segunda-feira, 11 de agosto de 2014

" CRIADOS PARA AQUILO QUE NÃO PODEM OU NÃO QUEREM SER "

Publico aqui, na sequência do post anterior, o segundo artigo  versando o tema  uma visão sobre as "diferentes gerações", na História recente, em Portugal .
                                                                                                  Anamar

Qualquer classificação geracional uniformiza o diverso, mas ajuda a perceber o que é comum.
Os que nasceram entre 1965 e 1981 viveram "uma promessa de estabilidade" e agora lidam com a incerteza, sob forte pressão para terem filhos e serem perfeitos nesse papel.
Este é o segundo de cinco textos publicados ao domingo, sobre as diferentes gerações.



Silvana Mota Ribeiro conta 40 anos e namora há dez.  Se usar um vestido largo, uma suspeita propaga-se no seu local de trabalho - a Universidade do Minho.  Da última vez, perguntou-lhe uma sorridente funcionária : " A senhora professora está de esperanças ?"  Ela arregalou muito os olhos, como lhe acontece sempre que fica horrorizada com qualquer coisa : " Tenho esperança de não estar !"




Portugal atingiu a mais baixa taxa de natalidade da União Europeia.  É forte a pressão para ter filhos, mas aquela a que os americanos chamaram Geração X - a dos que nasceram de 1965 a 1981, ou mesmo a 82, 83, 84, conforme os estudiosos - nunca se rendeu por completo à parentalidade.  Desde que os primeiros atingiram a maioridade, Portugal deixou de fazer renovação geracional.

O país da infância de Silvana era outro.  As crianças ficavam entregues a si próprias sem que aí se visse negligência paterna.  Brincavam na rua com cordas, bolas, bicicletas e carrinhos de rolamentos.
No fim do dia e no fim da semana, assistiam aos mesmos desenhos animados - a Heidi, o Marco, o Conan, o Tom Sawyer, o Calimero, o D'Artacão e os três Moscãoteiros.  Só havia RTP.

Experimentaram o vídeo clipe.  Imitaram estrelas Pop.  Não era fácil chegar às alternativas.  Quem podia encomendava discos e gravava cassetes aos amigos.  A espera era muita.  A dificuldade de acesso só ajudava a intensificar a relação com a música.  Havia tempo para a idolatração.  À boleia do alargamento da escolarização e das classes médias, desenvolviam-se diversas culturas juvenis.


Portugal não é de inventar rótulos geracionais, prefere reproduzir os internacionais, mas tem as suas originalidades.  E, há 20 anos, sem querer, o jornalista Vicente Jorge Silva cunhou esta geração.  Depois de ver fotografias de estudantes do secundário a mostrar o rabo e o pénis num protesto, era Manuela Ferreira Leite ministra da Educação, assinou no PÚBLICO o editorial "geração rasca".  Naquelas imagens via um sintoma de "vazio de valores", de apetência alarve pela "vulgaridade".

A cena que indignou Vicente Jorge Silva era um remake.  Um ano antes, no Centro Cultural de Belém, quatro rapazes tinham mostrado o rabo, com a frase "não pago" pintada, ao inventor das propinas, o ministro Couto dos Santos.  Havia um ambiente geral de insatisfação, recorda um desses rapazes, Luís Branco, agora com 40 anos, a editar o Esquerda.Net, site do Bloco de Esquerda.  "Era o desgaste do Cavaquismo."

Os estudantes tinham tomado a rua.  Primeiro, contra a Prova Geral de Acesso ao ensino superior, um exame de língua portuguesa e de cultura geral, encarada como uma forma de favorecer as classes altas.  A seguir contra as propinas, em defesa do ensino "tendencialmente gratuito".  Depois contra as provas globais.  E não faltava eco.  Entre 1989 e 1993, apareceram a TSF, o PÚBLICO, a SIC e a TVI.
Apregoava-se que não seria pela indústria, pela agricultura ou pela pesca que Portugal se tornaria competitivo.  Havia uma crença inabalável na educação como factor de ascensão social.  Entre 1984 e 1994 o número de inscritos nas universidades e politécnicos passara de 95 mil para quase 270 mil.  A menos que se tivesse dinheiro, a entrada no ensino superior exigia esforço.  As vagas não davam para todos.

Luís Branco perdera o pai aos sete anos.  Filho de uma funcionária dos correios, estudava Comunicação Social na Nova de Lisboa.  As suas lutas pouco interessavam a Abel Humberto, filho de um técnico de farmácia e de uma doméstica, que aos 17 anos começara a despejar cinzeiros, a apanhar toalhas e a lavar cabeças e na altura dos protestos estudantis já ganhava "bom dinheiro" a cortar e a pentear cabelos.
Eram colossais os fundos comunitários destinados a modernizar a economia.  Entre 1986 e 2001, o PIB cresceu a uma taxa média anual de 3,9% e essa abundância relativa enchia restaurantes e cabeleireiros.  "Havia o hábito de ir arranjar o cabelo para o fim-de-semana", recorda Abel, agora com 43 anos.
Emigrava-se menos.  E a vaga de imigração ajudava a insuflar a auto-estima nacional.

"Somos a geração da esperança na bandeira azul com estrelinhas amarelas", resume Silvana Mota Ribeiro.  A televisão passava muitos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria.  " E se URSS e EUA se passam ? Estamos aqui no meio !"  Havia muros reais e muralhas imaginárias a separar países desavindos.  A CEE não era só um símbolo de consumo, também de paz, de solidariedade, de igualdade.  Muitos lembrar-se-ão da queda do muro de Berlim em 1989 e da abertura de fronteiras em 1995.  Quem podia, metia-se num comboio e ia ver.  O InterRail, embora caro, era a opção "baixo custo".  E voltava bem a tempo de arranjar emprego.



"Geração interrompida" 

O sociólogo João Teixeira Lopes, a celebrar 45 anos dentro de dias, usa a expressão "geração interrompida" : "Viveu uma promessa de estabilidade.  Conseguiu ter pequenas margens de conforto. Foi apanhada pela crise numa idade em que, num instante, se pode tornar obsoleta, descartável."
O tempo é de sobrecarga fiscal, cortes salariais, elevada taxa de desemprego, recuo na protecção social.  "As dificuldades económicas trouxeram ao de cima dificuldades relacionais", prossegue Teixeira Lopes.  E, mesmo assim, pela primeira vez desde o 25 de Abril de 1974, o número de divórcios baixou.  Muitos têm filhos e "ficam em pânico quando chega o envelope do gás ou da electricidade".
Não cresceram mentalizados para o sacrifício como os pais, amiúde focados na sobrevivência.  Nem estão preparados para enfrentar a precariedade, como a geração seguinte, que nada mais conhece.  "É uma luta do caraças", suspira a técnica psicossocial  Inácia Cruz, de 37 anos.  "Primeiro, já temos alguma idade.  Depois, mistura-se o que imaginamos com o que conseguimos ".

Trabalhou com crianças e jovens de bairros periféricos, mães adolescentes, doentes mentais, sem-abrigo e, um dia, percebeu-se desempregada, extenuada, descomprometida com a sua vida pessoal.  Recompôs-se.
Faz oficinas criativas, dinamiza jogos teatrais, é contadora de histórias, mas ainda não consegue viver só do seu trabalho, acha que ainda não encontrou forma de o promover, como fazem os amigos mais novos.
E dá por si a viver num quarto arrendado e a socorrer-se da mãe.
Inácia acredita que "é possível viver dos sonhos", mas todos os dias sente o quanto isso custa.  Gostava de perceber para onde tudo isto a leva.  Por vezes, pergunta-se : "Onde estarei daqui a cinco anos ?  Gostava de ter um espaço para trabalhar na educação pela arte, um companheiro tranquilo no compromisso, filhos.
É muito difícil ..."  Sem estabilidade, tudo se adia, tudo, até o amor.  Tem "não relações" ou "relações não convencionais".

A forma de encarar o amor diversificou-se.  Discursos tradicionais e progressistas misturam-se, sobrepõem-se, até dentro da mesma pessoa.  Enquanto socióloga dos estilos de vida, Silvana Mota Ribeiro procura tendências e uma parece-lhe evidente : "Esta geração tem muito mais escolha do que a anterior".  Quantas pessoas agora têm uma relação estável com alguém que mora noutro país ?", exemplifica.
"As pessoas encontram-se voando.  A relação à distância já não é um absurdo, uma coisa da emigração, do tempo em que os homens iam e as mulheres ficavam."
Os pais de Silvana ainda a imaginaram a chegar virgem ao casamento - era isso que se esperava das raparigas -, mas ela, como muitas mulheres da idade dela, não pensa em casamento e nunca se sentiu "uma atrevida" por meter conversa com um rapaz que lhe despertasse interesse numa festa.  "A minha geração desenvolveu o que era ainda um discurso em potência em meados dos anos 80.  Tomou em mão o dar o primeiro passo, o primeiro beijo."



"Não és uma mulher completa !"

Vulgarizou-se o divórcio, a união de facto, a família recomposta, legalizou-se o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo.  E apesar disso tudo, o "modelo ideal" resiste : um homem e uma mulher entendidos como diferentes e complementares .  E, mal se casam, começa a pergunta : "Então, quando têm um filho ?"
A pressão não é igual para homens e para mulheres e isso, defende Silvana  Mota Ribeiro, não tem só a ver com relógio biológico.  Se o homem disser que um bebé é uma maçada, que prejudica a carreira, tolera-se.  Se for a mulher, nem pensar.  A mulher  continua a ser vista como cuidadora.  "Não és uma mulher completa !", dir-lhe-ão.  "E depois ? Quem vai cuidar de ti quando fores velha ?"

Uma mulher tem de apresentar uma razão externa - é infértil, não tem companheiro, o emprego fica em risco.  Não chega dizer : "Não quero".  Silvana diz.  E ao fim de tantos anos a mãe dela ainda lhe pergunta : "Mas isso é para sempre ?  Não pensas em ter um dia ?"  E ela responde-lhe : " Se calhar não.  Estou bem assim.  Por que hei-de mudar, se estou bem assim ?"  E a mãe começa a falar nas alegrias da maternidade.  "Ai, o que estás a perder !  Sabes lá o que é ser mãe. É uma coisa superior a tudo.  Vais arrepender-te.  Olha que o tempo passa.  Já tens 40 anos !"

Fala na sua opção com cuidado, sobretudo com amigas que sabe pressionadas para serem "mães perfeitas". Sabe que o seu discurso tende a ser mal percebido.  E não quer que a vejam como carreirista, egoísta, sem amor para dar.  " Quando tens um filho, nunca mais és independente", diz.  "Isto é uma coisa muito grande para perder. Tens uma criança e és responsável por ela para sempre.  Nunca mais tens a tua vida só para ti. Não podes partir.  Não te podes fazer ao mundo."

A Geração X não desistiu de ter filhos.  Tem cada vez menos e cada vez mais tarde.  Segundo o último Inquérito à Fecundidade, a maior parte gostaria de ter duas crianças, mas acaba por ter uma.  Foi-se alargando a escolarização, atrasando a entrada no mercado laboral, precarizando a relação com o trabalho e às costas da mulher continuou o grosso do trabalho doméstico.  Já não é como na geração anterior, mas na maior parte das vezes ainda são elas que cozinham, limpam, tratam da roupa.  Poucos homens gozam a licença de parentalidade para lá do obrigatório.
O lugar dos fraldários é nas casas de banho das mulheres.  Isso nunca foi um problema com que Abel se deparasse.  Deixava isso aos cuidados da mãe do filho, agora com cinco anos, que só vê de 15 em 15 dias.

Luís Branco, de certo modo um dos ícones da "geração rasca", tem uma filha de nove meses e uma enteada de nove anos e não tem conta às fraldas que mudou.  Compete-lhe dar banho à menina e adormecê-la todas as noites.  Ele trata do jantar e da louça e a companheira trata da roupa.  A mulher-a-dias trata do resto.

Nem só por vontade masculina a paridade assume contornos de história de excepção.  Como mostram os estudos da socióloga Margarida Mesquita, com maior frequência os homens trabalham por turnos, trabalham mais horas, têm dois trabalhos.  O "novo pai" também sente culpa por ter pouco tempo para os filhos e, por vezes, só não participa mais porque a mulher não deixa.
"Se um ( filho ) ficar doente, só confio em mim ", ri-se a dramaturga e actriz Marta Freitas.  Tem duas crianças de 11 e 9 anos.  "Acho que os pais estão num desequilíbrio muito grande em relação à  forma como são pais.   Têm de trabalhar muito e querem muito estar presentes e acabam por interferir demais."  Faz parte da associação de pais.  Vê como alguns afrontam professores porque  querem mais trabalhos de casa, menos trabalhos de casa, zero trabalhos de casa.

"Acho que a minha geração levou uma chicotada", resume aquela profissional do teatro, que antes estudou psicologia clínica.  "Vive uma mudança muito grande.  As perturbações de ansiedade - os ansiolíticos, os antidepressivos - têm muito a ver com isso.  Estávamos habituados a perceber a vida de uma forma muito linear.  Não havia esta azáfama.  Parece que está tudo em causa.  As pessoas têm medo.  Parece que virou tudo ao contrário.  O que aprendeste como filha já não podes transmitir aos teus filhos porque esse mundo já não existe."
Sem a retaguarda  familiar que existia noutros tempos, pressionada para trabalhar cada vez mais horas por cada vez menos dinheiro, muitos arrastam os filhos de actividade em actividade.  Nesta ânsia de querer preparar os filhos para tudo, e já com os pais a precisar de apoio, parte da Geração X vai-se esquecendo de si própria.

Notícia corrigida às 15h12 : quatro rapazes mostraram o rabo ao ministro Couto dos Santos, não na Universidade Nova, como inicialmente estava escrito, mas no Centro Cultural de Belém.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

" VINTE ANOS PARA GOZAR A VIDA DE REFORMADO "

Aproveitando a preocupação cultural deste meu espaço, faço questão de aqui deixar este texto, que parece vir a ser o primeiro de cinco, a serem publicados nos media, sobre a temática abordada, domingo após domingo.

Considerei-o particularmente bem escrito, denotando uma visão sobre o tema, real, objectiva e muito clara. De alguma forma nele me revi, e ele subscrevo.

Teria pena que ele se perdesse na "poluição" informativa, em que tantas vezes se transforma  a comunicação social, ou  na amálgama de assuntos, disseminada pelas bancas, efémera e rapidamente relegada ao esquecimento.

Como tal, aqui o deixo, neste espaço familiar, desejando que o apreciem devidamente.

Anamar




GERAÇÃO 45-64

Vinte anos para gozar a vida de reformado


Qualquer classificação geracional uniformiza o diverso, mas ajuda a perceber o que é comum. Os que nasceram entre 1945 e 1964 testemunharam ou protagonizaram as grandes mudanças sociais da história recente do país e agora estão a reinventar o que é ser velho. Este é o primeiro de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações.

Manuela Matos Monteiro pensou muito nisto antes de se reformar, aos 59. Aos 65 anos, uma mulher tem 20 pela frente. “É outra vida!” A geração anterior não se podia dar ao luxo de esperar tanto. As pessoas deixavam de trabalhar e iam “gozar a vida” antes que ela se apagasse. O que é “gozar a vida”? Deixar-se estar na cama até tarde, viajar, passear sem pressa, oferecer côdeas de pão aos patos, contar histórias aos netos, ficar horas a ler, em suma, fazer o que uma vida inteira de afazeres foi adiando? Quanto tempo dura o prazer de ter tempo? Eis um dilema novo que se coloca a uma geração habituada a desbravar caminho.
Os norte-americanos chamaram “baby boomers” aos que nasceram entre 1945 e 1964. Depois de 16 anos de depressão e guerra, houve um súbito aumento de natalidade nalguns países europeus, nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália. Esse fenómeno, associado ao crescimento económico e à esperança no futuro, ficou conhecido como “baby boom” - explosão de bebés. O rótulo difundiu-se pelo mundo fora.
Não é que tenha havido pico de nascimentos em Portugal. É que o rótulo é antes de mais cultural, explica António Fonseca, da Universidade Católica. E, à sua maneira, o país até viveu uma explosão demográfica. Houve um invulgar crescimento populacional em 1974 e em 1975 - pelo regresso de gente que estava no Ultramar e em países europeus afectados pelo choque petrolífero, como a França e a Alemanha.
Quando Manuela era jovem, Portugal era jovem. Em 1970, havia 33 pessoas maiores de 65 anos por cada 100 com menos de 14. Agora que envelheceu, Portugal está envelhecido. No ano passado, a proporção era de 133 para 100. Mas o que tem ela, filha de um industrial, licenciada em Filosofia, em comum com Zulmira Oliveira, filha de um operário, que fez a 4ª classe e aos 12 anos já era empregada de balcão?
Apesar de singulares, as vidas inscrevem-se em regularidades feitas de marcas culturais, como tantas vezes explica o sociólogo José Machado Pais. Manuela e Zulmira testemunharam ou protagonizaram as grandes mudanças sociais da história recente.
Nasceram numa imperial ditadura. Mobilizado para o Ultramar, o homem por quem Zulmira se apaixonou foi prisioneiro de guerra, retornou com uma tristeza infinita. Já o homem por quem Manuela se apaixonou preparava-se para fugir com ela para França antes que o mandassem para a guerra. Da noite para o dia, a luta pela liberdade deixou de ser um acto clandestino, passou a ser uma festa.

O país abria-se. E a ideia de “juventude sã”, livre de prazeres “fáceis e degradantes”, típica dos regimes totalitários da Europa do século XX,  ia dando lugar a uma juventude com vontade de experimentar, de viver o que antes não se podia, sequer se desejava, porque a falta de liberdade não afectava só o que se fazia, também o que se queria.
Luís Fernandes tem 53 anos e ainda se lembra do dia em que a sua professora de canto coral apareceu com um disco dos Pink Floyd debaixo do braço. “O rock ensinou-me revolução à sua maneira”, comenta. Não era só a sonoridade. Era tudo em volta dela, incluindo as festas que passaram dos bombeiros para as garagens. “O slow dançava-se apertado e à meia-luz. Era o corpo da mulher que estava lá. Percebíamos que podíamos ser livres até nas nossas relações. O ‘peace and love’ e o ‘sex, drugs and rock & roll’ são ícones dos anos 60 que a Portugal chegaram só depois do 25 de Abril.”
O agora professor da Universidade do Porto, especialista em comportamento desviante, cresceu numa família “pequeno-burguesa”. Ninguém falava de política lá em casa. A política, no tempo da ditadura, era coisa de poucos. Nos dias da revolução, estava no Liceu de Gaia e foi lá, nas reuniões dos delegados de turma, que aprendeu o que era democracia. As pessoas levantavam-se, discursavam, gritavam e cada braço valia um voto. Ao chegar à Universidade do Porto, em 1980, haveria de usar roupas coloridas e cabelos compridos, de ser um freak, cultura pós-hippie de jovens urbanos e esquerdistas, que ouviam rock progressivo e psicadélico. 
Nichos de modernidade despontavam, em particular, em Lisboa e no Porto, onde os filhos da insípida classe média tinham tempo para discutir. Fora das maiores cidades, o país era outro. Era devagar que Portugal rural se abria, à boleia da televisão e dos que tinham saído para as cidades ou para o estrangeiro. António Fonseca que o diga. Cresceu em Oliveira de Azeméis, município rural em vias de industrialização, e aprendeu a revolução no Movimento de Acção Católica. Fazia daquilo uma militância como outros da sua idade faziam nas juventudes partidárias – caso de Pedro Passos Coelho (PSD) e de António José Seguro (PS).
Lembrar-se-ão ainda muitos de ver, pela televisão, Mário Soares, então primeiro-ministro, a assinar a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia. E de acreditar que vinha aí um futuro glorioso. A promessa era clara: não estavam fadados à “triste vidinha” da geração anterior, poderiam ter uma vida mais ou menos parecida com a dos povos europeus de que Portugal se queria aproximar. 
O poder de compra era em 1970 metade do da média europeia. Entre 1973 e 2011 foi-se aproximando, de forma progressiva. Alguns começaram a usufruir de prazeres como jantar fora, ir ao cinema ou passar uma semana de férias no estrangeiro. Confirmava-se a promessa de dias melhores, apesar da desigualdade gritante persistir.
O Portugal de 1970 não era só rural e miserável. Era semianalfabeto, empoeirado nos costumes, tacanho nas ideias. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, 27,7% da população era analfabeta; só 0,9% tinha curso superior. Volvidos 40 anos, quando os primeiros "baby boomers” chegaram à idade da reforma, Portugal tinha 5,2% de população analfabeta, 14,8% com curso superior.
“Sobretudo quem era de origem remediada deu um salto muito grande”, nota António Fonseca, que conta 50 anos e tem duas filhas, de 17 e 19. Quando tinha a idade delas, os tempos da vida estavam muito bem definidos. O comum era ir à escola, estudar; sair da escola, começar a trabalhar. A pessoa começava a trabalhar e era adulta. Na dúvida, a tropa fazia de um rapaz um homem. Poucos chegavam às universidades e esses tinham a certeza de que iriam encontrar um emprego à medida. 

A vida era mais linear. Mostra-o até a trajectória de Luís Fernandes. Arranjou aos 24 anos o emprego que ainda agora tem e aos 28 comprou casa e casou-se. Nem precisou de um fiador para obter o crédito à habitação. Divorciou-se. Viveu em união de facto. Tornou a casar-se. E este registo íntimo também é marca de uma geração.
Os estudos da socióloga Anália Torres elencam razões para a multiplicação do divórcio: vulgarizou-se a pílula contraceptiva; aumentaram as liberdades individuais; as mulheres entraram em massa no mercado de trabalho; perdeu peso o sector primário; as famílias encolheram; as relações amorosas tornaram-se mais exigentes.
Os nascidos entre 1945 e 64 passaram grande parte da vida a ensaiar novas formas de estar. E agora, que têm entre 50 e 69 anos, ensaiam novas formas de envelhecer. Alguns quiseram reformaram-se ou estão a reformar-se antes do tempo. Cansaram-se de trabalhar – sobretudo as mulheres, que tiveram de conciliar a vida profissional com a vida familiar, quase sempre com companheiros incapazes de partilhar tarefas domésticas. O marido de Zulmira nem um ovo sabia estrelar. 
A sensação de libertação não dura sempre, avisa António Fonseca. Para a sua tese de doutoramento sobre o envelhecimento, inquiriu 502 reformados e percebeu que a satisfação com a vida cai a partir do quinto ano – “a partir do nono é dramático”. Isso tem diversas explicações e uma delas é a falta de objectivos para os quais canalizar energia. “O gozar a vida é um fogacho. Alguns ficam deprimidos. Arrastam-se pelas superfícies comerciais. Fazem o circuito das doenças. Qualquer sinal os leva ao médico.”
Há quem opte por trabalhar para lá da idade da reforma – uns por razões financeiras, outros para manter uma identidade assente no trabalho. E nem todos os que pedem reforma antecipada querem apenas fugir ao presente. Alguns definem um novo projecto de vida, tratam de reinventar-se.
Manuela e o marido, João Lafuente, trabalham ainda mais agora do que quando ela era professora no ensino secundário e ele se ocupava da informática num banco. “Sempre achei que uma reforma precoce era uma armadilha, sempre achei que tinha de ter um projecto”, diz ela. “A pessoa está habituada a cumprir um horário. Queixa-se disso uma vida inteira, mas sente desconforto quando encontra o tempo aberto. Tenho de ter horários para os meus dias renderem e fazerem sentido.”
Partilham o gosto pela fotografia nas galerias Espaço Mira e Mira Fórum, que abriram no ano passado. Atraem com elas muita gente a Campanhã, freguesia relegada do Porto. “ É uma vida completamente diferente da anterior”, exclama ela. Adorou ser professora. Não se zangou com o ensino. Queria fazer outra coisa. E sente que exerce o seu sentido de cidadania ao “marcar Campanhã de forma positiva”.
Tudo se torna mais difícil quando a reforma antecipada é imposta pelo desemprego e não há margem para recomeçar. A pessoa pode sentir-se um “resíduo humano”, na expressão provocatória do sociólogo polaco Zygmunt Bauman.
No final do mês de Agosto, Zulmira há-de pedir reforma antecipada. No centro de emprego já lhe explicaram que é “o melhor”. Completa 63 anos em Dezembro. Desde os 59 que não consegue regressar ao mercado de trabalho.  Dizem-lhe que naquela idade já não apetece aos empregadores.
Trabalhou 20 anos numa loja. Despediu-se para abrir o seu próprio negócio. Abriu-o em 1986 e fechou-o em 1999. Tudo ia bem até ao marido descobrir um cancro de pulmão. Durante um ano, viveu para cuidar dele. Quando morreu, ficou demasiado desorientada. Nunca pensou que fechar a loja fosse o fim. “Eu sempre adorei o comércio. Pensava que ia morrer no comércio.”
Tinha 49 anos. Fez arranjos de costura para sobreviver. Ainda trabalhou, primeiro, a tempo parcial como repositora numa cadeia de supermercados, depois a tempo inteiro como recepcionista numa empresa de design. Não sabia falar inglês. “Só podia atender chamadas em português.”
Dedicou-se aos netos. Tem dois – um de 13 e outro de sete. Ama-os, mas não deixa que a anulem. “Não posso estar limitada. Os meninos se não puderem vir não vêm. Têm outra avó. Gosto de ir tomar café ou de ir jantar com as minhas amigas. Tenho ido à Baixa com ideia de tomar café e às vezes nem tomo, mas sabe-me bem ir. Vou dar a minha voltinha e faço de conta que fiz uma viagem muito grande. “
A ideia de que o desempregado ou o reformado está disponível leva algumas famílias a tomarem de assalto o seu tempo. E esta geração, ao contrário da anterior, já tende a não achar que isso é um desígnio. Se começar a ser muito solicitada, pode queixar-se de falta de vida própria.
Antes, um velho era um velho. Percebia-se pelo vestuário, pela postura corporal. Até parecia mal usar calças de ganga. “Isso era ser uma velha gaiteira, alguém que não sabia envelhecer”, diz Manuela. “Neste momento, todos os velhos são gaiteiros!” Vingou o culto pela juventude. O mercado publicitário já percebeu. Há cada vez mais anúncios com grisalhos muito enxutos. E a questão que se impõe, repete Manuela, é esta: “A pessoa tem 64 anos, está saudável, tem energia, tem competências, tem uma perspectiva de vida de vinte anos. O que faz com isto?”
Haverá muito para repensar para lá dos programas de voluntariado mais adequados a esta nova realidade, que já não tem só terceira idade, também tem quarta e quinta. António Fonseca defende um modelo de passagem gradual à reforma. “Numas empresas isso não seria possível. Noutras seria e essa possibilidade devia ser dada ao trabalhador. Com reforma gradual ia preparando o passo seguinte.”
O impacto nas contas públicas é cada vez maior. Os pensionistas da Segurança Social já somavam 2.981.635 em 2012; os reformados, aposentados e pensionistas da Caixa Geral de Aposentações outros 603.267. Todos juntos representam 40,1% da população residente com 15 e mais anos. Muitas vezes são eles que apoiam filhos com vidas profissionais periclitantes - tantas vezes espantados por perceberem que, afinal, não haveria sempre crescimento. A sua geração vive melhor do que a anterior, não é líquido que a seguinte possa dizer o mesmo. 

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

" E MAIS O QUE EU INVENTAR ... "



A gente faz os lugares ...
Sem  dúvida,  cada  vez  mais  me  é  óbvio que não adianta estar-se  no paraíso, se  o  paraíso  não  está  em nós ...

Por isso, pode estar-se na maior solidão e abandono, rodeado de gente, pode estar-se infeliz  frente a um cenário deslumbrante, ou no mais cobiçado canto do mundo, no espírito de qualquer mortal ...
E ao contrário, conseguiremos descortinar o sol e sentir o seu calor aconchegante a envolver-nos, conseguiremos sentir-nos plenos ainda que sós, preenchidos de emoções e de paz, mesmo em condições precárias,  mesmo com poucos requisitos cumpridos, ainda que teoricamente talvez isso não fosse expectável .

Picasso dizia " Há quem transforme o sol  numa insignificante bola amarela, e há quem transforme uma bola amarela no próprio sol !... "

E isto é absolutamente verdade, todos o sabemos e sentimos.
A felicidade não está nas coisas, nos lugares, nos momentos ou nas pessoas que os preenchem.  A felicidade está, ou não está, dentro de nós, num coração desarmado, limpo, disposto  e  aberto a deixar-se tomar, invadir, preencher ...
O recheio sempre tem que ser interior ... é o da alma e do coração !  O conteúdo é o da disponibilidade do espírito, para transformar as pequenas coisas insignificantes, em grandes acontecimentos gratificantes.

A fotografia mais genuína de um lugar, não é a que cuidadosamente captamos com a máquina.
Essa é uma mera imagem impressa numa película, numa memória.
Essa está despida, nua, vazia ...  Essa, é "curta", incompleta e é irreal.
A verdadeira fotografia não existe, nem vale a pena tentar fazê-la, porque ela é um misto de vectores indescritíveis, incomensuráveis e intransmissíveis.
Ela transportaria todos os valores de cor, luz, brilho, som e imagem, que a objectiva captou e a tecnologia processou, duma forma aparentemente perfeita e sofisticada.  Mas também e sobretudo, ela teria que transportar toda a amálgama de componentes respeitantes à subjectividade, à sensibilidade, à emoção ...
Ela teria que conter o som ( não o que ficou registado na câmara, mas aquele que apenas os nossos ouvidos "ouviram" ... ), o calor ( aquele que nos embriagou e nos impregnou a alma ... ou o friozinho que nos percorreu, porque isto, ou porque aquilo ... ), o silêncio que talvez então nos cortava a respiração ... o tique-taque desordenado das batidas do nosso coração ... ou a mansidão das lágrimas que desceram em emoções incontidas e teimosas ... nesse momento ...
E teria que conter os cheiros que não se descrevem ... nunca se descrevem ... Os sentidos, todos os sentidos também ...
E os sentidos são isso mesmo ;  "sentem-se", não se racionalizam, nem têm alfabeto com que se digam ...

... E  obviamente  "essa"  fotografia,  "essa"  imagem  única  e  exclusiva, é  pessoal, é  impartilhável, é indescritível ...
Viveu-se e é nossa, só nossa ...  É riqueza pessoal.  Morrerá connosco, ou com a morte das nossas memórias !!!

O mesmo com os lugares ...
Posso vivê-los, ou posso só inventá-los.
E vivendo-os, ainda assim, sempre os viverei dependendo daquilo que me preencha e eu transporte dentro de mim, nesses instantes, da minha capacidade de ainda me emocionar, me surpreender, da minha disponibilidade de coração, da grandeza da minha alma ... do espaço que dentro de mim, eu ainda tenha p'ra sonhar ...

Em suma, da força de que eu disponha  para transformar o tal  borrão amarelo, num imenso sol na minha vida !!!...


Anamar

quinta-feira, 31 de julho de 2014

" TANTO TEMPO JÁ !... "




Pensava eu com os meus botões, olhando o insípido cinzento do dia, num Verão nem carne nem peixe :  faz hoje vinte e dois anos que a vida me deu uma rasteira daquelas !
Faz hoje vinte e dois anos que o meu pai me deixou ... E com ele, partiu aquela ingenuidade e bonomia com que acreditamos as coisas certas da vida .
Como se a vida tivesse "coisas certas" !...

Foi o primeiro grande revés, assim uma espécie de experiência em proveta, para ensaios futuros.
A gente balança, a gente degusta o sabor azedo do abandono, a gente experiencia mesmo a doer, uma orfandade estranha, como o menino sozinho que no deserto  olha as areias monotonamente iguais, a perder de vista, sem caminhos ou nortes ... e não sabe para onde há-de ir ...
E zanzamos por ali, sem atinar muito bem se apanhamos os cacos, se reconstruímos o puzzle, se somos capazes de seguir adiante, apesar daquela injustiça contra-natura  e mortal.

Depois, recomeçamos.
E recomeçamos com novos códigos, novas formas de sobrevivência, novos acreditares, novos empenhos ...
Porque o ser humano tem inata em si, a capacidade regeneradora.

Recomeçamos ano após ano, mês após mês, dia após dia, por cada nascer e cada por de sol.
Por cada alegria ou cada tristeza, por cada insucesso ou cada vitória, por cada riso ou por cada lágrima !
Esgravatamos cada pedra coberta de musgo, e com dedos sangrando, progredimos na encosta ... quando quase já não acreditamos !

Renascemos com cada filho que se aninha no nosso colo, com cada neto que nos conta a sua história, com mãe velha, sequiosa de mimos ...
Reerguemo-nos com cada amor que pinta de arco-íris o nosso céu ... ainda que o arco-íris seja passageiro, e sirva só de trampolim às estrelas ... e nós o saibamos ...
Amarinhamos até ao pico da montanha, sempre que precisamos ver o céu azul, quando as forças ficam falhas ... uma e outra vez ... E não sossobramos ...
Olhamos as flores, e deixamos que os colibris bebam as nossas lágrimas teimosas, que às vezes ficam cegas frente ao universo, complacente e generoso ... E ajoelhamos, que é o primeiro degrau  para  a humildade do percurso ...

E recomeçamos, com as bengalas dos que nos amam, depondo armas de mágoa, deixando raivas e ódios pelos atalhos e veredas.
Aprendemos a perdoar, porque queremos e somos capazes ... E um coração sem dores impressas, pesa-nos menos na jornada !
Perdoamos, mas não esquecemos ...
As páginas do livro foram escritas, e sempre as folheamos, quando nos faz falta ...

E recomeçamos, quando parece que já não há muito para recomeçar.
Mas sempre há !   Porque todos os dias têm alvoradas,  e todas as manhãs acordam de uma noite.
E se hoje choramos, amanhã iremos seguramente gargalhar ... porque a roda é isto... voltar ao princípio, todas as vezes que se fechou o ciclo !

Há vinte e dois anos que fiquei mais pobre ... Ilusoriamente mais pobre, apenas !
O meu pai partiu, só porque tinha que partir ... Era a hora, urgia cumprir o decidido.

Deixou-me  uma nuvem de afecto, à qual só eu tenho acesso. Da qual só eu conheço a chave de entrada.
E ganhei um querubim de olhos verdes, gestos doces e asas protectoras, que me toca ao acordar, que me embala ao adormecer, e que conversa comigo à surrelfa, quando ninguém está por perto, na nossa linguagem  única, nos nossos diálogos de silêncio, e eu o "alugo", com  as  minhas  dúvidas, as  minhas ansiedades,  as  minhas  inquietações  e  os  meus  medos ...

É com ele que renasço, quando ofego de cansada ...
É com ele que recomeço, quando penso que já não vale a pena !...

Anamar

quarta-feira, 30 de julho de 2014

" TRANÇAS E LAÇOS "


E depois ela chegou do alto dos seus quarenta anos, e disse :  " Mas tu não tens a noção ?  Perdeste o senso do ridículo, logo tu que sempre receaste isso ... Não vês que tens quase setenta anos ?! "...

Ela, a outra, emudeceu, sucumbiu ao "murro", e ficou fora de combate ...

Afinal, tudo se resumia a ter feito uma trança discreta no cabelo em jeito de bandolete, por sugestão da cabeleireira que teimou em mudar-lhe o visual ... deixá-la mais jovem ...
Mais jovem e bem ...  que visse no espelho, que constatasse como era verdade ... " Olha que bem, p'ra não ser sempre a mesma coisa !..."
Contemporizara, até achara que era verdade. Um ar mais agaiatado, sem o ser, espreitava-lhe das montras e dos vidros das portas, no regresso a casa.

Nunca se atrevia muito à vontade,  a fugir do clássico com que enchia a vida.
Contudo,  sentia-se contente com alguns rasgos temerários, com que às vezes a desafiava .  Como se fosse uma pirraça ou uma partida que lhe pregava, em resposta a tantas outras com que ela a mimoseava.
Parece que um qualquer "lápis azul" no subconsciente, se habituara a mandar e a desmandar, e admirava a independência e a estaleca dos excêntricos.
Achava  que  sem  dúvida era necessária uma "robustez" psíquica,  para passar sorrindo, p'lo meio da multidão ... p'ra desafiar a "carneirada", impor o seu estilo independente.
Exagerava, claro. Mas desta feita, sentia-se furiosa.
"Quase setenta anos" ?  Ela, que não havia muito iniciara a década, não parecia sequer tê-los, e pactuara com  a designação de "sexalescente", quando a brincar camuflava o desgosto do estatuto ?!...

Mazinha ela ... a outra.
Incisiva, cirúrgica, sabendo bem demais onde dava a trancada,  conhecendo à légua a ferida onde escarafunchara ...

E ostentava  a "autoridade" própria de quem sabe do que fala. Ostentava o ar sabedor dos que falam de cátedra.  O jeito provocatório de mestre-escola, que se vê compelido a chamar à palmatória, o aluno "pintas" que deu uma de insubordinado.
Onde é que já se viu, achar que já pode ... que "ainda" pode ???!!!...

Ostentara uma rapidez no gatilho, na avaliação sumária, sem direito a defesa  por parte de quem se "passara", quem perdera o norte, a razoabilidade e o senso de conveniência ...

"Ai, ai ..." - parecia dizer ..."Olha-me esta agora, armada em menina !  Se não ponho cobro nisto, qualquer dia aparece-me de tótós, laços e saia de roda ...   Senil ... a minha mãe só pode estar a ficar senil !..."

Acabou-me com a festa !...
Aquela maldadezinha de fim de dia, pôs-me o rabinho entre as pernas, e fez-me sentir qual rafeiro vira-lata, envergonhado, que não entende por que não pode mijar no pára-choques do carro.
Fez-me sentir uma prevaricadora  entontecida, sem enxergar que a  idade confere acrescidas  obrigações sociais  e  pessoais,  parece ... ao  invés  de  conferir  estatuto,  posto  e  autonomia  (pensava eu, asnaticamente ...).
Idade impede já  (ao contrário do que às vezes eu também achava ), que se possam atrevidamente  enfrentar  descontraídamente as "red lines", que se saltem de ânimo leve, as barreiras ... impede que se tenham veleidades serôdias, tonterias inconsequentes ...
A menos que fiquemos indiferentes a que nos achem "gá-gás" ... é claro !...
E disso, ela, a outra, queria obviamente poupar-me ...

Acho que estava sol, mas apagou-se-me um pouco, no horizonte.
E senti, como se deve sentir a andorinha a que tivessem cortado asas ...
Senti, como se deve sentir a criança que se acha a mais linda da festa, até perceber que talvez não seja bem assim ...

Esvaziei-me.  Como o balão que teve a pretensão de voar, e dez segundos depois, está no chão ...

Acho que ela nunca irá atinar até onde foi...
Talvez...Talvez daqui a vinte e tal anos ela consiga perceber, se ainda puder lembrar ...
Mas sempre vai achar que exorbitei ... tenho a certeza !

Por que é que a gente põe filhos no mundo,  filhos que não conhecemos e que não nos conhecem ???!!!...

Anamar

domingo, 27 de julho de 2014

" NADA A FAZER !!!... "




Não sei se todos serão assim, ou se pelo menos as mulheres serão assim.

Cheguei a uma fase da vida em que se me impõem à frente dos olhos, as limitações inerentes ao avanço dos anos.
Ao longo dos tempos,  sempre fui uma "descontraídona",  uma atrevida e uma desafiadora em relação ao seu percurso.
Achava-me invencível, achava que nada me poderia tirar a robustez. , a agilidade, a invencibilidade... e até a dose saudável de loucura, que achava ser-me devida !...
Como por feitio sempre desafiei os dias e os anos, sempre os provoquei, e sempre fui bem mais saudável comparativamente a muitas colegas e amigas da minha faixa etária, sempre vivi descontraída, sempre ousei isto e aquilo em contra-ciclo com as posturas convencionais, sempre desvalorizei  talvez  demasiado inconscientemente, o espectro dos males possíveis ...

Contudo  o  tempo passa, e de repente há um dia em que às vezes, por nada em especial, parece que acordamos para a realidade, e consciencializamos que talvez,  na verdade,  tenhamos vindo  a  perder capacidades,  desenvoltura,  sagacidade ... E  não  achamos  graça !...
Deixámos de ser escorreitos física e mentalmente, deixámos de ter aquele entusiasmo, de ter aquela disponibilidade de espírito que nos permitia arriscar, achar graça a tantas coisas, avançar p'ra tantas outras, ainda com o desejo de aventura, e com a adrenalina de outros tempos.
Ficámos comodistas, arreigados a uma vida demasiado morna, a disposição para o risco ainda que calculado desapareceu, os medos instalam-se, a noção de fragilidade e vulnerabilidade agiganta-se, a convicção de limitação também, o fantasma do perigo, do susto da incapacidade se instalar, fica premente, e premeia-nos com ansiedades e pânicos, injustificáveis muitas vezes !...

Dou por mim a ter cuidados redobrados, na rua, com as quedas ( parece-me sentença certa, uma fractura de perna, se cair ... Não faço por menos ... )
Dou por mim a verificar desgostosamente, como fica difícil amarinhar a um banco, p'ra acertar o relógio de parede, e a ter medo de subir...Até porque as pernas viraram chumbo ... com os diabos !...
Dou por mim a constatar como a cabeça parece perra, e a linguagem pouco oleada, no falar e no escrever ... eu, que sempre fui desembaraçada para o efeito ... E afianço que começo a ter sinais de Alzheimer incipiente ...
Dou por mim, a ver com desgosto, que objectivamente não vejo ... ou seja, se calhar tenho que me habituar a viver num "aquário" de água turva, porque contornos bem nítidos, olhar acutilante, preciso e límpido ... talvez nunca mais !...
Que ouvir ... bom, se olhar o mexer dos lábios do meu interlocutor, é mais fácil ... Senão ... os sons misturam-se todos, e ao meu tímpano poucos chegam definidos ...
Dou por mim, dei pela primeira vez este ano, na viagem que sozinha fiz recentemente para o estrangeiro, como habitualmente, a apavorar-me na eventualidade de lá poder adoecer, na inventada hipótese de um acidente, de um ferimento ( eu, que sempre achei com alguma inconsciência, é verdade, que não haveria de acontecer logo a mim, e que o isolamento e a distância não eram problema ... Afinal o mundo é logo ali, tudo ao virar da esquina !...
Dou por mim, em última análise, a evitar fazer exames médicos de rotina, porque ... receio o resultado, e mais o que "eles" dêem em inventar !... (rsrsrs)

Bolas !  Isto é velhice ?  É degenerescência mental ?  É estupidez mesmo ???...

Acho que é apenas mais um capítulo da velha guerra sem tréguas, travada entre mim e o avanço dos anos e da vida.
É a inaceitação da inevitabilidade da progressão inelutável do tempo ...
É a  raiva  de estimação contra o ciclo da existência, que me parece sem sentido, sem lógica, sem explicação e sem razão ...
É a  sensação azeda de ser a tal peça de xadrês movida sem regras ( e sem que ninguém mas tenha ensinado, algum dia ) ...
De ser o tal actor largado no palco onde uma peça se desenrola, e a quem ninguém teve sequer a gentileza de  explicar  qual  o  enredo ... menos  ainda  se  queria  participar  da  mesma ...
De ser a marioneta mexida a cordéis, aleatoriamente, ao sabor dos dedos caprichosos de quem tenta dar-lhe vida ...
É a velha sensação, de que alguém prepotentemente  goza, ou perdida ou indiferentemente, com os peõezitos por aqui largados ( nada muito importante, afinal ... ), mera carne para canhão lançada em cenário de guerra ... E que cada um  invente, que se safe o melhor que possa ... que se "amanhe" dentro do contexto ... que descortine como sobreviver !...

E depois há os que sabem fazê-lo, e os que não, os pragmáticos e os que não, os que estrebucham e os que não, os que se importam, e os que se indiferentizam e seguem ... amodorradamente ... anestesiadamente ... apaticamente, sem grandes ondas, turbulências ou convulsões ... navegando à bolina ... acomodados que são !...
E os que não !!!...

É demasiado rocambolesco e de mau gosto tudo isto.
É um "nonsense" sem tamanho, um filme de humor negro de mau gosto, um sketche dos Monty Python em fim de carreira, que não consegue sequer, arrancar-me  já,  uma  só  derradeira gargalhada !!!...

Anamar

domingo, 20 de julho de 2014

" DÁ QUE PENSAR ... "



Já abordei vezes demais o tema das redes sociais, a sua visibilidade, a sua utilização por parte dos cibernautas, e a consequente modelagem social  a que deram origem.

É cada vez mais agressiva, abusiva, invasiva e absurda até, a forma como a generalidade dos utilizadores delas se servem.
Nomeadamente o Facebook, que é praticamente um contrapoder, ou um poder paralelo que ombreia e põe em causa todas as estruturas sociais, profissionais e políticas, nacionais e internacionais, por mais fortes e privadas que devessem ser.
É portanto, verdadeiramente,  uma arma de alcance indeterminado.

Por ele passa de tudo, como se sabe.
Ele é utilizado com todos os fins, sejam inofensivos e mais ou menos louváveis, sejam de devassa e com torpes intencionalidades.

Nele já li diários escritos por pessoas com a vida a prazo, que o utilizaram para partilharem as emoções, e as experiências, indistintamente, quase até ao seu último suspiro.

Nele já se anunciaram actos suicidas, suicídios em directo, atentados, episódios inconfessáveis do ser humano.

Nele já se festejou o milagre da vida, devassando-se e partilhando-se com anónimos, a entrada neste mundo, de seres que não sabem nem sonham !...
E o inverso também.

Depois, todas as especulações sobre tudo, o imaginável e o inimaginável, por lá circulam.
Fazem-se e desfazem-se relações, amizades e romances ...
Queimam-se pessoal, política e socialmente, muitos cidadãos.
Denunciam-se tramas e conspirações.
Forjam-se ídolos, e apeiam-se outros ...
Criam-se correntes de solidariedade humanitária, mais ou menos credíveis, e defendem-se causas, aproveitando-se a velocidade da veiculação da informação entre os povos ...
Defendem-se   verdades   e   princípios,  inventam-se   mentiras  e  calúnias,  delata-se  e  injuria-se ...

E depois, a ironia da vida encarrega-se de criar factos que nos dão que pensar :  Cor Pan, fotografou o avião da Malaysia Airlines que o levaria à morte, horas antes desse desfecho, e publicou-o no Facebook.
Com alguma ironia tétrica, com a displicência, a bonomia e a boa disposição de quem eventualmente inicia uma viagem de recreio ou férias, brincou em ar jocoso, numa clara alusão ao voo da Malaysia Airlines com desfecho enigmático há alguns meses atrás :  "Se também desaparecermos, o avião era este !!!"...

Cor foi uma das quase trezentas vítimas do brutal atentado aéreo, ocorrido com um avião civil, sobre o espaço aéreo fronteiriço Ucrânia-Rússia, abatido por um míssil terra-ar.

Seguramente, ao postar a foto da aeronave e a "boutade" anexa, nunca em verdade terá suposto que seria a última frase que debitaria neste espaço, e que com ela ficaria tristemente conhecido mundialmente,  pelas piores razões na sua vida ... exactamente a sua morte !!!...

As  curvas  e  contracurvas  do  destino  que  dribla  tudo  e  todos,  em  tempo  real,  à  velocidade  do impensável !!!...

Dá que pensar !!!...



Anamar

sexta-feira, 18 de julho de 2014

" MENINO DO BAIRRO NEGRO "



Encerrando as minhas dissertações sobre a recente estada em S.Tomé e Ilhéu das Rolas, e não querendo repetir-me ou enfatizar excessivamente, verdades e sentimentos experimentados, faço aqui uma espécie de resenha e conclusão final, sobre tudo o que lá vivenciei.

Tudo foi visto e experimentado por mim, pelos meus sentidos, coração e alma ...
Como tal, terá a subjectividade inerente e incontornável, obviamente.
Contudo, suponho ter sido justa, isenta, realista, face a uma realidade que muitas vezes mais pareceu ficcionada, pela beleza natural esmagadora, pela dureza e rudeza da vida, pelo mix de sofrimento e alegria de todos os santomenses .

A eles deixo o meu agradecimento, a eles presto a minha homenagem !
Em particular, aos MENINOS de S: TOMÉ, a quem presenteio com este "Menino do Bairro Negro" tão a propósito, e tão sabiamente cantado pelo nosso Zeca Afonso !

Espero que tenham gostado de viajar comigo !


Um recuo no tempo, retorna-me a S. Tomé.

S.Tomé e a sua ilha satélite, o Ilhéu Gago Coutinho, conhecido por Ilhéu das Rolas,  foram mais uma aprendizagem humana, enriquecedora do meu eu.
Como tudo o que é natural, primitivo, não trabalhado pelo Homem, este destino encerra a ingenuidade, a pureza e a autenticidade de um local onde a nossa mão ainda não fez estrago.
Como tal, um local de verdade !

Olhando atrás, se quisesse ressaltar aquilo que efectivamente mais me tocou, teria seguramente grandes dificuldades em fazê-lo.
Contudo, sem grande dúvida, duas coisas, deixaram claramente marcas de ternura no meu coração :
por um lado, a beleza natural pujante e avassaladora por todos os cantos, num excesso louco de cores, de sons e de cheiros ... por outro, a doçura e a espontaneidade das suas crianças, os tais "bandos de pardais à solta" que nos rodeiam, nos envolvem, nos tocam, e nos amam de imediato !...

São meninos sem nada, absolutamente nada ...
Não têm alimentação de qualidade, ou sequer alimentação ( poder-se-á dizer ), não têm medicamentos, não têm brinquedos, não têm roupa, além dos andrajos rotos e sujos que vestem, não têm livros, jogos, objectos escolares, higiene ou sequer possibilidade de a ela aceder.
Têm escassa assistência médica, dependente sobretudo, do voluntariado generoso do pessoal da AMI, Médicos Sem Fronteiras ou Médicos do Mundo.
Vivem numa sociedade em que o salário médio é de sessenta euros !!!...
Não têm nada, mesmo !!!

Têm-se uns aos outros, nas brincadeiras infinitas, na aldeia, na mata, na terra, nas pedras, nos rios, nas praias.

Têm os mais novos para olhar, os bébés para cuidar, para carregar, como os filhos que terão mal cresçam, e já adolescentes iniciem famílias numerosas, com uma dimensão absurda, numa sociedade culturalmente poligâmica e pomíscua, que como tal, tenho o pudor de valorizar, menos ainda julgar.
Existe uma desinformação doída, na população  ( ainda se acredita que a pílula do dia seguinte passa por uma lavagem na água do mar, após as relações sexuais ).

Têm de sobra, uma dádiva carinhosa para quem deles se aproxima ...

Têm uma alegria ímpar e contagiante, e expressões de doçura infinita !

São meninos que gostam do toque, que nos dão as mãos e nos guiam nas caminhadas pelo meio das suas aldeias.
São meninos que querem mais e mais fotografias, e ao verem-se nelas, exprimem uma felicidade ímpar, saltam, riem, batem palmas ...
São meninos que nos mexem no cabelo, com fascínio, e com ele nos fazem tranças ... E sempre nos acham bonitos ... " a amiga é bonita" !...
São meninos que querem os nossos beijos, nos rostinhos sujos e empoeirados e correm ao nosso lado, disputando o melhor lugar junto de nós ... que acabaram de conhecer ...

Deixam-nos assim com uma emoção pesada no coração, pois nos confrontam com a aleatoriedade perfeita da existência , com a efectiva e real dimensão da penalização das assimetrias sociais.
Quase nos culpabilizamos de uma sorte que não pedimos para ter, de um privilégio que nos coube, e nada fizemos por ele, a não ser pertencermos ao outro lado do Mundo ...

E sentimos a magoada impotência pela incapacidade de revirar o destino, impotência face à distribuição de  uma qualquer justiça social que deveria ser equitativa entre todos os cidadãos, indistintamente do continente a que pertencem, do chão em que nasceram, da sociedade em que foram criados ... sobretudo quando se trata de crianças !

S.Tomé e o Ilhéu das Rolas foi também uma dolorosa e séria lição de vida, foi uma história narrada com personagens reais, bem frente aos meus olhos, foi uma aprendizagem e um abanão na acomodação instalada que possuímos, e de que ainda assim, sempre reclamamos ...

Voltarei !
Gostaria de voltar, sim, a olhar os rostinhos sujos, de ranho à boca, dos meninos dos caracóis e trancinhas, de olhos impressionantemente meigos e desarmados, e escutar outra vez aquela palavra-senha, na correria louca, desenfreada atrás do carro que se afasta : " Doce, doce, doce !... "


Esta, a minha sentida homenagem de gratidão a todas as crianças com quem me cruzei, nesta minha digressão por terras de S.Tomé e das Rolas.

OBRIGADA !


ZECA AFONSO

Menino do Bairro Negro


Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz

Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Vira também

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Se até da gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti

Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção

Anamar

quinta-feira, 17 de julho de 2014

" UMA ANÁLISE FRIA E OBJECTIVA "


Os mercados são a mais genuína expressão de um povo, creio.
Por eles desfilam múltiplos perfis humanos, por eles passa  toda uma miscigenação de raças, de rostos, de cores, de vozes e de cheiros. Eles são uma mostra extraordinariamente rica, de um  multiculturalismo evidenciado.
São o pulsar e  o  fervilhar de gente,  são o ritmo cardíaco  que nos desafia  a  um mergulho ao âmago da alma e do coração de um país ...
Eu diria que eles são imbuídos de um espírito ritualista e mágico ...

Em África, em especial, há todo um "colorido" peculiar.
As frutas que sempre são variadas, misturam-se com os legumes, nas bancas, no chão e nas cestas.  Têm cores e formas inenarráveis e curiosas.
Confundem-se com a cor dos panos que envolvem as mulheres da cabeça aos pés, desde os turbantes, aos que à cintura suportam os bébés nas costas.
O peixe, fresco ou seco, de todos os tamanhos, cores e formas, de espécies que desconhecemos muitas vezes, aguarda em baldes, aguarda no chão, ao sol, às moscas, à poeira ...
O "brouhaha" é ensurdecedor. Os decibéis vão muito acima do normal ... e há uma azáfama qualquer, e uma qualquer alegria contagiante, no ar !...
Mas é assim !
Tudo isso é "normal".  A realidade nada tem a ver com a nossa, os ritmos de vida também não !

Com as suas particularidades, há contudo sempre muito de semelhante nos mercados.
Eles são ponto de encontro diário e de estadia em permanência de horas, dos vendedores, que por isso já são uma família, acredito.
As mulheres permanecem acocoradas, sentadas por ali ;  as crianças, quase nascem, e já ocupam posto no mercado.
Dentro de caixas de cartão, à sombra de chapéus de sol que mal protegem do calor abrasador de África, iniciam as suas vidas ... gerações dos que serão os putos livres e soltos que parecem eclodir do nada, em cada esquina das aldeias, em cada canto da mata, em cada beira de estrada ...

E depois há o âmbar da pele  nos corpos expostos, suados mas cheirosos ...
Há o branco luminoso de dentes impressionantemente regulares e saudáveis ...
Há o requebro e o dengue lento, de ancas roliças que passam, lentamente, preguiçosamente, com algum erotismo nas curvas e no olhar ...
Há os rostos lavados e sem artifícios, das crioulas ... e há os sorrisos rasgados, ou as gargalhadas trocadas, entre quem está e quem circula ...

Sempre que visito um país estrangeiro, procuro não falhar o mercado local.
Procuro não falhar, observo, "bebo", tomo o pulso, analiso, aprendo ... registo, se puder e tal me for consentido.
Nunca utilizo a câmara fotográfica com humanos, sem que o requeira, sem que isso me seja previamente autorizado. Sempre respeito o direito à privacidade e à imagem individual.
Foi assim em Bali, em Zanzibar, em Samaná, em Cuba, Costa Rica, Tailândia ... por aí ... em tantos outros sítios desse mundão !...
Foi também assim  em S.Tomé.

As crises sociais e as assimetrias, amargam os povos.
Na maior carência, as pessoas desesperam e perdem os louváveis valores que as norteariam.
As raivas e os ódios recrudescem.  A miséria  sempre é má conselheira, e desencava "machados de guerra".
Ela traz à tona o que de pior o ser humano alberga no coração.  O Homem cega, e assume posturas selváticas inexplicáveis.  Acredito que em qualquer lugar do planeta, e mesmo em qualquer civilização ...

Experimentei, estranha e surpreendentemente, este estado de coisas em S.Tomé.
No meio de um povo que beneficia de uma Natureza generosa, pródiga e espectacular, um povo que tem as crianças mais doces do mundo, um povo cujas raízes afinal cruzam as nossas, as portuguesas, experimentei  tristemente, pela primeira vez na vida, atitudes odiosas de rejeição, racismo e xenofobia .
Só porque aos olhos dessas pessoas, eu era turista, eu teria dinheiro ... e eles, o povo, ostentava bem, a miséria em que sobrevive, o sofrimento em que arrasta as suas vidas !!!...

Obviamente  não  faço  juízos  de  valor.  Obviamente  relativizo,  porque  obviamente  até  entendo !...
Apenas lamento.  Não por mim, mas pelos santomenses  mesmo, já que este país, sem recursos, pobre e largado ao seu destino ( estamos em África, é bom não esquecer ... ) apenas terá como futuro, a meu ver, a aposta  no café e no cacau, em exportação devidamente dinamizada e implementada, em grande escala ( o que ainda não acontece ), e evidentemente, o turismo, fonte promissora de receitas, graças a  todo o potencial natural de que dispõe.

Mas claro que não a qualquer preço ... E é pena !...

Anamar

quarta-feira, 16 de julho de 2014

" O PREÇO DA INSULARIDADE - aquele embarcadouro ... "



Estamos na  " gravana " ou estação seca, aqui em S. Tomé.

Nunca pensei que no Equador pudesse haver frio, e dias infindáveis sem que o sol rompa a abóbada cinza carregada, aqui por cima das cabeças.  Um capacete denso, de nuvens persistentes e espessas consegue pintar de tons pardos e escurecidos, o multicolorido desta ilha, que para mim era o paradigma eterno  da luminosidade, da cor, do brilho e da alegria.
Criei essa fantasia baseada em informação deficiente, seguramente, ou simplesmente porque ainda que melhor documentada estivesse, creio que nunca acreditaria que pudesse ser diferente.
Mas o facto é que já aqui estou há quatro dias, e ainda não vi o sol, a temperatura ambiente é desconfortável ( até porque vim desprevenida para termómetros mais baixos ),  há algum vento, e banho de mar, também é mentira, já que as correntes e as marés são muito fortes e perigosas.

As cores deste maravilhoso ilhéu estão obviamente prejudicadas, não obstante a beleza esmagadora oferecida por uma Natureza excessiva, rica, luxuriante e esfuziante também ...
Assim, parece que perambulo num cenário fora de contexto, ou que contemplo um postal ilustrado a preto e branco.
O dia tomba repentinamente cedo.  Pelas seis da tarde é mais que lusco-fusco, e se quando amanhece o rosto do dia se anunciasse mais magnânimo e promissor, com sol a raiar, céu azul e temperatura morna, apeteceria sair da cama, vir para o exterior, absorver os cheiros, os sons, extasiar-me, deixar-me simplesmente envolver.
Assim, durmo até mais tarde, e experimento uma sensação de desperdício de  tempo.

Mas é assim !
A época seca caracteriza-se climatericamente desta forma, e não há nada a fazer ... A não ser, claro, regressar na época das chuvas, do sol forte e do calor impiedoso ... ( rsrsrs )

A lancha que liga o ilhéu a S. Tomé, vai e vem  três ou quatro vezes por dia.  Carrega quem trabalha do lado oposto àquele em que vive, e os turistas que chegam e que partem.
A insularidade tem o seu preço, de facto !

No pequeno cais de encosto da embarcação, juntam-se os autóctones :  as mulheres em desocupação de fim de tarde, a criançada no terreiro da Igreja, paredes meias com o embarcadouro, indiferente, nas brincadeiras sem fim, os rapazes da ilha lançando conversa fora e graçolas de circunstância, actualizam notícias da Ilha do Chocolate.
Aqui, é local de encontro e de lazer.  As notícias vão e vêm, as boas e más novidades também.
Eu diria que é o ponto mais importante do ilhéu.  É uma janela que se abre ao mundo, ao mundo que está do lado de lá, nem que o lado de lá seja  tão simplesmente a ilha-mãe, S. Tomé !
É a única ponte que têm.
Por ela seguem os doentes em busca de auxílio na capital, seguem as crianças para a escola, sonhando com outros futuros ... seguem os mortos, a caminho de S. João dos Angolares ...
É  o local de despedidas e de chegadas, com todas as tristezas, incertezas e angústias, mas também todas as esperanças, ilusões e quiçá alegrias, dos que partem e dos que chegam.
Ali se despedem os que vão, em busca de trabalho, de sorte e de melhor destino, seja em Portugal, em Angola ou Cabo Verde ...
Para trás ficam os idosos, os familiares chegados, os amigos e os filhos, que dirão um adeus interminável, enquanto a  "João de Santarém" se afasta mar adiante, e até que a distância a reduz a um pontinho lá longe, perdido no meio do oceano, em direcção à Ponta da Baleia.
A dor e as lágrimas, a nostalgia e a saudade  ficarão afogadas na indiferença salgada das ondas, até ao dia em que de novo a embarcação se corporizará, quando as águas devolverem a casa, aqueles que haviam partido ...

Nas Rolas, contudo, tudo terá permanecido exactamente igual, como se o tempo tivesse adormecido, amodorrado na sombra do caroceiro  gigantesco do terreiro poeirento, paredes meias com a aldeia, paredes meias com a Igreja, paredes meias com o mar e o cais de embarque ... sempre com o chilreio da criançada descalça, suja e rota, em correrias, nos jogos de futebol, ou nas corridas dos carrinhos improvisados !!!...

Este, o preço da insularidade !!!...

Anamar

terça-feira, 15 de julho de 2014

" LEVE - LEVE ... "



Não sei se é leve esta vida ...

Esta gente não tem água em casa, não tem luz nem todos os outros bens que julgamos indispensáveis.
A roupa lava-se no tanque da aldeia, estende-se no chão, nos muros, nas pedras e sobre as plantas.
A água traz-se em latas ou contentores, aos ombros, desde cisterna ou poço.
Quer-se comer, planta-se a terra, faz-se a horta.  As frutas, são as árvores fruteiras da mata que dão. E são infinitas !
Derrubam-se os "caroços" do caroceiro, abrem-se com uma pedra, no chão, e de dentro, come-se o pinhão.
A fruta-pão, a papaia, a jaca, a carambola, a  castanha, a  cajamanga, o  sape sape, o maracujá, a  banana  ( sete variedades diferentes, na ilha ), a goiaba, a manga, o cacau ou o café ... espreitam a cada canto.
Os cocos aliviam a sede.  Caídos aos milhares por todo o lado, abrem-se de qualquer jeito.  Ou com uma catana certeira de gente experiente, o que ainda assim arrepia o coração de quem vê e nunca fez, ou simplesmente sob o impacto de um pedregulho valente.
Depois, é só beber ... A água é sempre fresca !

Lança-se a canoa ao mar, e traz-se peixe, ou mergulha-se e busca-se nas profundidades pródigas.
Põe-se a arma ao ombro e caçam-se rolas, ou morcegos.
Os animais andam soltos pela aldeia e pela floresta.
Por ali, cabras e cabritinhos, porcas e leitões, galinhas, patos, cães e gatos, deambulam e chafurdam por entre os humanos ... por conta própria e entregues ao destino !

Nos céus, os morcegos avistam-se. Vêm, ao cair do dia, de S. Tomé, dormir às Rolas, numa migração diária em busca de fruta madura. São frugívoros.
Andorinhas rasam as águas, mas são os falcões que imperam nos céus de S. Tomé.

O café colhe-se, torra-se e mói-se.  O cacau, também.
Toda a qualidade de plantas desta floresta luxuriante, se usa na alimentação, na higiene, e na cura ou prevenção de maleitas.
A erva-mosquito usa-se no "calulu" ( prato típico confeccionado com legumes, óleo de palma, peixe seco, ou mesmo  frango ), ou ainda no molho de fogo.
A mandioca, o coentro selvagem ( de sabor idêntico ao que conhecemos, numa planta com aspecto totalmente diferente ), o chuchu, o inhame, a pimenta, a cana de açúcar e tantas outras espécies vegetais, enriquecem o prato santomense.
O vinho de palma, colhido em bica instalada na própria palmeira, pelo colector nativo que escala o tronco em segundos ... trepa... por nós, se o provarmos ...
O micócó utiliza-se em omeletes, em sopa, estimula o apetite, purifica o organismo e potencia o desempenho sexual masculino, quando em chá.
A casca do mucumbli é usada num chá de efeitos gastro-intestinais, ou mesmo como analgésico.  Por isso, também se usa como banho aliviante das dores.
As folhas da goiaba e do abacate têm também o mesmo mérito.
Já as folhas frescas da salaconta, servem para confecção de chá, ou mesmo como bem-estar para as mulheres durante o período menstrual.
Das flores de ylang-ylang, a árvore do perfume, fazem-se essências de cheiro idêntico ao jasmim  misturado com amêndoas, ou simplesmente preparam-se  banhos agradáveis e cheirosos.
O Goji Berry, folhas de sabor ácido e toque áspero, mascadas ou esfregadas nos dentes, tornam-nos brancos.

Estes, alguns exemplos desta parafarmácia natural, à disposição, em que as medicinas alternativas têm passado de geração em geração, são prescritas pelos curandeiros, e constituem rico património cultural, mantido incólume desde tempos ancestrais.
Trata-se de um invejável repositório de saberes, transversal aos tempos.

A floresta de S.Tomé, equatorial, cerrada e quase impenetrável, possui as mais diversificadas espécies de madeiras.
As árvores, de corpulência esmagadora, dão sombra e dão a matéria-prima para a construção das embarcações.
Sobretudo as "okas", árvore que pode atingir 30 metros de altura, e com um diâmetro de tronco impressionante, associada a espíritos maléficos  da época da escravatura.  O seu abate carece de autorização governamental.
Das madeiras da floresta, num trabalho de maestria e criatividade, sai também o artesanato local.
É o caso da árvore-cinderela, que por ser bastante macia, permite a escultura de tudo o que possa imaginar-se.

As crianças da aldeia fazem a primária aqui nas Rolas.  Existe uma escolinha na aldeia de S. Francisco, que alberga a cerca de dúzia e meia  de crianças do ilhéu.
Estudam matemática, língua portuguesa e meio físico e social.  Só mais tarde, quando acedem às classes posteriores, estudam os seus dialectos ( crioulo fôrro de S.Tomé, lunguiê  do  Príncipe, e  angene -  dialecto da  zona  dos  angolares, também  na  ilha  de  S.Tomé ).
Por isso, diariamente se levantam às cinco horas da manhã, e com mar manso ou "grande", rumam, na lancha, até à capital.
Só regressam perto das cinco horas da tarde, na última viagem que faz a travessia diária para o ilhéu.

" Leve-leve" ... Tudo para eles é "leve-leve" ...
Com  ar  tímido, doce  e  sorridente,  garantem-no ao  visitante  incrédulo ... Repetem-no, em jeito de verdade !...

Não fiquei nada convencida !
Acho sim, que o coração dos santomenses é que é "leve-leve", na forma adocicada, generosa, afável e amiga, com que quase globalmente, nos acolhem indistintamente, e na grandiosidade dos sentimentos de alma, que partilham desinteressadamente.
Tão magnânimos, espontâneos e puros, quanto a simplicidade da sua terra, das suas vidas e da sua raça !...

Anamar


segunda-feira, 14 de julho de 2014

" UMA JANELA DE PRIVILÉGIO "




Um pé em cada lado da Terra, um olho espreitando cada nicho de céu estrelado, os braços abertos para que envolvam  o Mundo ... eis o centro do planeta ... eis o planisfério desenhado aos nossos pés ... e o privilégio de se ter uma "janela" na latitude zero, onde a estrela polar e o cruzeiro do sul  namoram, em noite de céu limpo !...

O Equador a fazer-nos sentir míticos, quase religiosamente especiais, num silêncio que se nos impõe.
Silêncio de lugares solenes, como se não pudéssemos perturbar a magia que impera.
Aqui, até a floresta se cala, e o vento só sussurra ... não se atreve mais !...

Naquele mapa-mundo, Portugal bem pequenino na escala universal, ali está, numa cor destacada.
E o marco, o marco como preito de homenagem dos ilhéus a Gago Coutinho, lembra que foi ele que entre 1915 e 1918 ali pousou, numa missão geodésica, e confirmou, pelos estudos efectuados, que a linha zero de latitude, passava mesmo por ali, nas Rolas !

Essa linha imaginária parece sugerir-nos, que quem pisar aquele chão não mais ficará igual, porque ao alcance de um passo, estão-nos as duas metades da laranja, para onde a nossa varanda de privilégio assoma.

Os hemisférios beijam-se lúcubres, em luxúria tão natural e despudorada, quanto aquela com que a floresta beija o mar, descendo ravina abaixo, até às águas azul-turquesa, ou verde-esmeralda.
Os coqueiros e as palmeiras fazem equilíbrios de génio,  pelas rochas negras das encostas vulcânicas, sempre em vénia marítima.
E quando desistem, é no mar que os gigantes repousam e se aquietam, é nele que tombam os corpos, é a ele que se entregam, feito canoas errantes no sabor das marés ...

É assim S. Tomé, onde o sol, mesmo quando só promete  e a gravana nos deixa sequiosos, está lá, por detrás do dossel das nuvens espessas e uniformes ... S. Tomé,  onde a luz envolve, onde a brisa é mansa, e os cheiros são doces ... tão doces quanto a doçura incomensurável das suas gentes !!!...



Anamar

domingo, 13 de julho de 2014

" TEM DOCE, TIA ?... "




De repente fiquei "tia" de uma dúzia de meninos : os meninos de S. Tomé.

No Ilhéu das Rolas, as crianças brincam livres e soltas, descalças, rotas e sujas, pelo meio das pedras, nos troncos das árvores, no terreiro da Igreja.
Narizes ranhosos, desenhos nos rostos de lágrimas misturadas com pó, joelhos esfolados de pedra traiçoeira.
Ali mesmo ao lado está o mar, e estão os turistas que chegam na lancha, duas ou três vezes por semana.  A maioria, portugueses, os que eles mais gostam porque falam a sua língua, ainda têm os seus genes.

Os rapazes fazem bolas improvisadas com plantas fibrosas, que ganham consistência de futebol.  As meninas com o cabelo a tecer trancinhas, contas de cores coloridas entremeadas, e colares nos pescoços morenos, riem, riem sempre.
Rodeiam-me como um bando de pardalitos indisciplinados, e deliram com as fotografias.

" Tira outra, tia " ...
Sozinhas, de corpo inteiro, em pose estudada, num sonho imaginado de artista.
Uma, e outra, e mais outra ... porque nesta, o irmão pequenino também se pôs à frente, ou a amiga se fez à pose, sem autorização ...

"Como te chamas, tia ? " - pergunta cada uma que chega, uma, duas, dez vezes ...
"Tem doce, tia ? " - uma, duas, dez vezes - em sorriso descarado !

Em S. Tomé, os meninos pedem cadernos e lápis. É já a escola que os apoquenta.
Ou livros, para lazeres que não preenchem, porque não têm com quê, além da rua, da terra que é de todos, do mar e da praia, dos brinquedos que inventam, das frutas da floresta generosa, do terreiro poeirento da Igreja, e das árvores para treparem ...

Ah ... claro ... e da alegria esfuziante das brincadeiras livres e soltas ...

Os meninos das Rolas não sabem nem sonham, como são afortunados !!!...




Anamar

sábado, 28 de junho de 2014

" JÁ VENHO ... "



Estou de partida ... Parece que  finalmente estou de partida !

Sempre,  antes de qualquer viagem, bate uma ansiedade estranha.
É um misto de curiosidade pelo desconhecido que me espera, é um receio de que algo inesperado possa surgir lá e também cá, com tudo o que fica ...
E é também uma nostalgia, apesar do cansaço instalado, de tudo o que deixo ... pessoas, bichos, coisas ...
Porque afinal tudo isso, bom ou mau, é a minha realidade diária, é o aparentemente certo na minha vida, é a minha rotina.

O Homem é um animal de hábitos, e tendo embora um lado bem aventureiro de viajante, dentro de mim, uma ânsia da novidade, uma necessidade saudável de quebrar rotinas, que afinal penso ser inerente a quase todos ou todos os seres humanos, sempre se me aperta um nó no peito, na hora de fechar a porta de casa e olhar p'la última vez os meus gatos, que sem a noção do tempo ( espero ), continuarão a aguardar que eu volte da rua ... na hora de desligar o telemóvel, porque o avião já aquece os reactores ... no momento em que passo a ser eu, só eu, eu comigo mesma apenas, frente a todas as emoções, dúvidas, decisões, escolhas, com os olhos bem abertos, os ouvidos bem despertos, o coração bem disponível, vazio de tudo o que seja negativo e angustiante, se possível ...

E pronto !

O mais que eu vir, que eu viver, que eu experienciar, como uma infantil aprendiz de vida, totalmente desarmada, e vazia de pré-concepções e juízos, de alma lavada, coração receptivo e sequioso, e uma cabeça povoada de sonhos e fantasias ... contarei na volta, com o entusiasmo de todas as histórias plenas de ingenuidade, bonomia e pureza, sempre bebidas  em  deslumbramento, pelos  marinheiros  de primeira viagem !!!...

Por cá, fiquem em paz, com tudo de bom nas vossas vidas ... e, ATÉ  BREVE !!!...
Porque eu ... JÁ  VENHO !!!

Anamar

domingo, 22 de junho de 2014

" BREVE PARTIREI ..."



Cheirava a chuva, na mata, hoje ... Cheirava sobretudo a terra molhada, enquanto o ar desanuviado de poeiras estava leve, puro, fresco !
Tinha havido uma renovação, porque a água que tombou copiosa dos céus, neste segundo dia de Verão, fizera uma faxina por lá.

Passei e não encontrei vivalma, não obstante ser domingo, não obstante não ser fim de semana de praia ... Restaram-me os pássaros volteadores, os insectos batendo asas de queratina por entre o restolho ressequido aqui e ali, ou as borboletas em bailados diáfanos de elfos, na busca de pólens à discrição ...
Talvez as pessoas tivessem receado que as chuvas a destempo, mais que as orvalhassem ... as encharcassem mesmo.

Lembrei as abençoadas chuvas tropicais, lembrei o que são as borrascas em terra de calor a sério, e de chuva a sério também!
Já tomei grandes aguaceiros, estrondosamente fortes, curtos, saborosos.  Já apanhei com grandes trovoadas bem por cima da cabeça, enquanto me sentia privilegiada, e me deleitava por poder atravessar a tempestade ribombante, dentro daqueles mares cálidos de águas dormentes e preguiçosas, enquanto as luzes rasgavam o firmamento, desenhando lasers nunca igualados.

Estranhamente também aí, as pessoas fogem, correm a abrigar-se não sei do quê, nem para quê ...
Do que afinal, sendo uma bênção da Natureza, apenas nos relembra o gosto que é, estarmos vivos !
E nas águas, que por reflectirem o céu  se tornam plúmbeas, me envolvi como em manto doce, me aninhei como em alcova de amante ... e absorvi até à alma, longamente, o cheiro salgado do mar ... o cheiro adocicado da terra úbere!...

Breve partirei ...
Breve procurarei as terras magnânimas ... uma vez mais.  Vou encontrar o centro da Terra, vou procurar aquela estrada invisível que corta oceanos, atravessa continentes, e fala uma única língua, a única que liga os mundos ... todos os mundos ... a universal !
Breve verei a multitude das cores da paleta do Mestre, breve me extasiarei com os verdes, os azuis, os ocres, os castanhos, os dourados e os prateados das orlas de vai-vem ...
Breve vou absorver todos os cheiros que não se descrevem, todos os sons e os silêncios, todos os cânticos e todas as vozes ...
E verei rostos que não conheço, mas que de repente ficam meus ... Olharei outros tantos sorrisos ladinos, de outras tantas crianças  como todas ... porque as crianças são todas iguais, e os seus sorrisos desarmados, são sempre de querubins !...
E verei os sóis a acordarem e a deitarem-se, entre os laranjas, os fúchsias e o recorte  negro das palmeiras esguias e dos coqueiros despenteados ... E a  lua, que em quartos ou  plena, torna o mar numa poalha de prata ...
As estrelas povoar-me-ão os sonos, porque ponteiam os céus escurecidos ... e os sentires, todos,  montam vigília e sentinela, para que nenhuma emoção se perca por lá, e para que a verdade e a autenticidade das terras do café, do cacau, dos escravos e das senzalas,  que ecoam pelas encostas e perpassam pela mata, me devassem, me penetrem e me preencham ... em plenitude !...

Puro hedonismo, no sonho, no desejo, na alma de viajante que transporto em mim ... porque "só existe um êxito : a capacidade de levar a vida que se quer" - Morley, Cristopher


QUEM SOMOS

O mar chama por nós, somos ilhéus
Trazemos nas mãos sal e espuma
cantamos nas canoas
dançamos na bruma

Somos pescadores-marinheiros

de marés vivas onde se escondem
a nossa alma ignota
o nosso povo ilhéu

A nossa ilha balouça ao sabor das vagas

e traz a espraiar-se no areal da História
a voz do gandu
na nossa memória ...

Somos a mestiçagem de um deus que quis mostrar

ao universo a nossa cor tisnada
resistimos à voragem do tempo
aos apelos do nada

Continuaremos a plantar café cacau

e a comer por gosto fruta-pão
filhos do sol e do mato
arrancados à dor da escravidão


OLINDA BEJA  ( poetisa natural de S.TOMÉ E PRÍNCIPE )


Anamar