiros, sabores, que em algum dia eu experienciei !  Não importa o tempo que já passou.  Não importa se as pessoas já não integram a minha história hoje, aqui e agora ... 
Importa apenas que eu as VIVI ... e só sente saudades quem algum dia viveu !!!...

Anamar

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