sexta-feira, 18 de março de 2022

" RÉQUIEM PELA UCRÂNIA "

 


Uma vala comum ... 
A escavadora está no topo, em prontidão.  Será seguramente alargada nos limites, pois os corpos não param de chegar.  Caixões não existem, os sacos plásticos fazem-se à terra uns sobre os outros, amontoados, como amontoados chegaram. Gente anónima, talvez vizinhos, talvez amigos ... talvez desconhecidos ... num mesmo fim desesperador. A vala comum alberga todos por igual ...
Adultos, crianças, homens mulheres, na mesma morada final ... sem uma lágrima, sem uma palavra, sem uma flor... A dignidade possível neste retorno à terra gelada !
E silêncio.  Um silêncio profundo, porque silêncio é tão só o que existe entre os que ainda desafiam a sobrevivência.

Mariupol, a cidade mártir na fronteira leste da Ucrânia, paredes meias com o algoz...
A cidade sem água, sem luz, sem energia, sem alimentos.  A cidade em que a neve se derrete para se ter a água que salve da desidratação.  A cidade em que as temperaturas a baixarem, aceleram um fim inevitável.  Um sofrimento e uma dor que assolam o corpo e emudecem a alma.  Já não há forças para resistir, os corredores de evacuação humanitária retrocedem sistematicamente, pois o cessar-fogo não  é respeitado e morre gente nas colunas de refugiados.  Porque em Mariupol continuam os bombardeamentos indiscriminados. Um apocalipse, um extermínio, um genocídio total ...
Há dias, um hospital pediátrico e uma maternidade foram totalmente destruídos. Ontem, um teatro que albergava mil habitantes da cidade sem esperança, também ... E escolas e infantários e zonas residenciais reduzem-se a escombros.  A população acuada, cercada, encurralada ...

O sudeste, na ânsia de ser criado todo um corredor territorial que ligue o Donbass à Crimeia e aos acessos do Mar Negro com o final domínio de Odessa, encerrando dessa forma o acesso da Ucrânia ao mar, parece ser o desígnio neste momento.  Não importa o que se leva pela frente, não importa que preço seja pago para travar esse objectivo terrorista.
Odessa, a "Pérola do Mar Negro", terceira maior cidade da Ucrânia, cujos habitantes se mobilizaram em esforços, protegendo com sacos de areia das praias, os monumentos de valor inestimável, aguardam dia e noite a invasão, presumivelmente por terra, mar e ar.  Na linha do horizonte, um elevado e ameaçador número de fragatas russas, parece estar estacionado, aguardando.  Por terra, a cidade será alcançada depois de dominada a cidade de Mykolaiv, o que ainda não foi conseguido.
Os nervos, por esta espera desesperante, por esta incerteza angustiante estilhaçam mais e mais a determinação dos habitantes que ficaram, já que, também aqui, o êxodo das populações tem engrossado de dia para dia.
Não esqueçamos que Odessa é uma cidade matriz em termos das rotas comerciais. O seu porto de mar, o mais importante da Ucrânia, é a porta de acesso ao exterior.  A cidade, de uma monumentalidade fantástica, aliás como Kiev também o é, está classificada  pela Unesco como património da Humanidade !

Lviv, aonde a imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima chegou ontem, representando simbolicamente a resposta ao apelo da população católica, que vê na imagem de Fátima a protecção mas sobretudo a paz que tanto anseia, acordou esta madrugada também sob bombardeamentos.
Local de encontro dos que fogem, porta de acesso à Polónia, principal fronteira de saída para a Europa, Lviv tem sido o último lugar deixado para trás na Ucrânia, e o primeiro em que os milhões de fugitivos que anseiam "respirar", encontram com alguma dignidade, apoio, socorro, amparo e ajuda.
Para lá da fronteira, equipas de voluntários em toda uma logística montada no sentido de prover às necessidades básicas de quem se desloca com pouco mais do que uma mala, filhos pela mão e ao colo, animais de estimação e os idosos que nunca seriam abandonados, trabalham incansavelmente dia e noite, tentando mitigar a dor da separação familiar dos que partem e dos que ficam ( não esqueçamos que os homens entre os dezoito e os sessenta anos não podem abandonar o país ), a dor do infortúnio que ali os trouxe, o desgosto da perda de toda uma vida ... e o medo, o medo aterrador que se lhes colou na alma e no coração, não só por tudo o que passaram, mas também pela angústia da incerteza e do desconhecido futuro !
E os corredores humanitários progridem bem além das linhas fronteiriças, e atravessam todo um continente solidário, generoso, mobilizado e disponível, até onde haja um tecto, uma cama, um pedaço de pão e quem sabe, um trabalho ... em suma, um chão onde a cabeça possa dormir tranquila, onde as bombas não aterrorizem o sono dos mais pequenos, onde as sirenes de bombardeio não ecoem e onde um futuro talvez possa reescrever-se, no horizonte de cada um ...

Hoje, Lviv amanheceu com a Praça Rynok no centro da cidade, albergando cento e nove carrinhos de bebé, em memória das cento e nove crianças já falecidas neste inferno.  Um imenso vazio  perpassa por ali, uma solidão e um desespero absolutos abatem-se sobre aquela imagem devastadora ... uma revolta despedaça-nos o coração, e não há como impedir que as lágrimas corram pelas faces.  
Cento e nove carrinhos, devolutos, onde jamais se sentarão os inocentes que nos deixaram, vítimas das bombas, dos mísseis, da destruição... talvez da desidratação, talvez do frio, talvez da fome ...
Não estarão para narrarem o que a loucura dos Homens lhes fez.  Não estarão para continuarem a perguntar-nos "porquê" ?!  Como foi possível que tudo isto acontecesse em pleno século XXI, num continente chamado Europa ?! 

Não vou alongar mais este meu texto.  Já não tenho fôlego para ouvir os relatos, ver as imagens, olhar, olhar perdidamente, um país que infelizmente não visitei, cidades que infelizmente não conheci ... enquanto o foram !...
Hoje, dentro de mim, só há silêncio, um silêncio sepulcral, pesado, sufocante, de dor, de vergonha mas sobretudo de perplexidade !!!

Anamar

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