quinta-feira, 20 de novembro de 2008

"EU TIVE UM SONHO" - CARTA ABERTA AO "MEU PRESIDENTE"














































As imagens que aqui deixei, constituem um powerpoint que circula, recebi, e mexeu comigo.
Resultou de uma montagem feita por Maria Fernandes, a quem agradeço o excelente trabalho realizado, e a quem peço antecipadas desculpas por o ter utilizado como "fundo" para este pequeno "desabafo".
Presumo que ela não se importará, porque a presumo colega de luta e de coragem, também...

Mexeu comigo e teve a capacidade de me levar às lágrimas, coisa que, por estes motivos já não me acontecia há para lá de tempo...
Seca, dura, talvez um pouco amorfa de cansada, talvez um pouco indiferente de revoltada, desde os meus tempos de jovem que o peso duma ignomínia sentida na pele e no coração, me não tocava tanto, quanto a que vivo actualmente.

Embrenhei-me na luta académica de 69...
Lembro no peito, horas em surdina, dentro de armários, na velhinha Faculdade de Ciências da Rua da Escola Politécnica, com a polícia a invadir e a devassar tudo e todos, a confrontar e a deter todos quantos acreditavam e lutavam por ideais...
Sinto ainda aquelas faixas de luto, dependuradas das grades dos portões de uma escola encerrada a cadeado...

Recordo os tempos imemoriais do fascismo, quando a GNR a cavalo, fazia recuar pelas escadas da estação do Rossio, em atropelo, os cidadãos deste país, homens e mulheres, depois de um dia de trabalho, cansados de prepotências, arbitrariedades, injustiças e violência...

Recordo tudo isto com muita nitidez, e juraria para mim mesma, que depois daqueles cravos terem descido às ruas e aos nossos corações, neste país que foi de Abril, não seria mais possível chorar-se outra vez por raiva, ódio, impotência...

Juraria...

A minha escola tem um presidente...
Quando ele chegou àquela casa, era um indistinto professor da sua área, defendendo os mesmos sonhos, lutando com as mesmas armas, dando tudo o que de melhor nele teria. Um, entre os seus pares...
Era quase um puto...se tivermos em conta, que eu há muito já fazia parte da "mobília"...

Acabou por dar continuidade, eleito que foi, ao trabalho árduo desenvolvido por uma mulher incontornável, na história daquela instituição.
Uma mulher que deu o sangue, o suor e só não deu as lágrimas, porque para ela, aquele trabalho nunca foi de lágrimas...
porque para ela, o sacrifício de vida pessoal e familiar, era simplesmente uma missão de causa única, que havia que cumprir...
Deixou, por tudo isso, marca, nome, trabalho feito...

O "meu presidente" também já deu seguramente dedicação, trabalho, anos de sacrifícios...vida!
Tenho por ele, o maior respeito nesse contexto. Certamente ser-lhe-ia mais cómodo, debandar em retirada, nos tempos actuais.
O "meu presidente" corre, corre muito, mas não debanda.
Encarna a figura do que "quando é...já foi"...ou seja, a sua disponibilidade raramente se compadece com uma paragem solicitada por alguém...raramente se compadece no esbanjamento de um sorriso cúmplice por colegas, ou mesmo na troca calma (por uma vez na vida), de opiniões, ideias, preocupações, com alguém que por acaso o cruzou no caminho...

Deixou de ser "aquele puto" de então, porque os anos e certamente tão intenso labor, lhe trouxeram ao rosto e ao cabelo os tais sinais inglórios da sua passagem.
Continua ainda assim, a ser o "homem da mota", e se não for herói por mais nenhuma causa, é-o pelo menos, no estoicismo com que diariamente enfrenta p'ra lá e p'ra cá aquela infernal IC19.
Admiro-o, repito...admiro-o como se admira um verdadeiro "kamicase"...só ainda não consegui descortinar qual o ideal que move o "meu presidente"...

Aliás, aqui há algum tempo atrás, realizou, "ele", uma Reunião Geral de Professores, na qual (entre outras tomadas de posição que me preocuparam, porque o senti só, prepotente e autista), teve uma finalização bombástica que "arrasou" comigo...

Desde então, eu, que tenho estado um pouco "na moita" a "deixá-los poisar", no meio de tanta conflitualidade, controvérsia, expectativa, preocupação e insegurança...comecei mesmo a ficar seriamente estupefacta, abalada, alarmada...

É que, oiço o "meu presidente" realçar claramente a todo um corpo docente que o elegeu, que não estando ali para lesar ninguém e a tal se comprometia, o melhor mesmo seria desenvolver, de acordo com determinações da tutela, o modelo da avaliação por ela criada...até porque, "não teria particulares vocações quixotescas para herói de nenhuma causa, não estando disposto, portanto, a arriscar a sua vida pessoal e profissional"!!...

Foi aí que eu pensei, como é que o "meu presidente" me vai fazer uma escolha destas!!!...
E perguntei-me, onde é que aquele "puto" que eu conhecera anos antes ali mesmo, naquela escola, tinha despido e deixado esquecida a "camisola" ??!!...

E continuei a divagar, enquanto lá à frente, na mesa da Assembleia "ele" SE ouvia...

Então este homem ainda não se deu conta dos tempos que correm??!!...

Então, ainda não percebeu que não é ele que tem que defender toda uma classe de colegas, sérios, honestos, dedicados, trabalhadores...mas seriam essas fileiras de gente, que se cerrariam e o protegeriam numa tomada de posição vertical, inequívoca e em uníssono, sem se saber onde começa e acaba toda uma escola??!!...

Então não se sente (como profissional que se dá até à exaustão), magoado, vilipendiado, humilhado, desrespeitado??!!...

E não sente solidariedade magoada com quantos já abandonaram a embarcação antes da hora, porque simplesmente tinham coluna vertebral e não puderam mais pactuar??!!...

E não percebe que carreirismos e aproveitamentos sempre grassam, quando as crises, o medo, a suspeição e a sacanagem se instalam??!!...

E que a HORA é de dizer basta, é de firmeza e coragem e jamais de cobardia??!!...

E que o "timoneiro" é o responsável no comando dos destinos de quantos nele acreditaram, puseram fé e esperaram??!!...

E que permitir que nos maltratem gratuitamente e sem limite...
e que ignorar que nos calem com ameaças de fantasmas instalados, sem resistência e sem recusa...é uma forma de conivência inqualificável, porque ignora o espírito de classe, ignora o interesse dos seus pares, ignora que na verdade "somos todos iguais...braços dados ou não"??!!...



E resolvi, ou melhor, este mail e este poema tiveram o mérito de resolver, que hoje, aqui, madrugada dentro, eu "contaria" ao "meu presidente" o meu sonho sonhado:

"VEM...VAMOS EMBORA...ESPERAR NÃO É SABER...
QUEM SABE, FAZ A HORA, NÃO ESPERA ACONTECER!!!..."

Anamar

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

"COM UMA SÓ FOLHA DE PAPEL..."

Pelos vistos com uma só folha de papel...e muita imaginação, pode "criar-se" o MUNDO!...

Deixo, sem mais comentários, trabalhos de recorte de artistas que dispensam outras referências. São...CURIOSIDADES!!!

Concurso no Hirshorn Modern Art Gallery

A regra era simples, cada artista apenas podia usar uma única folha de papel..















Anamar

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

"DE MIM PARA MIM..."

Um dos maiores sinais da perda da inocência e do desencanto que os anos nos vão deixando, é quando num dia de aniversário não conseguimos ver que o sol está mais brilhante, as cores mais vivas e as pessoas particularmente simpáticas.

Quando ao abrir da pestana, naquele meio termo entre o dormir e o acordar, quando ainda nem bem sabemos de que terra somos, onde estamos, que dia é aquele que ora começa, nenhum "clique" se faz de imediato no nosso espírito...então é porque decididamente, já estamos em fase não de fazer, mas de "desfazer" anos...

Quando criança, esse dia é esperado semanas antes, "catrapiscado" vezes sem conta no calendário.
Lembra-se aos professores, aos amiguinhos da escola, a todos a quem se pode.
Imagina-se, com "taquicardia" infantil, a festinha, a festa ou a "festona" que sonhámos e que talvez tenhamos a sorte nos venha a ser prodigalizada.
Já fizemos saber com a devida antecedência, as prendinhas que muito gostaríamos de ganhar...e aquele dia nunca mais chega!! E pior ainda...ocorre só uma vez no ano!!...

Passados anos, quando "teenagers" algo inconscientes, já no tempo em que se combina com meio mundo uma enorme farra, num dos espaços da cidade, mais badalados ( e em que cada um paga o seu), o aniversário passa por um convívio, na mesma mesa primeiro, na mesma pista de dança depois, de copo na mão e no balanço determinado pelo DJ da noite.
Entre dois cigarros, entre a cumplicidade da madrugada, fazem-se e desfazem-se "casos", trocam-se carícias aquecidas pelos copos já consumidos, curte-se o som e o entorpecimento dos corpos, para na manhã seguinte, já não lembrarmos bem como foi...
Já não é mais o tempo do "croquetinho" ou da sandwiche de queijo, da mousse de chocolate ou da baba de camelo... Já não se recebem grandes prendas, e nem é isso que importa, mas sim beijos, abraços, risos, gargalhadas...e uma espécie de promessa circulante de que a vida é mesmo fixe, está todinha à nossa espera e é "bué" importante curti-la...

A "ampulheta" vai sempre andando, ou melhor, vai sempre esvaziando, implacável...e chega o tempo em que a "roda" traz até nós, em mãos pequeninas, a prendinha comprada obviamente pelo pai, e o cartãozinho garatujado com traços imperceptíveis ( a lápis de cor ou feltro), que nós juramos ser lindo e cuja mensagem também juramos entender...ou melhor, "ler" perfeitamente...
Vêm os abracinhos, os beijinhos, e aqueles "penduricalhos" sempre no nosso pescoço..."Parabéns mamã..."
Estamos felizes...Afinal eles, os anos, ainda não são muitos...

E calendários passam sobre calendários...

Dos bilhetinhos com casinhas, sóis de olhos e boca, árvores maiores que as casinhas e corações ainda maiores que tudo...das prendinhas compradas à custa de austera poupança na parca semanada...começam a chegar aqueles aniversários em que no jantar do dia, estão, a prestigiar a mãe, os amigos de longa data, que na circunstância trazem filhos da idade dos nossos.
Passam a noite na outra sala, a conversar outras conversas, a ouvir outra música, enquanto os adultos rodeiam a mesa farta dos doces e bolos, que atravessam as primeiras horas da madrugada.
A "malta", de quando em vez, faz uma "incursão "estratégica" de reabastecimento na sala de jantar, ouve restos das conversas entediantes dos adultos (os casos da actualidade, as últimas da política, do cinema, as preocupações com os novos e os velhos) e regressa à outra sala, até que seja dada ordem de partida, ou seja, o alívio para aquela grande "seca"...
Os anos ainda não pesam, há muito percurso ainda a fazer, não há muitos sobressaltos no horizonte...
A vida decorre de acordo com o "figurino" correcto...

Hoje...a maior parte não está por perto, pelas mais variadas razões.
A maior delas, os percursos "enviesados" que cada um decidiu para si.
Depois, há os que não estão nem estarão nunca mais, pela inevitabilidade do destino.

São os tais dias, em que acordamos no meio do édredon e não temos nenhuma urgência em pular da cama.
Afinal, aquele é só mais um dia, entre os trezentos e sessenta e cinco transcursos...
Não há festa à espera, não há cartõezinhos do colégio, não há prendas surpresa em mãos pequeninas, não há discoteca que nos valha, não há amigos com filhos à roda da mesa dos doces...
Só há tudo isto, em "cassetes" e "cassetes" de recordações...

Aliás...estou a ser tremendamente injusta...
A roda rodou outra vez e girou e girou...e acabamos recebendo um "chamado" urgente de vozinhas outra vez não muito perceptíveis ( com um "ponto" em fundo que dita o discurso)..."Olá...Parabéns vóvó!..."

Aí então, apesar de serem já nove da noite, recordamos que o sol esteve mais brilhante neste dia...as cores estiveram bem mais vivas...e particularmente as pessoas...bom...essas, estiveram de facto super-simpáticas connosco...e não tínhamos lembrado porquê!!!...

Anamar

No dia de hoje, de mim para mim, um presente muito especial..."Maria Bethânia, a diva...e Fernando Pessoa...o Mestre"...

terça-feira, 11 de novembro de 2008

"A ROLETA DO DESTINO"




Para tudo precisamos ter sorte neste Mundo...

Para se nascer no sítio certo, para não se estar no sítio errado na hora errada, para se ser cão, gato, pessoa...sei lá..

A "estrelinha" que parece acompanhar alguns, parece também relegar ao esquecimento outros tantos.

Não é exactamente igual, ou com similares possibilidades potenciais, nascer-se numa Europa de primeiro mundo, ou numa África enteada... em muitas zonas do continente asiático, ou mesmo em determinados países ou pedaços do continente americano, como sabemos...

Não é exactamente igual nascer-se numa família de um determinado estrato socio-cultural, ou noutra de cariz bem distinto.
E não me refiro especificamente ao acesso mais ou menos fácil a bens materiais, ainda que saibamos, que infelizmente este é determinante.
Refiro apenas, "tout court", a aleatoriedade pura e simples...a "roleta do destino ou do acaso".

Porque afinal, todos poderíamos ter nascido ou pertencido a qualquer lugar.

Esta reflexão impôs-se-me pela observação do vídeo que aqui deixo e que dispensa qualquer comentário...creio. (Obrigada amigo Filipe)

Na era dos "Direitos Humanos", em particular dos "Direitos das Crianças", na era das "Embaixadas da Boa Vontade", promotoras só por si de figuras públicas e por vezes não mais...olhe-se bem a realidade que transparece das imagens que aqui ficam...

Anamar

sábado, 8 de novembro de 2008

"OS QUATRO OITOS" - Evasão

8 de Março de 2008 - 8 de Novembro de 2008 - 8 longos meses...

A "MARCHA DA INDIGNAÇÃO"...8 meses de revolta e exasperação...

hoje chamar-lhe-ei a "MARCHA DA CONSTERNAÇÃO"...


Nesta tarde parda com a ameaça de chuva e um sol fraquinho e envergonhado por entre as nuvens, confirma-se na rua tudo o que nós professores, há muito vimos sentindo.

Não pude estar fisicamente presente, mas aqui do meu sétimo andar, transporto-me com a alma, com o coração, com a raiva e a indignação para junto dos meus companheiros de luta e jornada...

Não vou dizer nada mais sobre o assunto.
É por demais conhecido de todo um povo...Na pele, conhecemo-lo nós.
As palavras estão gastas, os argumentos exauridos, os adjectivos, consumidos...
Até Outubro mais de 5000 professores fora do ensino.
Eu fiquei mais um ano, para que a penalização da reforma antecipada não me seja completamente insustentável...

E o pior...ou o melhor....mas seguramente o mais triste, é que continuo a gostar de dar aulas!!!

Sinto-o todos os dias, face àqueles que legitimo como meus verdadeiros avaliadores...os meus alunos...

Mas não me deixam fazer o que aprendi e sei...
Não me deixam ser PROFESSORA!!!...

Por isso hoje, nesta tarde incaracterística de Outono, estou nostálgica, estou triste, estou amarfanhada por dentro...estou mortalmente magoada...

Não me perguntem o porquê...mas foi-me imperioso rever as imagens que aqui postei, ao som de música igualmente escolhida de acordo com o meu estado de espírito.
Elas têm a delicadeza e a beleza que não enxergo por aqui, têm o equilíbrio que precisamos, têm a paz que nos faz falta...elas projectam-nos a uma evasão com que quero "apagar" a amargura e o cansaço que não deixam a minha alma extenuada dormir...





































Anamar

"O CINTO DE CASTIDADE"

Gosto da Clara.

Encerra em si, tudo o que para mim é invejável...
É inteligente, é frontal, é independente, é uma mulher assumida, é desinibida, autêntica (creio).

É o protótipo da mulher-mulher dos tempos actuais, sem precisar de ser feminista. É a mulher desafiadora, corajosa, segura...
Para além de tudo isso, é uma mulher de ciência, investigadora, cientista, culta, estudiosa...e excelente, clara e interessante escritora...

Não bastando este "bouquet" que francamente me fascina, tem uma carinha "laroca" (nada presumida nem "capa de revista"), expressiva, com que completa aquele "boneco", falso "négligé", mas chique e sóbrio...

Caraças...que Deus Nosso Senhor divide tão mal as coisas!!!...

Bom, mas reconhecendo embora tudo isto, e sem lhe estar a fazer qualquer favor ao dizê-lo, não foi o desfiar de loas que aqui me trouxe.
Foi sim, uma breve reflexão suscitada pela crónica por ela escrita num jornal da nossa praça, e que transcrevo na íntegra.

Chamei "Cinto de Castidade" ao pouco que aqui debito, na medida em que acho que se adequa na perfeição à questão que abordo.

Remete-nos a Crónica de CPC, duma forma "soft" porém irónica, às qualidades e aos defeitos dos avanços tecnológicos, nomeadamente informáticos, com que temos que partilhar as nossas existências.

Qualidades e defeitos, facilidades e intromissões, simplificação e controle, cara e coroa na abordagem, no conhecimento, no "espicular" sem pudores, no devassar despudorado e sem permissão das nossas vidas...

Maravilhamo-nos com a capacidade do homem na criação de "máquinas" cada vez mais perfeitas, rápidas, precisas e sofisticadas, tendentes a simplificar-lhe a vida. Contudo, quais "cintos de castidade", tornam-se afinal em algozes do seu criador, expondo-o, tirando-lhe a privacidade a todos os níveis, comprometendo-lhe sigilos, confrontando-o com um atropelo incontrolável, cerceando-lhe os mais elementares direitos à não exposição da sua pessoa e dos seus percursos.

E queiramos quer não, tudo isso se imiscuiu camufladamente e em surdina nas nossas rotinas, tudo isso coabita connosco (não direi em convívio perfeitamente pacífico, mas assimilado e aceite), tudo isso já não "desgruda" da nossa forma de viver, e o pior é que, apesar dos pesares, já não saberíamos viver sem essas "maravilhas" do "século do electrónico", da "era do virtual"...sem o nosso "abençoado cinto de castidade" dissociado das nossas pessoas...



"Os olhos e os ouvidos do Imperador".......



Crónica de CLARA PINTO CORREIA


"Noutro dia liga-me (via kolmi, evidentemente) o meu filho mais velho, com dezasseis anos, que foi de fim de semana alargado com uns amigos para Madrid.
A conversa não fazia grande sentido para mim, mas para ele de certeza que fazia, dada a enorme decalage que existe hoje entre o português e a gramática usados pelos pais e o português e a gramática usados pelos filhos.

- Mãe, o Multibanco que tu me deste não está bom.

- Não está bom como? Tem funcionado perfeitamente desde que saíste de Lisboa.

- Pois, mas agora estou aqui em Madrid, tenho fome, quero comer, preciso de apanhar a camioneta para Lisboa, e ele não está bom. O bonequinho diz que ele não está bom.

- Ó meu grande inconsciente, e tu por acaso não gastaste já todo o dinheiro que eu pus na tua conta?

-Não, mãe. Juro por Deus.

- Deixa lá Deus descansado.
Não pode ser essa caixa de multibanco que está fora de serviço?

-Ó mãe, mas eu já fui esta manhã a bué caixas, já tentei bué cenas, mas isto deixou de funcionar, tens que ver o que é.

- Então e não podes pedir dinheiro emprestado a um dos teus colegas para umas bolachas e um bilhete de camioneta e a gente cá faz contas e eu, entretanto, tranquilamente, vejo o que se passa?

- Oh mãe, eles já estão os dois sem dinheiro. Só eu é que ainda tinha.

Conseguem convencer-nos de tudo, os nossos filhos.
Eu, que tinha planeado ficar calmamente em casa a trabalhar com as janelas todas abertas para fazerem uma saudável corrente de ar, lá me atravessei pelo meio do calor
da tarde para ir à minha agência.
Com tanto azar, nem o gerente nem o meu gerente de conta lá estavam.
Àquela hora, estava só mesmo um rapazinho estagiário colocado ali durante o Verão.

Mas adiante, bolas, que o meu filho precisa de comer e de apanhar a camioneta.

O jovem estagiário faz-me um grande sorriso e eu lá lhe expliquei a situação misteriosa do cartão que de repente deixou de funcionar em Espanha.
O jovem pede-me o nome do miúdo e o número da conta dele, e depois começa a fazer clics com o rato. Às tantas, depois de inspeccionar atentamente uma página de dados, faz um sorriso daqueles mesmo muito malandros.

-Minha senhora, diz ele, o seu filho não está em Madrid. Está em Portimão.

-O quê? Mas ele telefonou-me de Madrid ainda há cerca de meia hora!

-E como é que a senhora sabe que foi mesmo de Madrid que ele telefonou?

-Então, pois se foi o que ele me disse...

E o estagiário,como se fosse ele que tivesse lições para me dar a mim:

-Mas a senhora não pode ser assim tão crédula com filhos adolescentes de dezasseis anos. Olhe bem para isto.

Vira o monitor na minha direcção e aponta para o final de uma das colunas com a ponta da lapiseira.

-Está a ver estas quatro entradas? São todas de hoje de manhã, e, de facto, a última foi há cerca de uma hora. Quatro multibancos diferentes de onde ele tentou levantar dinheiro, todos em Portimão.
Ontem, olhe aqui. Jantou neste restaurante chamado Superpeixe e pagou uma conta que parece claramente de duas pessoas. Isto confirma-se se formos à compra imediatamente anterior, às 19 do mesmo dia, um biquíni brasileiro da loja Poucaroupa. Aliás, bastaria olharmos para as dormidas: duas noites na pensão Oásis, quarto duplo, cama de casal. Ah, e repare no bilhete de camioneta que ele comprou na sexta-feira: está
aqui claramente indicado que é de ida e volta.
E oiça, minha senhora, não se passa nada de errado com o multibanco dele. O rapaz apenas já gastou todo o dinheiro que a senhora lá pôs para ele. Mas tem um bilhete para voltar hoje ao fim da tarde. Se lhe veio com essa conversa, provavelmente é porque ainda quer comprar mais uma prenda de luxo para a namorada antes de se virem embora.

-Qual namorada?

-Então, minha senhora? Cama de casal numa pensão, biquinis brasileiros, jantarinhos para dois...é evidente que o seu menino foi visitar uma namorada a Portimão e lhe contou uma história sobre ir com dois amigos a Madrid!

Bom. Claro que o meu rapaz ouviu ali pela medida grande.
Mas a mim, francamente, o que me incomoda não são estas patetices de manual que os rapazes fazem. O que realmente me incomoda é pensar que, hoje em dia, até um estagiário de um banco, com pouquíssima informação à partida, pode em dez minutos saber precisamente onde estamos, onde estivemos, o que é que fizemos, tirar ilações e fazer juízos de valor. É o lado escuro do admirável mundo novo electrónico, em que todos tendemos a não pensar, mas com o qual todos perdemos completamente a privacidade."

Anamar

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A "CULPA" FOI DO ÓSCAR...



Já aqui não vinha havia dias...
Muita coisa ao mesmo tempo,culminando num problema de saúde meu, agravado por um problema de saúde do Óscar.

O Óscar está comigo há catorze anos...
Veio, contrariando vontades e convicções dos então presentes.
Veio, tinha ainda os olhos bem azuis, pêlos mal nascidos, um rabo de menos de dez centímetros, para um corpo de menos de vinte.
Cabia numa cesta de farnel de escola, era azougado e brincalhão, imparável e curioso e já mordia...com aquilo que prometia ser uma dentadura feroz...

O Óscar veio para ficar...e eu concedi-lhe o "privilégio" de atravessar comigo, períodos determinantes e significativos da minha estória...
Adoptou-me também, à "sua moda".
Adoptou-me ao ponto de nunca se abster de, quando lhe aprazia, me ferrar a unha ou me "trincar" (com o "amor" maior que conseguia), os tornozelos ou a barriga das pernas...

Aprendeu a "conversar" comigo, ou "aprendeu" a ouvir-me e a olhar-me incrédulo, quando só está ele p'ra me ouvir, ou quando só ele pode lamber lágrimas que me escorram pelas faces.
Aí, o seu miado tem um timbre de entendimento ou uma denguice de conforto e carinho.
Ainda assim, o Óscar altivo, independente e individualista perdura, e nem sempre cedeu às expectativas nele colocadas, de "amparo" e afeição...
Só quando queria...gato é assim mesmo...

O Óscar está velho.
O seu "prazo de validade" está a esgotar-se, com a rapidez com que perde as suas capacidades.
Olha para o alto do armário onde dormiu belas sestas e para onde saltava, atravessando em voo a cozinha, desde o cimo do frigorífico, na parede oposta.
Olha, mas já não experimenta sequer tentá-lo...
Olha, mas já o não divisa bem, pelo meio das cataratas que lhe afectam os olhos, agora amendoados...

Não faria por certo, recuar como há anos, um pastor alemão que lhe surgiu inesperado.
Não treparia ao alto dos pinheiros ou "compraria" brigas com gatos inteiros, pelo meio dos pinhais...

O Óscar ficou doente, muito doente, imprevisivel e injustamente doente.
Devia saber que não tinha nada que fechar "para obras"...muito menos equacionar bater em retirada...Logo ele, que nunca foi disso, nem conheceu medo ou cobardia...

Foi intervencionado, numa operação que tinha tudo para poder ser fatal, até porque o coração também não está a querer ajudá-lo...
Bem conversei com ele na véspera e lhe expliquei ao ouvido, que agora é que tinha que ser valente...que agora é que tinha que ser campeão...que não podia "ir-se embora", assim, sem mais nem menos, e deixar esta casa ainda mais vazia...
Não seria coisa de Óscar, mas sim de um "cobardolas" que eu sei que ele nunca foi...

O meu sono desarranjou-se todo...o meu estômago também...quase uma semana a água e chá preto...
Mas o Óscar foi e veio daquela mesa de operações; e tendo embora uma sutura de mais de vinte pontos, e não tendo este tumor, mas podendo dele ter mais metástases no corpo, portou-se de acordo com o seu estilo...não capitulou, não deu confiança à desgraça, não defraudou a minha expectativa, não gorou a minha confiança...
O Óscar está velho...não justifica o investimento em tratamentos mais agressivos...mas ainda é o Óscar!

As eleições americanas decorreram entretanto.
Obama felizmente venceu-as...
" É jovem", "é garboso", "é bem apessoado", "atlético", "está cheio de ideias e capacidades"...
"Simboliza a renovação contra a estagnação", "é capaz"..."pode"...
Tudo isto foi dito e repetido até à exaustão. Isto foi pedra de toque na análise da sua figura.
Concordo também...como não?!...
Ser jovem é que é vendável... Ser jovem, é só por si, meio garante de capacidade, possibilidade, conhecimento, poder...futuro!
Ser jovem é ser bonito, "elástico", "bem-cheiroso"...

Fala-se na experiência de vida, na maturidade, no "know-how"...
Fala-se da sabedoria, da acumulação de aprendizagens e conhecimentos (dados por uma vida vivida), dos velhos...ou dos "menos jovens"...

Uma pinóia!...

Ser velho, é o passaporte para o afastamento da sociedade, para a marginalização aos diferentes níveis (pessoal, familiar, profissional, social).
É um bilhete de segregação ou ostracização passado pelo mundo.
É um atestado de desvalorização, um semáforo alertando à complacência, ao "encolher de ombros", ao descaso dos demais...porque, afinal, esse indivíduo (que até foi "bom", até foi capaz, até deu provas, até deu a sua prestação válida...)ficou velho...aproximou-se do "fim do prazo".
Tornou-se "invisível"(quase sempre), passou a "incomodar" quando resolve pensar que ainda é novo, "estorva" se acha que ainda tem "lugar", "cansa" quando repete dez vezes as mesmas coisas, fica "impertinente", "ridículo", se se concede "direitos" atribuíveis aos novos.

As duas fases da vida...

Na primeira, ganha-se, conquista-se, pode-se, rema-se contra ventos e marés implacáveis.
Na primeira, tudo ou quase tudo se adquire... a família, os amigos, os êxitos, os amores, os sonhos, os creres...
Na primeira, é-se belo, escorreito, perspicaz, inteligente, sagaz, lutador...
mas também reconhecido, valorizado, desejado...aceite e solicitado...

Na segunda, tudo ou quase tudo nos escapa das mãos...
Os pais deixam-nos órfãos, os familiares vão indo, os filhos partem à vida, os amores, na grande generalidade fazem malas, porque nunca são p'ra vida inteira...as realizações pessoais passam p'ra gaveta das recordações, os "vinis" que não acompanharam as tecnologias, bafiam nas prateleiras, os sonhos que não realizámos remetem-se à galeria de tudo o que não chegou a ser...as fotografias com que nos "embrulhamos" em desespero, nunca mais trazem o que com elas queríamos reacordar...
Só os livros nos são fiéis, porque as letras ficam lá, mas nem a forma com que os dissecamos é a mesma, porque os nossos olhos também não...
Até o sol parece estar sempre a descer no nosso horizonte...

E a injustiça é de tal monta, que até os Óscares das nossas vidas (se nos apanham distraídos), resolvem tentar desertar!!...

Anamar