sábado, 8 de novembro de 2008

"O CINTO DE CASTIDADE"

Gosto da Clara.

Encerra em si, tudo o que para mim é invejável...
É inteligente, é frontal, é independente, é uma mulher assumida, é desinibida, autêntica (creio).

É o protótipo da mulher-mulher dos tempos actuais, sem precisar de ser feminista. É a mulher desafiadora, corajosa, segura...
Para além de tudo isso, é uma mulher de ciência, investigadora, cientista, culta, estudiosa...e excelente, clara e interessante escritora...

Não bastando este "bouquet" que francamente me fascina, tem uma carinha "laroca" (nada presumida nem "capa de revista"), expressiva, com que completa aquele "boneco", falso "négligé", mas chique e sóbrio...

Caraças...que Deus Nosso Senhor divide tão mal as coisas!!!...

Bom, mas reconhecendo embora tudo isto, e sem lhe estar a fazer qualquer favor ao dizê-lo, não foi o desfiar de loas que aqui me trouxe.
Foi sim, uma breve reflexão suscitada pela crónica por ela escrita num jornal da nossa praça, e que transcrevo na íntegra.

Chamei "Cinto de Castidade" ao pouco que aqui debito, na medida em que acho que se adequa na perfeição à questão que abordo.

Remete-nos a Crónica de CPC, duma forma "soft" porém irónica, às qualidades e aos defeitos dos avanços tecnológicos, nomeadamente informáticos, com que temos que partilhar as nossas existências.

Qualidades e defeitos, facilidades e intromissões, simplificação e controle, cara e coroa na abordagem, no conhecimento, no "espicular" sem pudores, no devassar despudorado e sem permissão das nossas vidas...

Maravilhamo-nos com a capacidade do homem na criação de "máquinas" cada vez mais perfeitas, rápidas, precisas e sofisticadas, tendentes a simplificar-lhe a vida. Contudo, quais "cintos de castidade", tornam-se afinal em algozes do seu criador, expondo-o, tirando-lhe a privacidade a todos os níveis, comprometendo-lhe sigilos, confrontando-o com um atropelo incontrolável, cerceando-lhe os mais elementares direitos à não exposição da sua pessoa e dos seus percursos.

E queiramos quer não, tudo isso se imiscuiu camufladamente e em surdina nas nossas rotinas, tudo isso coabita connosco (não direi em convívio perfeitamente pacífico, mas assimilado e aceite), tudo isso já não "desgruda" da nossa forma de viver, e o pior é que, apesar dos pesares, já não saberíamos viver sem essas "maravilhas" do "século do electrónico", da "era do virtual"...sem o nosso "abençoado cinto de castidade" dissociado das nossas pessoas...



"Os olhos e os ouvidos do Imperador".......



Crónica de CLARA PINTO CORREIA


"Noutro dia liga-me (via kolmi, evidentemente) o meu filho mais velho, com dezasseis anos, que foi de fim de semana alargado com uns amigos para Madrid.
A conversa não fazia grande sentido para mim, mas para ele de certeza que fazia, dada a enorme decalage que existe hoje entre o português e a gramática usados pelos pais e o português e a gramática usados pelos filhos.

- Mãe, o Multibanco que tu me deste não está bom.

- Não está bom como? Tem funcionado perfeitamente desde que saíste de Lisboa.

- Pois, mas agora estou aqui em Madrid, tenho fome, quero comer, preciso de apanhar a camioneta para Lisboa, e ele não está bom. O bonequinho diz que ele não está bom.

- Ó meu grande inconsciente, e tu por acaso não gastaste já todo o dinheiro que eu pus na tua conta?

-Não, mãe. Juro por Deus.

- Deixa lá Deus descansado.
Não pode ser essa caixa de multibanco que está fora de serviço?

-Ó mãe, mas eu já fui esta manhã a bué caixas, já tentei bué cenas, mas isto deixou de funcionar, tens que ver o que é.

- Então e não podes pedir dinheiro emprestado a um dos teus colegas para umas bolachas e um bilhete de camioneta e a gente cá faz contas e eu, entretanto, tranquilamente, vejo o que se passa?

- Oh mãe, eles já estão os dois sem dinheiro. Só eu é que ainda tinha.

Conseguem convencer-nos de tudo, os nossos filhos.
Eu, que tinha planeado ficar calmamente em casa a trabalhar com as janelas todas abertas para fazerem uma saudável corrente de ar, lá me atravessei pelo meio do calor
da tarde para ir à minha agência.
Com tanto azar, nem o gerente nem o meu gerente de conta lá estavam.
Àquela hora, estava só mesmo um rapazinho estagiário colocado ali durante o Verão.

Mas adiante, bolas, que o meu filho precisa de comer e de apanhar a camioneta.

O jovem estagiário faz-me um grande sorriso e eu lá lhe expliquei a situação misteriosa do cartão que de repente deixou de funcionar em Espanha.
O jovem pede-me o nome do miúdo e o número da conta dele, e depois começa a fazer clics com o rato. Às tantas, depois de inspeccionar atentamente uma página de dados, faz um sorriso daqueles mesmo muito malandros.

-Minha senhora, diz ele, o seu filho não está em Madrid. Está em Portimão.

-O quê? Mas ele telefonou-me de Madrid ainda há cerca de meia hora!

-E como é que a senhora sabe que foi mesmo de Madrid que ele telefonou?

-Então, pois se foi o que ele me disse...

E o estagiário,como se fosse ele que tivesse lições para me dar a mim:

-Mas a senhora não pode ser assim tão crédula com filhos adolescentes de dezasseis anos. Olhe bem para isto.

Vira o monitor na minha direcção e aponta para o final de uma das colunas com a ponta da lapiseira.

-Está a ver estas quatro entradas? São todas de hoje de manhã, e, de facto, a última foi há cerca de uma hora. Quatro multibancos diferentes de onde ele tentou levantar dinheiro, todos em Portimão.
Ontem, olhe aqui. Jantou neste restaurante chamado Superpeixe e pagou uma conta que parece claramente de duas pessoas. Isto confirma-se se formos à compra imediatamente anterior, às 19 do mesmo dia, um biquíni brasileiro da loja Poucaroupa. Aliás, bastaria olharmos para as dormidas: duas noites na pensão Oásis, quarto duplo, cama de casal. Ah, e repare no bilhete de camioneta que ele comprou na sexta-feira: está
aqui claramente indicado que é de ida e volta.
E oiça, minha senhora, não se passa nada de errado com o multibanco dele. O rapaz apenas já gastou todo o dinheiro que a senhora lá pôs para ele. Mas tem um bilhete para voltar hoje ao fim da tarde. Se lhe veio com essa conversa, provavelmente é porque ainda quer comprar mais uma prenda de luxo para a namorada antes de se virem embora.

-Qual namorada?

-Então, minha senhora? Cama de casal numa pensão, biquinis brasileiros, jantarinhos para dois...é evidente que o seu menino foi visitar uma namorada a Portimão e lhe contou uma história sobre ir com dois amigos a Madrid!

Bom. Claro que o meu rapaz ouviu ali pela medida grande.
Mas a mim, francamente, o que me incomoda não são estas patetices de manual que os rapazes fazem. O que realmente me incomoda é pensar que, hoje em dia, até um estagiário de um banco, com pouquíssima informação à partida, pode em dez minutos saber precisamente onde estamos, onde estivemos, o que é que fizemos, tirar ilações e fazer juízos de valor. É o lado escuro do admirável mundo novo electrónico, em que todos tendemos a não pensar, mas com o qual todos perdemos completamente a privacidade."

Anamar

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