segunda-feira, 5 de novembro de 2012

" O MANUEL E A MARIA "


Ando numa maré de divulgar por aqui, textos merecedores de serem lidos, dada a sua mensagem, a sua qualidade, aquilo que eles próprios transmitem e com que nos fazem pensar, reflectir, interrogar.

É o caso do que constitui o meu post de hoje, cujo autor é um filólogo açoreano, Luís Fagundes Duarte, da minha geração, que fala de coisas muito reais, que conheço, conheceremos todos os que viveram esses tempos.

Tempos de dificuldades, de não abastança, nem facilidades.
Mas tempo, por isso mesmo, de valorização das coisas, de calibragem das pessoas, e de formatação dessas mesmas pessoas, para destinos válidos ;
porque -  por difíceis -  por eles se lutava, e a eles se aprendia a dar a justa importância.

Era o tempo em que se estruturavam perfis sólidos, mentes dignas, sérias, com preocupações válidas, de formações consistentes, de enriquecimento enquanto homens, com responsabilidades pessoais, sociais, familiares, interventoras por tudo isso, no futuro da Humanidade.

Emocionou-me a simplicidade e a ternura da escrita, o rigor do exposto, a riqueza do conteúdo...

E porque sei, que era felizmente assim, com alguma frequência, aqui o deixo à vossa consideração.
Certamente o saberão apreciar devidamente !...

 


" Não sei se os meus Pais, se fossem vivos, se sentiriam orgulhosos ou não com o meu percurso de vida. Mas a verdade é que, sempre que faço alguma coisa de jeito e obtenho com ela algum êxito, penso neles e em como gostaria que eles estivessem presentes; e quando faço asneira e as coisas dão para o torto, imagino as caras de tristeza e desengano deles, e apetece-me pedir-lhes perdão. Porque, ao contrário de mim, eles fizeram tudo o que podiam.

Eu sou da geração que nasceu na idade da pedra e chegou à fase adulta na idade da informática. Aprendi a ler e a escrever como as crianças da antiga Roma: num pequeno quadro de ardósia, onde se escrevia com um estilete de pedra. Hoje, escrevo esta crónica ao computador, e mesmo quando faço um texto científico não preciso de me levantar da cadeira para ter acesso a toda a informação de que necessito. O meu primeiro ano de escola foi numa casa velha, sem instalações sanitárias nem água para lavar as mãos, e hoje as nossas escolas são verdadeiros primores de conforto e higiene. Havia crianças que levavam para comer na escola uma fatia de pão-de-milho barrada com gordura de porco, e hoje os seus netos têm refeições quentes e dieteticamente equilibradas.

A II Guerra Mundial acabara há poucos anos quando eu nasci, e as memórias que os meus Pais me transmitiam em criança eram de racionamentos, de trabalho duro, de falta de dinheiro e de bens de consumo. Comprava-se o peixe à porta de casa, que se podia pagar com ovos ou com feijão; comprava-se manteiga às metades ou aos quartos de uma barra (nos tempos em que a manteiga Milhafre ainda tinha o seu pássaro identitário e era vendida em pequenas barras embrulhadas em papel vegetal); o café era de cevada; o açúcar era comprado a retalho ao quilo ou mesmo ao meio-quilo; matava-se um porco por ano, e a carne e a gordura tinham que dar para o ano inteiro; ia-se à cidade de camionete, quando o rei fazia anos, para ir ao médico, levantar uma saca de encomendas com roupas velhas mandadas da América, pagar a contribuição, comprar uma roupa ou uns sapatos para o dia da Festa, e pouco mais.

Porém, em casa dos meus Pais, havia livros: o meu Pai mais de história e geografia, a minha Mãe mais de ficção. Enquanto eu e os meus irmãos fazíamos os trabalhos da escola, o meu Pai escrevia música à luz de petróleo, e a minha Mãe fazia bordados de matiz – e ajudava-nos nas contas, nos ditados e nas leituras. Antes de adormecer, a minha Mãe contava histórias que ouvira da Avó Nazaré, e cantava peças do Romanceiro Antigo que mais tarde identifiquei no Romanceiro de Almeida Garrett. Quando se zangava, o meu Pai falava alto e gesticulava muito, e depois dava-nos beijos e abraços de uma ternura sem fim; a minha Mãe, mais comedida, ajeitava-nos a roupa e os cabelos, e com os seus olhos da cor do céu e do mar dizia-nos coisas que as palavras não alcançavam. Um e outro fizeram mil vezes mais do que podiam para que os filhos andassem calçados (quando a regra, nas freguesias, era os rapazes andarem descalços), vestissem roupas confortáveis, tivessem brinquedos pelo Natal, fossem bons alunos na escola – e continuassem a estudar depois de feita a quarta classe da escola primária. E quando as pessoas censuravam os meus Pais por quererem dar estudo aos filhos, dizendo que tínhamos bom corpo para trabalhar (isto pelos 10-11 anos…) e que eles ainda teriam que começar a vender terra ou a fazer dívida, o meu Pai comprava um alqueire, ou um meio alqueire, ou mesmo uma quarta de terra – para provar que mesmo com os filhos a estudar era possível sobreviver. E à noite, depois da ceia, quando ficávamos a conversar à luz do petróleo, dizia-nos com os seus olhos doces: “A melhor herança que vos podemos deixar é o estudo!”.

O meu Pai chama-se Manuel, a minha Mãe chamava-se Maria.


Luiz Fagundes Duarte

(No diDOMINGO, de Angra do Heroísmo)



NOTA INFORMATIVA : 

Luiz Fagundes Duarte (Serreta, 6 de outubro de 1954) é Licenciado em Filologia Românica (1981) e Mestre em Linguística Portuguesa Histórica (1986), pela Universidade de Lisboa, e Doutor em Linguística Portuguesa (1990) pela Universidade Nova de Lisboa, de que é Professor.
Como filólogo, a sua produção científica originou a publicação de ensaios, edições críticas e artigos científicos em revistas de especialidade, que têm como objecto questões de teoria e prática da filologia e assuntos relacionados com a edição crítica das obras de importantes escritores portugueses de várias épocas, designadamente Antero de Quental, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa e Vitorino Nemésio. Foi membro da Direcção da Associação Portuguesa de Escritores, e fez crítica literária em jornais e revistas nacionais, como o JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, e a revista Colóquio/Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian. Escreve regularmente nos jornais Diário Insular, de Angra do Heroísmo, e Açoriano Oriental, de Ponta Delgada.
Da sua actividade política destaca-se o exercício do cargo de Director Regional da Cultura no Governo Regional dos Açores (1996-1999), e de Deputado à Assembleia da República, eleito pelos Açores nas listas do Partido Socialista (1999-2002; 2002-2005; 2005-2009), integrando as Comissões de Educação e Ciência, de que é coordenador pelo Partido Socialista, de Negócios Estrangeiros, de Defesa Nacional, e o Grupo de Trabalho das Actividades Culturais da Assembleia da República, de que é presidente. É ainda membro do Conselho Nacional de Educação, da Comissão Científica do Plano Nacional de Leitura, e da Comissão de Ciência e Tecnologia da Assembleia Parlamentar da NATO.

Anamar

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