terça-feira, 6 de novembro de 2012

" O JONAS "



Ontem, 4 de Novembro, o JONAS entrou, no que virá a ser, espero, o seu lar de adopção para sempre ...

O JONAS é mais uma história de vida ( curta ainda ), de resistência e de luta pela sobrevivência.
Mais um animal abandonado à sua sorte, jogado na rua, terá apenas três meses de idade ( estimados, obviamente ).
Tem um ar doce e meigo, tem os medos de quem sabe o que é a luta para se manter vivo, perante as adversidades, sabe o que é o abandono ... e a acrescer a essa desdita, já sabe também, até onde pode ir a maldade humana, infligida a vinte centímetros de gato, digamos ...

Apareceu em Oeiras, perto da casa de alguém que o soube olhar, alguém que, felizmente, sabe o que é amar um animal, e que desenvolveu ( não podendo acolhê-lo), todos os esforços possíveis e impossíveis para lhe procurar um futuro.

Por  ele  ( a quem a maldade do Homem, já retirava a água e a comida, que o Bruno diariamente lhe deixava ), cresceu, em boa hora, uma onda de solidariedade humana, através do Facebook, uma rede social, a que de facto, terei que fazer justiça, e render homenagem, e que tem um poder de mobilização, que eu própria subestimara.
Que estas redes sirvam para algo positivo, algumas vezes pelo menos, e já serão redimidas !...

O JONAS chegou-me portanto via Internet, por onde chega muita coisa, para o bem e para o mal.
Chegou-me com o apelo do seu protector, e com as fotos que aqui deixo.

Ora bem ... há mais de três anos, tive que "adormecer" o Óscar, também ele meu companheiro de "fatias"  de vida ;  ele, que  igualmente  entrou em minha casa  ( da desdita do abandono ), no Novembro de 1994.
Sobre o  "Sr. Óscar", gato inteiro com um perfil muito particular, já aqui falei sobejamente, neste meu espaço, e na minha memória e coração, ocupa lugar de honra até hoje.
Era um "Bosque Norueguês", branco e beje, e quando me chegou, também era um espécime de quinze centímetros, num cestinho com laço de fita e tudo ...
Olhinhos azuis do leite, traquina e reguila, imparável como são todos os gatos bébés.
Na família que então ainda existia, adoptou-me como dona, por que o gato sempre escolhe o dono, e não o contrário.

Desta feita, eu que equacionara fechar a porta a animais, quando a geração "Rita" terminasse, olhei as fotos ... li o apelo ... mas sobretudo, não deixei de olhar as fotos ...
E juro-vos, que para lá da cor da pelagem ser a mesma da do Óscar, os olhinhos, que me encaravam do computador, desde o primeiro instante, eram iguais aos que ele trazia quando então veio para o meu cólo ...
O mesmo olhar penitente, suplicante, mas doce, irrequieto, reguila também, altivo também ... Olhar de felino, naquela "coisa" em miniatura ...

E a sensação, de que se calhar nada acontece por acaso nas vidas, começou a ocupar-me a mente.
Eu desviava os olhos do monitor, eu passava adiante, mas vinha atrás vezes sucessivas !

Hoje, o JONAS entrou na minha vida, pela porta da minha casa ...
Qual de nós dois partirá primeiro ?... É especulação ... é futurologia pura !

Esta noite já tentou dormir aos meus pés, e "sopra" da forma mais convincente e provocadora que pode, na disputa  do  espaço  que  considera  já  seu,  de  direito - com  a  Rita -  residente  há 13 ou 14 anos !
Não mia ainda ... "Chia", como fazem os bébés de três meses.
Defende-se com as unhas e com a força de que dispõe ...  Já me mostrou o poder dos dentes mínimos que tem na boca, ao ministrar-lhe a medicação pelas cinco da manhã !

Enfim ... baptizei-o de JONAS !

JONAS  é o profeta referido nos livros bíblicos,  cuja  história é  narrada  na fábula "Jonas e a baleia".
Jonas supunha que enganaria Deus, desobedecendo e falseando as ordens dadas pelo Senhor.
Mas Este, castigou-o, e Jonas foi engolido por uma baleia, dentro da qual teve três dias de consciencialização do erro, arrependimento e contrição.
Deus deu-lhe uma segunda oportunidade.
Passados os três dias, Jonas, o "resistente", foi cuspido das entranhas do "grande peixe" ... e sobreviveu, agora já redimido ...

O meu JONAS não prevaricou, penso ... É simplesmente um gatinho que o destino quis abandonar à má sorte ...
Mas o mesmo destino, fez também dele um "resistente", e concedeu-lhe uma outra chance na vida !

JONAS hoje tem um lar, tem o conforto, tem o amor e a dedicação de quem, sem saber, estava à sua espera, desde sempre ... Eu !...
Não tinha por que ser penalizado afinal !!!...

Assim acontecesse, com todos os JONAS deste Mundo !!!...

Anamar

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

" O MANUEL E A MARIA "


Ando numa maré de divulgar por aqui, textos merecedores de serem lidos, dada a sua mensagem, a sua qualidade, aquilo que eles próprios transmitem e com que nos fazem pensar, reflectir, interrogar.

É o caso do que constitui o meu post de hoje, cujo autor é um filólogo açoreano, Luís Fagundes Duarte, da minha geração, que fala de coisas muito reais, que conheço, conheceremos todos os que viveram esses tempos.

Tempos de dificuldades, de não abastança, nem facilidades.
Mas tempo, por isso mesmo, de valorização das coisas, de calibragem das pessoas, e de formatação dessas mesmas pessoas, para destinos válidos ;
porque -  por difíceis -  por eles se lutava, e a eles se aprendia a dar a justa importância.

Era o tempo em que se estruturavam perfis sólidos, mentes dignas, sérias, com preocupações válidas, de formações consistentes, de enriquecimento enquanto homens, com responsabilidades pessoais, sociais, familiares, interventoras por tudo isso, no futuro da Humanidade.

Emocionou-me a simplicidade e a ternura da escrita, o rigor do exposto, a riqueza do conteúdo...

E porque sei, que era felizmente assim, com alguma frequência, aqui o deixo à vossa consideração.
Certamente o saberão apreciar devidamente !...

 


" Não sei se os meus Pais, se fossem vivos, se sentiriam orgulhosos ou não com o meu percurso de vida. Mas a verdade é que, sempre que faço alguma coisa de jeito e obtenho com ela algum êxito, penso neles e em como gostaria que eles estivessem presentes; e quando faço asneira e as coisas dão para o torto, imagino as caras de tristeza e desengano deles, e apetece-me pedir-lhes perdão. Porque, ao contrário de mim, eles fizeram tudo o que podiam.

Eu sou da geração que nasceu na idade da pedra e chegou à fase adulta na idade da informática. Aprendi a ler e a escrever como as crianças da antiga Roma: num pequeno quadro de ardósia, onde se escrevia com um estilete de pedra. Hoje, escrevo esta crónica ao computador, e mesmo quando faço um texto científico não preciso de me levantar da cadeira para ter acesso a toda a informação de que necessito. O meu primeiro ano de escola foi numa casa velha, sem instalações sanitárias nem água para lavar as mãos, e hoje as nossas escolas são verdadeiros primores de conforto e higiene. Havia crianças que levavam para comer na escola uma fatia de pão-de-milho barrada com gordura de porco, e hoje os seus netos têm refeições quentes e dieteticamente equilibradas.

A II Guerra Mundial acabara há poucos anos quando eu nasci, e as memórias que os meus Pais me transmitiam em criança eram de racionamentos, de trabalho duro, de falta de dinheiro e de bens de consumo. Comprava-se o peixe à porta de casa, que se podia pagar com ovos ou com feijão; comprava-se manteiga às metades ou aos quartos de uma barra (nos tempos em que a manteiga Milhafre ainda tinha o seu pássaro identitário e era vendida em pequenas barras embrulhadas em papel vegetal); o café era de cevada; o açúcar era comprado a retalho ao quilo ou mesmo ao meio-quilo; matava-se um porco por ano, e a carne e a gordura tinham que dar para o ano inteiro; ia-se à cidade de camionete, quando o rei fazia anos, para ir ao médico, levantar uma saca de encomendas com roupas velhas mandadas da América, pagar a contribuição, comprar uma roupa ou uns sapatos para o dia da Festa, e pouco mais.

Porém, em casa dos meus Pais, havia livros: o meu Pai mais de história e geografia, a minha Mãe mais de ficção. Enquanto eu e os meus irmãos fazíamos os trabalhos da escola, o meu Pai escrevia música à luz de petróleo, e a minha Mãe fazia bordados de matiz – e ajudava-nos nas contas, nos ditados e nas leituras. Antes de adormecer, a minha Mãe contava histórias que ouvira da Avó Nazaré, e cantava peças do Romanceiro Antigo que mais tarde identifiquei no Romanceiro de Almeida Garrett. Quando se zangava, o meu Pai falava alto e gesticulava muito, e depois dava-nos beijos e abraços de uma ternura sem fim; a minha Mãe, mais comedida, ajeitava-nos a roupa e os cabelos, e com os seus olhos da cor do céu e do mar dizia-nos coisas que as palavras não alcançavam. Um e outro fizeram mil vezes mais do que podiam para que os filhos andassem calçados (quando a regra, nas freguesias, era os rapazes andarem descalços), vestissem roupas confortáveis, tivessem brinquedos pelo Natal, fossem bons alunos na escola – e continuassem a estudar depois de feita a quarta classe da escola primária. E quando as pessoas censuravam os meus Pais por quererem dar estudo aos filhos, dizendo que tínhamos bom corpo para trabalhar (isto pelos 10-11 anos…) e que eles ainda teriam que começar a vender terra ou a fazer dívida, o meu Pai comprava um alqueire, ou um meio alqueire, ou mesmo uma quarta de terra – para provar que mesmo com os filhos a estudar era possível sobreviver. E à noite, depois da ceia, quando ficávamos a conversar à luz do petróleo, dizia-nos com os seus olhos doces: “A melhor herança que vos podemos deixar é o estudo!”.

O meu Pai chama-se Manuel, a minha Mãe chamava-se Maria.


Luiz Fagundes Duarte

(No diDOMINGO, de Angra do Heroísmo)



NOTA INFORMATIVA : 

Luiz Fagundes Duarte (Serreta, 6 de outubro de 1954) é Licenciado em Filologia Românica (1981) e Mestre em Linguística Portuguesa Histórica (1986), pela Universidade de Lisboa, e Doutor em Linguística Portuguesa (1990) pela Universidade Nova de Lisboa, de que é Professor.
Como filólogo, a sua produção científica originou a publicação de ensaios, edições críticas e artigos científicos em revistas de especialidade, que têm como objecto questões de teoria e prática da filologia e assuntos relacionados com a edição crítica das obras de importantes escritores portugueses de várias épocas, designadamente Antero de Quental, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa e Vitorino Nemésio. Foi membro da Direcção da Associação Portuguesa de Escritores, e fez crítica literária em jornais e revistas nacionais, como o JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, e a revista Colóquio/Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian. Escreve regularmente nos jornais Diário Insular, de Angra do Heroísmo, e Açoriano Oriental, de Ponta Delgada.
Da sua actividade política destaca-se o exercício do cargo de Director Regional da Cultura no Governo Regional dos Açores (1996-1999), e de Deputado à Assembleia da República, eleito pelos Açores nas listas do Partido Socialista (1999-2002; 2002-2005; 2005-2009), integrando as Comissões de Educação e Ciência, de que é coordenador pelo Partido Socialista, de Negócios Estrangeiros, de Defesa Nacional, e o Grupo de Trabalho das Actividades Culturais da Assembleia da República, de que é presidente. É ainda membro do Conselho Nacional de Educação, da Comissão Científica do Plano Nacional de Leitura, e da Comissão de Ciência e Tecnologia da Assembleia Parlamentar da NATO.

Anamar

domingo, 4 de novembro de 2012

" A CABRA - CEGA "


Como se chama alguém que erra, sabendo que erra, alguém que faz exercícios de mentalização para não errar, não conseguindo evitar o erro sistemático ??

Alguém que racionaliza, abre caminhos, conhece estradas,  não falha itinerários, mas ao chegar aos locais, se baralha todo, troca as mãos pelos pés, parece enganar-se deliberadamente,  não ouve,  não vê,  pára  de sentir,  recusa pensar,  e às cegas,  numa  noite  escura, com  os faróis do carro fundidos, ainda assim, teima em seguir a cem, pela autoestrada ???

Como se chama alguém adulto, consciente, totalmente imputável dos seus actos, teoricamente com capacidade mental e intelectual, que joga à "cabra-cega" ???...

A "cabra-cega" é aquele jogo de meninos, em que, com os olhos vendados, nos volteavam sobre nós próprios várias vezes, e em que depois, entontecidos, tentávamos apanhar os amiguinhos, que em roda de diabinhos à solta, riam, gargalhavam, nos tocavam e fugiam, nos puxavam, nos aliciavam ... e que raramente apanhávamos ... numa espécie de orgia de crianças endiabradas ... numa espécie de jogo sádico de gato e rato ( já então ) ??!!...

Esse alguém chama-se "burro", destituído, estúpido, teimoso, tonta e imbecilmente determinado ( e determinação cega é estupidez pura, creio ... )... Ou simplesmente coitado, fraco, masoquista, ou mesmo suicida ??!!

Esse  alguém  é aquele  que "marra" numa direcção, e  que  ninguém demove, por  mais tácticas  dissuasoras  ( de bom-senso, de compreensão e ajuda, de apelo à razão ) ... que sejam postas em prática !!

Esse alguém, é aquele de quem vulgarmente dizemos : " Enxertou em corno de cabra", e aí vai !!!...

Como a cabra montês, que do nosso ponto de vista, arrisca inconscientemente a vida, minuto a minuto, nas encostas escarpadas, incompreensivelmente acessíveis ... assim esse alguém, arrisca a sua vida emocional, o seu equilíbrio, a sua paz, a sua estabilidade, enquanto gente ...

Assim esse alguém se expõe permanentemente, se deixa fragilizar mais e mais, assim esse alguém ( tendo embora consciência, que pode cair a cada instante ... que está a cair a cada instante ), como a cabra montanheira, procura teimosamente, picos cada vez mais altos e arriscados, que parecem inebriá-lo ... e o atraem ...

Assim esse alguém, joga  recorrentemente à "cabra-cega", porque a tonteira que experimenta e que o deixa agoniado, enjoado, titubeante no andar ... o alicia, o embriaga gostosamente ...

Assim esse alguém, como a mariposa,  roda, e gira, e volteia, e dança, numa dança demoníaca e mortal, na luz que se acende na noite, e a matará passados instantes ...

Esse alguém, que teima sistematicamente em ignorar a razão  ( que  teima conscientemente negar ), que recusa  o óbvio, o lógico, o prudente, e que se embebeda com uma irrazoabilidade que sabe ser destrutiva ... que parece deliciar-se banhando-se em águas tenebrosas, arriscando a "vida" ... que vê o que todos vêem, mas que não quer pura e simplesmente ver ( e por isso põe "pálas" nos olhos, ou cobre-os com uma venda totalmente opacizada ) ... alguém que recusa a realidade, e teima em viver num Mundo de brincar, que inventou ...

Alguém  que  parece  infantilizar-se  deliberadamente,  e  revive  momentos  utópicos dos contos de  criança ( onde fadas e duendes continuam a povoá-los, onde impossibilidades acontecem, onde o céu sempre é azul, as  flores  e  as  borboletas  preenchem  os  dias, sempre ensolarados, e onde  os "happy-ends" são constantes ) ...

Alguém que sabe que vai acordar, mais cedo ou mais tarde, que sabe claramente que não é nada disso, e que apenas "descolou"  ( numa inconsciência defensiva ), da realidade e da verdade, e viaja em velocidade de cruzeiro, a quilómetros de altitude, num mundo cómodo em que se instalou, lá bem alto, e do qual não quer descer, aterrar, baixar à realidade ... Um mundo que sabe ser fantasioso, mentiroso, utópico ... e que ainda assim, persiste em habitar ...

Bem, esse alguém ... que é exactamente assim, deve chamar-se como ???

"IMBECIL" ( ocorreu-me agora ), se o considerarmos AINDA, em parâmetros de normalidade, sendo que, seguramente, o epíteto mais adequado sem sombra de dúvida, será ... "LOUCO" ...

Porque afinal esse indivíduo, na verdade, pertence já ao reino indolor das "sombras", do entorpecimento mental, e  talvez  felizmente  para  ele,  se  mudou  definitiva  e simplesmente,   para  o  domínio  do  que  afinal  já  não  é !!!...


Anamar

sábado, 3 de novembro de 2012

" BEIJINHOS DA ... VITÓRIA "



Este post de hoje, nada tem de mim, a não ser a sensibilidade que me despertou o seu conteúdo, o qual  me foi facultado por um amigo, a quem desde já agradeço.

Achei o texto extremamente criativo, e passível de séria análise e reflexão profundas.

Vinha-lhe aposto o título de " CARTA  DE  MINHA  NETA "

Ora bem ... a minha neta é a Vitória, e quem sabe se ela não tivesse os oito anos que tem, mas sim uma idade que pudesse conferir-lhe já, maturidade, isenção, capacidade crítica, senso de defesa e equidade na distribuição da justiça social, e dos valores humanos ... quem sabe, dizia, não pudesse ser ela, a escrever-ma, expondo as suas dúvidas, interrogações  e  incompreensões ??...




VALOR DE MERCADO

"Qual é o teu valor de mercado, mãe? Desculpa escrever-te esta pequena carta, mas estou tão confusa e pensei que escrevendo me explicava melhor”.

Vi ontem na televisão um senhor de cabelos brancos, julgo que se chama Catroga, a explicar que vai ter um ordenado de 639 mil euros por ano na EDP, aquela empresa que dava muito dinheiro ao Estado e que o governo ofereceu aos chineses.

Pus-me a fazer contas e percebi que o senhor vai ganhar 1.750 euros por dia. E depois ouvi o que ele disse na Televisão.

“Vou ganhar muito dinheiro porque tenho o meu valor de mercado, tal como acontece com o Cristiano Ronaldo”

Foi então que fiquei a pensar:

“Qual é o teu valor de mercado, mãe?”

Tu acordas todos os dias por volta das seis e meia da manhã, antes de saíres de casa ainda preparas os nossos almoços, passas a ferro, arrumas a casa, depois sais para o trabalho e demoras uma hora em transportes, entras e sais do comboio, entras e sais do autocarro, por fim lá chegas e trabalhas 8 horas, com mais meia hora agora, já é noite quando regressas a casa para fazeres o jantar, arrumar a casa e ainda fazes mil e uma coisas até te deitares quando eu já estou há muito tempo a dormir.

O teu ordenado mensal, contaste-me tu, é pouco mais de metade do que aquele senhor de cabelos brancos ganha num só dia.

“Afinal mãe, qual é o teu valor de mercado?”

E qual é o valor de mercado do avozinho?
Segundo sei começou a trabalhar aos treze anos, trabalhou cerca de quarenta e três e tem uma reforma pouco acima que o dito senhor ganha por dia, óptima, diz ele, se comparada com a da maioria dos portugueses.

“Qual é o valor de mercado do avô, mãe?”

E qual é o valor de mercado desses portugueses todos que ainda recebem muito menos que o avô?

Qual é o valor de mercado da vizinha do andar de cima que trabalha numa empresa de limpezas?

Ontem à tardinha ela estava a conversar com a vizinha do terceiro esquerdo e dizia que tem dias de trabalhar catorze horas, que não almoça por falta de tempo, que costumava comer um iogurte no autocarro mas que desde que o motorista lhe disse que era proibido comer nos transportes públicos se habituou a deixar de almoçar.

Hábitos!

“Qual é o valor de mercado da vizinha, mãe?”

E a minha prima Ana que depois de ter feito o mestrado trabalha naquilo dos telefones, o "call center", enquanto vai preparando o doutoramento? Ela deve ter um enorme valor de mercado!
E o senhor Luís da mercearia que abre a loja muito cedo e está lá o dia todo até ser bem de noite, trabalha aos fins de semana e diz ele que paga mais impostos que os bancos?
Que enorme valor de mercado deve ter!

O primo Zé que está desempregado, depois da empresa onde trabalhava há muitos anos ter encerrado, deve ter um valor de mercado enorme!

Só não percebo como é que com tanto valor de mercado vocês todos trabalham tanto e recebem tão pouco! Também não entendo lá muito bem - mas é normal, sou criança - o que é isso do valor de mercado que dá milhões ao senhor de cabelos brancos e dá miséria, muito trabalho e sofrimento a quase todas as pessoas que eu conheço!

Foi por isso que te escrevi, mãe.

Assim, a pôr as letrinhas num papel, pensava eu que me entendia melhor, mas até agora ainda estou cheia de dúvidas.

“Afinal, mãe, qual o teu valor de mercado?”

“E o meu?"

Beijinhos da .....

Anamar

" O EMBALO DE IEMANJÁ "



"Amarantine"...... lança  Énya  aos  meus  ouvidos ... "love,  is  love,  is  love !"...

Por  que será que me apetece falar em falsidade ??

A falsidade, um dos sentimentos mais preversos e mesquinhos do ser humano, penso.
A falsidade pressupõe disparidade, entre quem ela se estabelece.
Pressupõe que alguém mente, e por isso é falso, e que alguém é enganado, porque não teve capacidade para se defender dessa mentira.

E normalmente essa incapacidade defensiva, resulta da boa-fé, do acreditar, da ingenuidade, até muitas vezes, do amor que une as partes envolvidas, ou melhor, que liga uma das partes envolvidas à outra, obviamente ... apenas.

A falsidade é uma constante da Vida, infelizmente.
O ser humano é ignóbil e monstruoso muitas vezes, e também muitas vezes em seu benefício, sem se dar conta dos "estragos" que causa !
É uma postura comodista sem dúvida, muitas vezes estudada, trabalhada, calculada, o que a torna mais maquiavélica, o que lhe confere um diabolismo desumano !

Usa-se falsidade em relações pessoais, profissionais, sociais, políticas, afectivas ...
Eu diria parecer ser afinal, um "motor de mobilidade" na vida humana, o que é de facto, triste, muito triste !...

Sobre a falsidade nas relações afectivas, já fiz sobejas abordagens por aqui, desde os primórdios deste meu espaço.
Mas, porque é algo que me mexe, me incomoda e me confunde, sou por vezes levada a insistir, por ser um tema que, para a forma como me posiciono na vida, se me impõe, até porque infelizmente, com ele "topo" em recorrência, não o entendo, não o acho necessário em nenhuma circunstância, nem o aceito.

A  falsidade neste domínio chama-se "traição".   E pessoas que atraiçoam, não merecem sequer experimentar a confiança, o amor e a dedicação de quem traem.

A traição é um punhal que se enterra nas costas de alguém, quando esse alguém está exactamente "de costas", sem nenhuma capacidade defensiva.
É portanto um acto de cobardia pura.
É postura de quem não tem frontalidade, coragem, verticalidade, de quem não se pauta por transparência, verdade e lisura.

Trai-se gratuitamente, e para nada  ...  Apenas se acarretam dividendos nojentos, para quem trai, e dor, mágoa e inferno, para a alma de quem é traído !
Penso que é das maiores, e mais destrutivas afrontas que um ser humano pode infligir a outro !

Para trair, um lobo veste a pele de cordeiro, uma meretriz veste a pele de donzela, um vilão mascara-se de "bom rapaz " ...
É uma técnica perfeita de dissimulação e camuflagem ;  lembra a serpente que no deserto espera a presa, de tocaia, aguardando apenas a hora de "dar o bote" ;  ou então, quando a atrai, por técnicas de sedução e mentira.  Quando se dá conta, o veneno mortal já foi inoculado, e nada mais há a fazer ...
Lembra a aranha, cuja teia é um  "véu de noiva" que cintila ao sol, diáfano e prometedor, e onde imóvel e silenciosamente  espera,  que o próximo insecto enrede nela se enrede ...

A traição começa quase sempre por um método de sedução, um processo de maquilhagem ... É uma forma perfeita de "travestismo".
Assenta na confiança adquirida, no envolvimento que se estabelece, no canto da sereia que embevece os ouvidos do pescador, em alto mar, no embalo de Iemanjá, nos corações que arrasta com ela, para as profundezas dos oceanos ...

E depois, não serve rigorosamente para nada ...
É um caminho ínvio e dolorido, que só beneficia, acredito,  mentes doentes e perturbadas, que nem conseguem ter a percepção, da destruição que provocam no seu semelhante ...

E assim se dilaceram  corações, e assim se "matam" pessoas, e assim se aniquilam,  muitas vezes irreversivel e cobardemente, seres mais fracos, menos ardilosos, menos defendidos ...  seres que enjeitam estas formas de vivência com o seu semelhante, seja em que vertente for, sendo que,  muito mais magoada, se o for na vertente emocional, que é dos principais, senão o principal pilar de sustentação do ser humano !...

                                  
 
Anamar

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

" SIMPLESMENTE "



Novembro chegou, simplesmente !

Novembro é um mês de luz doce, de cheiros mornos, de cores envolventes, de claridades difusas.
Em Novembro não há os verdes provocadores, não há as pinceladas esfuziantes, dos adornos da Natureza vaidosa ... os azuis que embalam e fazem sonhar, a transparência cintilante do céu ...
Tudo já partiu !...
O sol ainda brilha de quando em vez, mas sorri com aquele ar envergonhado, do menino que fez uma maldade e que se esconde atrás de um rostinho penitente ...
O sol também pede desculpa por estar a ir-se embora, não tarda, remetendo-nos para os dias escuros, curtos, sozinhos ... muito sozinhos.

Os dias que virão, são aqueles dias em que sobra tempo e falta ânimo, em que sobra noite e falta dia, porque de noite se morre e de dia se vive ...
E as vinte e quatro horas parecem durar eternidades, e nós sem sentirmos força cá dentro, nem sequer p'ra transpor o umbral da porta que lhes daria acesso !...

Não demora,  o ventinho desabrido cobrirá os jardins, das folhas que não tiveram mais resistência para se agarrarem aos caules, e se deixaram simplesmente ir ...
Não demora por isso, que as árvores e os arbustos dos caminhos silenciosos, se dispam e tiritem de frio, como os nossos corações, afinal !...
Breve, os musgos vão trepar pelos troncos, molhados das sombras ....  Breve será Natal outra vez, breve, mais um ano do calendário findará ... breve, breve ... Tudo demasiado breve !...

A chuva  tomará conta da praia, e trará para o areal, as gaivotas que foram felizes por cima das ondas, e que agora desistiram de dançar, por uns tempos.
O mar será de maré cheia ...  Não o vejo, mas adivinho-o.
Tenho a certeza que roncará nos rochedos, que vai tapar e destapar, continuadamente ...
Tenho a certeza, que na força do seu açoite, bordará a praia de rendas brancas ... muitas franjas brancas, espalhadas a esmo por ali, nos recantos que me foram abrigo de sonhos, pensamentos e mágoas, há ainda tão pouco tempo !...
E os seixos encavalitados, em desafio da gravidade, também já terão sossobrado à brisa, que já não é brisa, e que os terá desmoronado, como se desmorona um edifício devoluto, como se desmorona fácil, um coração partido, como se faz em pedaços uma alma adoecida ... como se esquece alguém, que já não faz falta !...

Novembro recolhe-me à concha, cobre-me com as folhas amarelecidas, do esquecimento doído ... empurra-me para toca, sem endereço de porta, remete-me ao silêncio adormentado de tempo hibernante, que deveria ser reparador de renascimentos, reinícios felizes, acordares esperançosos ... mas que o não é ... nunca o é !...

E  nem  sequer  aquele  sono  abençoado,  do  urso  pardo ( lá  nas  florestas  da  Noruega  das  minhas  memórias ),  desgraçadamente  desce  até  mim, desgraçadamente  me  dá  cólo,  me  embala,  me  canta canções  entorpecentes,  de  ninar,  para  que  eu  pudesse  dormir ...
       ... simplesmente para  que  eu  repousasse  o  meu   cansaço  acumulado ... de  vidas,  com  Novembros   perenemente   instalados !!!...



Anamar

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

" TU SABIAS ... "



Tu sabias
que lembro a que eu era, e não a que eu sou ??

Sabias que lembro o tempo das tranças, e de correr descalça na praia, na hora da maré baixa ?

Que lembro os sonhos que embalei,
e não os pesadelos que vivo ?

Que lembro o tempo em que a minha mãe cantava para mim, eu cantava para as minhas filhas ...  e não lembro o silêncio obscurecido deste quarto ??

Sabias que recordo os seixos da praia, empilhados nos rochedos, a marcar presenças ...
e lembro do cheiro da caruma, e da mata molhada pela sombra das árvores eternas ??
E  escuto  ainda  o  passar  do vento  no  meu cabelo,  que  me  levava  sempre as nuvens carregadas, do coração ??

Sabias que sinto com nitidez, o calor das mãos que me escaldavam o peito, e o fogo que me incendiava os lábios ??

E sabias que eu sinto saudade  do laranja dos pôres-do-sol, de sol que nunca se punha, porque sempre estava aceso dentro de mim ??
E as luas, então ... quando tornavam o mar de prata, e faziam as estrelas corar de vergonha ??!!...

Tu sabias que acolhi, deixei germinar e crescer num coração que já não tenho, sonhos de que também já não sei ??...

E que esqueci as tardes sem horas, porque as horas paravam para mim ??
Será que tu sabias ??...

Será que tu sabias que eu era real, tinha carne, sangue a pulsar nas veias, uma alma que aprendeu a chorar bem baixinho, e asas nos olhos ( que eu nunca acorrentei, porque eram livres ), e que partiram com as aves de arribação, em viagem ... só que ... sem destino ??

Tu sabias que um dia podias ir, mas eu ficar ...
... ou que um dia eu iria adormecer na concha da tua mão, e tu me deixarias fugir !...

Tu  sabias que haveria um dia, em que ao acordares, eu já teria partido nessa noite, na madrugada ... que de tão escura, não teve estrelas, nem lua, nem Vénus, nem ocasos, nem nasceres de sol nas alvoradas da Vida ... e que por isso me perdi no caminho !!...

Tu   sabias,  sim !...    Tu,  sempre  soubeste !...   Tu,  sempre  esqueceste ...
 ... porque  tu,  simplesmente ... NUNCA   ACREDITASTE !!!...

Anamar

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

" AS PALAVRAS "




As letras formam palavras ... estas, frases ...  e estas, pensamentos.

As palavras deveriam ser um meio de comunicação entre os seres humanos.  Sendo qualitativamente mais rica que a  linguagem  dos irracionais, e porque serve teoricamente seres superiores, deveriam as palavras, aproximar, e não afastar ... deveriam provocar entendimentos, e não rupturas, deveriam gerar consensos ou não, mas sempre dialéctica sã e objectiva.

Com elas, os povos AINDA tentam entender-se, os políticos esgrimem nas plataformas, nas reuniões, nos fóruns, nas cimeiras, nas bancadas ... para decidir destinos.
Com elas, também teoricamente, as pessoas deveriam aproximar-se desarmadamente, pese embora que elas também são, muitas e muitas vezes tiros certeiros, armas de arremesso  outras tantas ... mísseis destrutivos e aniquilantes, vezes demais !...

É estranhíssimo, que sendo o Homem um animal provido de inteligência ( consta ... ), as não saiba usar, e em vez de com elas exprimir pensamentos positivos, formas de aproximação que lhe seriam gratificantes, destrói-se, "mata-se", esquarteja-se ...

Com elas, as pessoas em vez de se acarinharem, degladiam-se, e acabam estranhando-se, parecendo falarem dialectos distintos, nem sequer conseguindo descodificar mais, o que elas querem mesmo dizer ;   dão aos seres humanos, a remota sensação de pertencerem a planetas diferentes, e inentendíveis !

Por vezes são demasiado codificadas, tão codificadas que não se descortina a mensagem que transportam ..
Nem mesmo  se descortina quem está na verdade, por detrás delas.
E quantas vezes nos surpreendemos, e não acreditamos, que quem as proferiu, seja aquele ou aquela, que julgávamos conhecer, pelo direito e pelo avesso!

Outras vezes, parecem ser incompletas, porque em vez de colocarem as pessoas, a proferirem-nas olhando-se nos olhos, colocam as pessoas de costas umas para as outras, definitivamente !...
E fica aquela coisa incómoda  de, de repente, não percebermos bem com quem falamos, quem somos ... aquele incómodo mau-estar,  de haver um corte na ponte, que elas deveriam garantir, entre os dialogantes.
E não se percebe mais nada !!!...
Parecemos largados em Marte, a querer estabelecer ligações, traduzir sentimentos, mostrar intenções, com seres que nos são afinal totalmente estranhos. (se Marte os tivesse !...)
E as pessoas ficam irremediavelmente a falar sozinhas ... e falar sozinho, não é bom, nunca foi bom !...

Falar sozinho, é o oposto do amor, é o inverso de Vida !
Eu não sei falar sozinha !...
Fica assim um deserto de sentimentos, de emoções ... e sem sentimentos e emoções, o ser humano morreu, estiolou  simplesmente ... e nem deu por isso !

Parece que às vezes, tudo passaria por se criar outro alfabeto de letras, para se criarem mais palavras, mais frases e mais pensamentos ...
Parece que isto que temos por aqui, não chega, porque já não permite mais comunicação !

E dizemos : "Mas como ??!!   Como é que aconteceu ??!!   Ainda ontem a gente falava com estas palavras ... elas chegavam ... elas eram mais que suficientes??!!
Porque há palavras que o olhar completa, quando elas não bastam ... e as mãos também, e o calor do corpo também ... ainda mais !...

Os olhos, terminam miraculosamente muitas frases ... Mais, os olhos têm o poder mágico de conseguir dizer frases, sem serem ditas, sequer ... 
E há quem as leia perfeitamente ... sem esforço ...
Mas isso, é para quem partilha segredos e cumplicidades ...

E também se lê nas "entre-linhas" ... linhas de palavras ditas ou escritas, que têm mais recheio não explícito, e que constitui código, para os que se entendem ...

"Meias palavras", não é lá muito bom, porque isso dá "pano p'ra mangas" ...
Sempre cada um acrescenta o outro meio, como lhe dá "na bolha" ... E ou se acerta, ou se erra, e pode estragar-se tudo o que era !!!...

Serão incompletas as palavras, ou simplesmente curtas??...

Acho que são demasiado "curtas", as palavras ... porque ficam quase sempre, a anos-luz do que tinham a responsabilidade de transportar ... e não o fazem !...
Fica muito por dizer, por perceber, por transmitir ...
Ficam sempre aquém da nossa vontade, do nosso desejo, do nosso anseio ... e murcham nos lábios, entopem nas gargantas, secam nos corações ... definham na alma.

É então, quando as lágrimas impotentes rompem os diques, e de enxurrada, levam tudo adiante ...

São por isso,  MUITO  INJUSTAS  as palavras !!!...


Anamar

domingo, 28 de outubro de 2012

" QUEM FOR A MIRANDA ... "



Agora, quem vai a Miranda, não vai só ver os "pauliteiros" ...

Este meu espaço, já o referi sobejamente, para lá de ser profundamente "meu" ( talvez o espelho em que precisaria olhar-me, e não olho ), é também espaço de veiculação de tudo o que acho importante divulgar, seja em que campo for, tudo o que acho relevante e merecedor de atenção, de qualquer cidadão que a ele aceda.

Comecei o meu post, pegando no refrão da velhinha canção popular, que todos por certo  lembrarão, para introduzir a notícia que aqui posto, e que é digna de uma análise justa, pelos mais variados aspectos que a ela concernem.

Realmente, hoje, quem for a Miranda, não irá só ver os "pauliteiros", talvez vá ver com os seus próprios olhos, a Isabel e a Tânia, mais duas jovens que engrossam a estatística do desemprego neste país.
São simplesmente mais duas enfermeiras, que tiveram uma iniciativa filantrópica, meritória e enternecedora .

Na ausência de trabalho, e com o ganha-pão negado, pela crise que atravessamos, decidiram pôr as suas vidas, o seu  "know-how", o seu esforço, o seu tempo, ao serviço da comunidade.
Mas não de uma comunidade qualquer ;
buscaram o desconforto, arriscaram expor-se à natural hostilidade advinda da desconfiança, sobretudo da população idosa ( como seria de esperar ), de uma aldeia do nosso Portugal interior, do nosso Portugal que fica  por  detrás das serras,  para  trás  da civilização , para  além  do  conforto ... o  nosso  Portugal marginalizado  e  desprotegido ...
Aquele que fica também, para lá da memória dos dirigentes, e do conhecimento das entidades responsáveis, neste país !...

Tenho particular respeito e admiração pelo trabalho voluntário, indistintamente.
Sempre  tenho  perante  ele, ternura  e  humildade,  por  considerá-lo  um  dos expoentes  máximos da capacidade  do Homem se dar, se transcender, de usar a generosidade do seu coração em prol dos desfavorecidos ... de usar a partilha do seu "eu" ( quase sempre, mais ou menos egocêntrica e comodista ) em favor do semelhante ... de buscar e pôr ao serviço dos outros, o melhor de si próprio ...
Não se trata, obviamente, de uma "caridadezinha", mas de um verdadeiro altruísmo !

É quando deparo com exemplos destes, que acredito que talvez a Humanidade ainda não esteja completamente perdida, que o ser humano ainda tenha em si ( apesar de tudo e de todos ), uma capacidade de reabilitação, e uma força de renascimento, e de reconversão reais !!!...

E sinto-me gratificada, por perceber que é nas gerações jovens desta terra, e se calhar, do Mundo, que começa a germinar uma sementinha de consciencialização, de sensibilização e entendimento, face às revoluções necessárias acontecerem nas mentalidades, nas posturas, nas convicções, para que o Mundo, qual  "Fénix",  possa  renascer das cinzas a que chegou !...

Sem dúvida, o exemplo de Isabel e Tânia, será algo que nos fará pensar, e mexerá talvez em muitas consciências indiferentes e acomodadas, em muitos espíritos adormecidos !!!...

Anamar



Miranda do Douro

Há duas enfermeiras que trabalham a troco de casa, comida e roupa lavada


Isabel Moreira e Tânia Dias vão a casa dos habitantes. Brevemente, outros profissionais poderão juntar-se ao projecto Isabel Moreira e Tânia Dias vão a casa dos habitantes. Brevemente, outros profissionais poderão juntar-se ao projecto (Foto: Nelson Garrido)
"Oito meses de portas fechadas e sem emprego levaram duas recém-licenciadas a fazerem-se à estrada, subirem país acima e aterrarem, de armas e alguma bagagem, em Atenor, a aldeia do concelho de Miranda do Douro, conhecida pelo seu esforço de preservação dos burros, os de carga.

Isabel Moreira e Tânia Dias decidiram montar, durante três meses, um projecto de voluntariado em que oferecem à comunidade os seus serviços, como a medição de tensão arterial, diabetes, acompanhamento a consultas, apoio na medicação ou na execução de pensos, por exemplo. Findo o prazo, esperam um contrato.

Os sonhos de trabalhar num hospital ou centro de saúde, foram-se desvanecendo à medida que os dias em casa se iam transformando em desespero. Isabel Moreira, de 39 anos, natural da Mêda, na Guarda, trocou uma carreira como gerente hoteleira pelo sonho de tratar dos outros. Um dia, desafiou a colega de curso Tânia Dias, de 22 anos, de Seia, também no distrito da Guarda, e com o mesmo sonho, a embrenharem-se no Planalto Mirandês e darem a conhecer o Laços, um projecto de apoio à comunidade em regime de voluntariado, para já, com a esperança de lançar a semente que no Verão lhes possa trazer o ordenado.

Até lá, contam com o apoio da Junta de Freguesia de Atenor, cujo executivo há muito dava voltas à cabeça para uma solução que, pelo menos, amenizasse o crescente envelhecimento da população e a desertificação do território. Depois de uma conversa casual, no início do ano, com Moisés Pêra Esteves, o presidente, o projecto foi pensado e, desde 17 de Março, trouxe outra alegria aos quase 200 habitantes desta freguesia.

Três meses à experiência

“Propusemo-nos a ficar três meses à experiência, de forma a darmo-nos a conhecer e ao nosso trabalho", conta Isabel Moreira, acrescentando que o apoio da junta de freguesia passa por alojamento, carro para as deslocações e acompanhamento dos idosos às consultas e um pequeno subsídio para alimentação e outras pequenas despesas.

A somar a esse apoio, somam-se as ofertas das pessoas da terra, que, como bons transmontanos, não têm pejo em partilhar o que a terra lhes dá. “Desde alfaces, cenouras, couves, batatas, azeite, as pessoas dão-nos de tudo o que produzem. No início até estranhámos mas ficam ofendidas se não aceitamos”, explica a enfermeira que durante 22 anos trabalhou na hotelaria.

Para evitar surpresas e suspeições, o presidente da junta acompanhou as duas profissionais e, durante três dias, apresentou-as a todos os habitantes da freguesia, um a um. “No início, houve algumas pessoas que disseram que não estavam interessadas nos nossos serviços e então não íamos a casa delas. Mas, depois, mudaram de ideias, quando viram o que fazíamos, e até pediam aos vizinhos para nos dizer para passarmos por lá também”, contam as enfermeiras, com um sorriso.

Passados praticamente dois meses, a iniciativa está a “superar as expectativas”, dizem. Também a junta de freguesia está satisfeita com a dinâmica e melhoria da qualidade de vida dos seus habitantes. Por isso, Moisés Esteves revela que estão a ser “criadas as condições para o projecto continuar”. Por um lado, as várias associações da terra estão a ser convidadas a contribuir. Por outro, vai ser criada uma outra associação, com o objectivo de agregar os excedentes da produção agrícola da freguesia, sobretudo azeite, para os vender e investir os lucros no pagamento dos salários das duas enfermeiras, que já estão a tratar de parcerias com outros profissionais de saúde, como dentistas, psicólogos, terapeutas da fala ou terapeutas ocupacionais. Tudo valências que existiam nos centros de saúde da região e foram sendo retirados nos últimos tempos, em nome da contenção de custos.

"Sobretudo o mimo"

Mais do que os cuidados de saúde, são os cuidados emocionais que têm feito as delícias dos mais velhos de Atenor. “Sobretudo o mimo”, confessa, com um sorriso, Isabel Moreira. Mais do que saúde, as enfermeiras trazem companhia às pessoas. “Contam-nos tudo. As queixas dos filhos, as coisas que acontecem por aqui... Tudo!”, garante Isabel Moreira, mãe de quatro filhos, que ainda fica com o coração apertado de cada vez que se lembra do dia em que explicou à filha mais nova, de 12 anos, que vinha para Atenor.“Ai mãe, para aquele sítio tão longe?", perguntou-lhe. "Pois, filha, tem de ser.”

As duas enfermeiras revezam-se de modo a assegurar os cuidados à população 24 horas por dia e de maneira a poderem ir a casa. A distância entre Atenor e a Guarda não se estreita sequer com a ajuda da Internet ou do telemóvel, os montes cortam o sinal.

Noventa por cento dos utentes do projecto Laços tem idade acima dos 65 anos, “a média de idades supera os 70 anos”, dizem as enfermeiras. “Eu dizia mal da minha zona, na Mêda, mas aqui é muito pior”, confessa Isabel, entre duas visitas. Para trás, ficou Fernando Marcos, cujos 66 anos vêm dar um vislumbre da estatística. Um olhar mais certeiro do que o seu, que já se perdeu por um glaucoma, apesar das 12 operações. Mediu a tensão, um pouco mais alta do que o costume, os diabetes, tomou a medicação e lá foi contando a sua história. Sentado no escano da cozinha, garante que as duas enfermeiras “não fazem mais porque não podem”. “Até foi uma boa ideia. Andamos mais acompanhados, mais vigiados e ajudam a passar o tempo”, explica, sob o olhar atento de Isabel, a esposa, que lá vai sussurrando que o serviço “dá muito jeito por causa da medicação”.

Além disso, as duas enfermeiras também os acompanham ao médico, de carro, e ajudam na tradução da linguagem técnica usada no consultório e que, muitas vezes, é imperceptível. “Não tínhamos ninguém que se preocupasse connosco. Para levarmos uma injecção tínhamos de ir a Sendim”, a uns dez quilómetros, aponta Marcos.

Quando os instrumentos de medição da tensão regressam à maleta de trabalho, o homem tem alguma dificuldade em despedir-se. “Não quer que fale mais?”, pergunta, ainda com esperança de mais uns dedos de conversa.

Um pouco mais à frente, do outro lado da rua empedrada da aldeia de Teixeira, mora Gregório, que na véspera sofrera uma queda. “Ir ao médico? Nem pensar. Fui uma vez à urgência e quase me matavam”, recorda, sob o olhar reprovador da mulher, Natividade da Purificação, que aproveita para desfiar um rol de queixas. “Sabe, eu também ando em consultas desde 1999. E tenho de pôr o oxigénio. Mas eu é só para ir passando, porque tenho uma crónica [bronquite] muito grande”, explica.

Mudado o penso e dada a medicação, é hora de partir rumo a outra “cliente”. “Espere lá, então hoje não me medem a tensão?”, atira ainda a tempo o Gregório, que tem direito a mais uns minutos de atenção. No final, ainda pergunta “quanto é”. “Nada? E não querem uma pinga?”, insiste. Não que já se faz tarde e à espera está já a senhora Felicidade. “É só para lhe medirmos a tensão e fazemos um bocadinho de companhia”, murmura Isabel Moreira, já no caminho. Entretanto, Tânia foi medir a tensão a outro vizinho, o senhor Altino, que está com pressa para ir para o campo.

Ao todo, são cerca de 50 as pessoas que já esperam, ansiosas, à porta de casa a chegada das duas enfermeiras. Os laços já estão criados."