domingo, 21 de agosto de 2022

" QUINZE ANOS NÃO É COISA POUCA ... "

Hoje é mais uma data especial.  O Kiko completa os seus quinze anos !

Já muito escrevi sobre o Kiko, o terceiro irmão de uma equipa espaçada de três em três anos.
Quer isso dizer que a Vitória acendeu dezoito velinhas, o António vinte e uma e o Kiko então, as tais quinze que referi.
Assim, 2022 é o ano em que todos eles completaram datas importantes nas suas vidas, datas carismáticas e seguramente inesquecíveis.  Teria sido engraçado que a mãe tivesse completado o meio século ... mas não, ainda lhe falta um ano.

Ouso afirmar que sobre o Kiko já disse tudo, ano após ano, quando chega este vinte de Agosto e de longe o parabenizo.  Pois é sina ... caindo em época de férias fora de Lisboa, nunca festejo com eles estas efemérides.
E mesmo com o transcurso do tempo, aquilo que distingue o Kiko de hoje do Kiko de há já largos anos atrás, respeita apenas às alterações físicas inerentes à adolescência instalada.
Cresceu imenso no espaço de um ano apenas, encorpou como costumamos dizer, ganhou músculos que começam a definir-se, e espanto meu  ( não sei porquê, afinal ), a voz começou inevitavelmente a mudar !
Engraçado que tive exactamente a mesma surpresa quando foi a vez do António.  Ontem, à meia noite, quando o dia vinte abriu a pestana, lá estou eu a telefonar, para lhe dar o meu primeiro beijinho de felicitações.  Sempre  tenho  esta  mania  com  todos  eles ... fazer  o  quê ?!... 😂😂
E lá me apareceu o Kiko com respeitosa voz de homem ... ihihih
Levo  sempre  um  soco  no  estômago,  pois  é  então  que  a  realidade  nua  e  crua  me cai  à  frente :  o tempo já passou, depressa demais, e os putos já são gente grande a fazer-se à estrada !
Esta inevitabilidade da vida, este retrocesso impossível dos anos sempre me deixam então nostálgica, apreensiva e balançada ...
Mas nada a fazer.  Haja saúde, paz, alegria ... que a vida se faça mansa, que os sonhos e os projectos se vão concretizando, que os esforços desenvolvidos vão valendo a pena e que por aqui vamos estando, os que por aqui têm a sorte de ainda estar, pois mesmo um pouco afastados, nunca verdadeiramente o estamos no coração uns dos outros !

De resto, o Kiko continua a ser aquele miúdo feliz, alegre, sempre sorridente e bem disposto, aquele puto desinibido, resolvido e rodeado de um clube de amigos de todas as faixas etárias ... aquele que exprime um carinho e uma preocupação muito especiais comigo, que o levam a envolver-me no seu abraço enquanto me pergunta : " E a avó como está ?"

O Kiko vai iniciar o décimo ano e escolheu a área da Economia.  Brinquei com ele ontem, exortando-o a estudar muito, bem e depressa, pois careço de um gestor financeiro à altura, para endireitar os meus  inexistentes aforros ... 😁😁
Soltou uma gargalhada ... "pois é, a avó anda sempre em viagem !"...

Este, é o Kiko !

Anamar

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

" O SOL QUE ME FALTA ..."


 

Escrevo muito pouco, muito menos e  muito pior .  E sei exactamente o porquê disso.

Percebo-o claramente, quando me leio há anos recuados.
Não que eu não tenha o que dizer, não que eu tenha deixado exactamente de "sentir", não que eu desvalorize as minhas ideias ... Que, contudo, sempre foram muito mais direccionadas para o sonho, para a utopia, para as construções imaginárias criadas dentro de mim do que para a dureza da vida real, verdade seja ( essa, bastava-me olhá-la, afinal ... porque estava sempre ali à minha volta, se para lá eu  desviasse os olhos ... )
Talvez assim fosse, por defesa, talvez como necessidade, talvez simplesmente por pureza de alma.

É que, e essa a diferença abissal entre o que era e o que é, a minha disponibilidade para a emoção tem vindo a embotar-se com o transcurso da vida.  A minha capacidade de sonhar, de pintalgar a realidade com as cores generosas de outros tempos, entrou em franco declínio, como se a minha "caixa de aguarelas" tivesse secado.
A minha necessidade permanente de paixão e deslumbramento pelo que me rodeia, está asténica, carece de vitaminas no espírito e no coração ... e o amorfismo que caracteriza hoje a minha visão da vida, o cinzentismo até com que avalio o que me cerca,  retira-me a capacidade, a vontade e até a aposta de pôr no papel o tanto com que dantes eu lotava a alma ... Como se o clímax orgástico da escrita me tivesse abandonado !
Como se a minha ingenuidade de criança, aquela capacidade fantástica com que conseguimos tão facilmente abraçar o mundo na concha do nosso peito, se tivessem extinguido.  Como se a bonomia e a fé com que olhava as coisas, os espaços, os outros, tivessem estiolado e morrido inevitavelmente, como terreno devastado pelo fogo.

Sinto uma "falta de espaço interior", um vazio ( não sei se consigo traduzir fielmente o que isto seja ), uma falta de compaixão, de tolerância, um excesso de indiferença e um desaprendizado do enamoramento, do êxtase, e da aposta necessários à vida.
Não sei se existe um desencantamento objectivo, uma desilusão perante o caminho que percorro.  Não creio ser  propriamente consequência de insucessos, tropeços ou decepções, este meu estado de espírito.  Não são cicatrizes re-inflamadas, ou maleitas crónicas, não sei se é impaciência ou até egoísmo, talvez. Não creio que sejam problemas mal ou incompletamente resolvidos, embora afinal todos carreguemos um pouco disso mesmo, fruto dos destinos.  Não sei se é um cepticismo ou uma desaposta, como se já não valesse muito a pena enfrentar esta roda dentada e voraz que dia a dia nos vai engolindo.  
Não sei se aceite que é simplesmente a inevitabilidade do envelhecimento ... Será ??!!

A garra, a inconsequência, a gaiatice ... a irreverência, o atrevimento, a coragem ... o desafio e a força de agarrar a vida pelos cornos, sabendo que essa era a nossa escolha ... o meter a cara, o saltar a baia, o pular do rochedo  ( mesmo que de olhos fechados ) ... a utopia em suma, o seguir em frente achando que vale a pena, lutando para que valha a pena ... parecem ter-se perdido no tempo, sucumbido ao acomodamento dos anos ... a um cansaço que por vezes julgo absurdo.
E são determinantes da vida.  E são o oxigènio para se continuar respirando.  E são a poção mágica para se conseguir ainda manter o emaravilhamento, a força p'ra começar o dia por cada dia que amanhece, a receita pra se perceber o real valor de se estar vivo.
É essa lufada de esperança, esse sopro vital, esse cocktail vitamínico  ... essa chama de vela bruxuleante que parecem ter-me abandonado e deixado à minha sorte ...
E sinto uma raiva, uma fúria e um desgosto por não conseguir sacudir as penas e voar de novo, como aquela ave que se refrescou numa poça de chuva ... como se o afundamento no lodo sôfrego dum pântano fosse inevitável e me sorvesse para o seu interior sem que eu resista ... ou como se a cerração das "nieblas" fosse a armadilha que a vida me deixou na curva da estrada ... 

E não escrevo ... escrevo pouco e muito pior ...

Talvez se trate simplesmente de não possuir em mim a convicção de Picasso, a força anímica e o virtuosismo dos génios e sonhadores ... e me tenha remetido simplesmente à vulgar, comum e insípida "mancha amarela" !...
 


Anamar

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

" O TAL SÓTÃO ... "




Sensação estranha.  Muito estranha mesmo.  Uma sensação de circular por um espaço abandonado, escuro, desactivado, em que a poeira, a ausência de luz, a falta de circulação abundante de ar, o remete a um espaço meio moribundo.
Parece-me ter devassado um ambiente sonolento, ter entrado num sótão, numa cave, numa arrecadação pardacenta, bafienta e húmida ...

Tudo isto porquê ... pergunto-me ?  Porque experimento, aparentemente do nada, este surpreendente estado de alma ?
Percebo que uma série de coincidências ou situações meio paralelas convergiram para me fazer sentir assim :
uma amiga de há algum /razoável tempo, sem que contudo sejamos de contacto absolutamente estreito, "desapareceu-me" dos radares, inexplicavelmente, eliminando todas as tentativas de contacto através dos dois únicos números telefónicos que possuo, o dela própria e o da filha.  Não sei morada nem outra forma de aproximação, além da que tem funcionado entre nós.
O telefone estabelece a ligação, assume um estado de linha ocupada e desliga-se subitamente.
Trata-se duma pessoa com uma saúde frágil, sobretudo a mental, o que me acresce uma maior inquietação ainda ...

Também de uma familiar, aliás a única familiar que ainda tenho no Alentejo, já bem idosa e paciente de Alzheimer, nada sei, faz imenso tempo.  Sempre fomos como irmãs, no bem-querer.  Relações complicadas criadas por um filho, pessoa muito mal formada e inqualificável, inviabilizaram praticamente a comunicação existente.
A doença que lhe retirou toda e qualquer possibilidade de autonomia, cavou, por outro lado, um fosso inultrapassável e injusto entre nós as duas.  Assim, infrutíferas são as tentativas de contacto.  
Parece que já se fechou portanto também, a porta daquele lado ...

Hoje confrontei-me, como toda a gente, pela notícia do falecimento do Jô Soares. 
Vale o que vale, não era nada meu, nunca o vi sequer ao vivo e a cores ... contudo, este êxodo de figuras públicas que por isso, são sempre um pouco "nossas",  dado que atravessaram connosco uma época à qual também pertencemos, sempre me deixa com uma sensação desconfortável de orfandade.
Fizeram parte das nossas histórias, povoaram o nosso quotidiano, emolduraram duma ou de outra forma, as nossas realidades.  Habituámo-nos ao seu convívio ... e já foram tantas !!!
Por isso, parece que foi só mais um que fechou a porta e arrepiou caminho também ele ... apenas antecipando-se ... nada mais ...

Há pouco resolvi percorrer este meu espaço, acedendo a outros blogues e a outros conteúdos que de quando em vez gostava de seguir, em tempos idos.
Nada de muito exaustivo ... cinco ou seis blogues cuja leitura e conteúdos apreciava.
Pois bem, todos eles exibiam postagens que remontam a mais de cinco anos atrás ...
Não mais voltaram a ser mexidos !
A Covid rebentou de facto com tudo, e esta sensação de abandono reflecte bem o desinvestimento e a desmotivação dos seus autores.
De alguma forma, este é o sentimento que gradualmente tenho vindo a auscultar em mim própria, o que aliás se reflecte no tão pouco escrito nos últimos tempos.
Um dia destes, pressinto que encerrarei definitivamente o espaço que me acompanha há já catorze anos.

Relatei quatro situações que não sendo coincidentes me transmitem o mesmo tipo de sentimentos.  Uma sensação de portas a serem fechadas, uma sensação de ampulhetas a esvaziarem-se nas vidas, de silêncios e dormências a instalarem-se, de estradas com fim de linha a  chegarem-se mais e mais ...
Uma sensação de já não pertencer integralmente a isto por aqui, de o prato da balança  já  pesar  mais daquele  lado  que  deste ... de  qualquer  dia  já  ser  quase  somente  uma  estranha !...
Um desconforto de já não entender bem os valores, não saber já os códigos ou os requisitos p'ra viver com satisfação.  Um não saber já descodificar as linguagens e entender os sinais que me cercam ... Uma ausência crescente de sensação de pertença por cá ...
Uma falta de oxigénio, do "meu" oxigénio que me permita inspirar até bem ao fundo ...

E daí o cansaço, o desinteresse, a imperícia para viver dia após dia, como se na verdade eu esteja a mexer-me apenas no limbo de uma fronteira hermética e cerrada ...

Anamar

sexta-feira, 29 de julho de 2022

" RETALHOS DE PENSAMENTOS AVULSOS "



 Aqui por cima passa um avião.  Ruma ao aeroporto, já baixou o trem de aterragem e voa com a inclinação de quem perde lentamente altura, necessária para um poiso em segurança.

Estamos naquela parte da viagem em que me colo ao banco, que de costas direitas de acordo com as directrizes do comandante, se mantém vertical, normalmente já fecho os olhos, engulo em seco para desbloquear o efeito da pressão nos ouvidos e me agarro aos braços do assento, como se ali estivesse a minha "salvação" ...
Tenho pavor de avião, sofro desalmadamente quando as viagens se aproximam, mas tento racionalizar e obrigo-me a elas.  Porque, vendo bem, se assim não fosse, com as fobias que dei em inventar, à medida que vou envelhecendo, não arredaria pé da minha zona de conforto ... de que levo a vida a queixar-me, aliás !...  Incoerências do ser humano , quase sempre inexplicáveis !  
Afinal, estas coisas do domínio do psíquico quase nunca se entendem !
Mas pronto... ainda assim, sempre que um avião passa, espicho os olhos lá para cima, e eu, que acabei de chegar duma viagem longa e exigente, já seguiria com ele, fosse lá para onde fosse ...

Entretanto cheguei e adoeci com uma virose qualquer, manhosa, vulgo constipação de Verão.  Não tem cedido a umas coisitas que tomei, já melhorou, voltou a piorar.  Nada de maior, eu diria, apenas e isso é o que mais me incomoda, uma falta de energia atroz.  Não tenho febre, já fiz três testes rápidos da Covid, na expectativa de arranjar finalmente um nome pra esta coisa irritante que me incomoda, mas nada.  De Covid, nem sombra, portanto além de levar a vida a assoar-me, coisa que não lembro acontecer-me há infinitos anos, é este arrastar-me mesmo para as coisas mais elementares, que me tolhe.
Tudo é um esforço acrescido e só deitada ou sentada à fresca, é que me sinto no "céu" !

Será preguiça ? - interrogo-me.  Comodismo ?  Desculpas ... uma dose de uma espécie de justificativas pessoais pra me "safar" do que não me apetece ?  Será ??
Não pode ser só isso !
É verdade que um dos meus maiores defeitos é mesmo a preguiça, e uma submissão cómoda às rotinas confortáveis também me agrada muito.  Mas a falta de energia é real e objectiva, bolas!  
Aguardo melhores tempos, portanto.

Por aqui os dias seguem adiante sem um pingo de novidade. A rotina pura e dura re-instalou-se depressa.  As caminhadas estão em fase de reassunção, embora a fogo lento, pois representam um esforço acima do que estou a conseguir.  O calor, não ajuda, e esse está em plena época.
Aqui no meu prédio morreu entretanto uma vizinha de cento e quatro anos, a viver connosco há muitos e muitos.  Não era uma senhora de convívio diário, obviamente, até pela diferença de idades, mas fazia parte tacitamente do rol de vizinhos que aqui coabita desde o início do prédio.  E já vão sendo poucos os resistentes. 
E tudo continua indiferentemente igual.  O dia é de sol, de céu limpo, é mais um Julho em declínio, um ano a precipitar-se inexoravelmente em passadas de gigante para o seu fim ...

O tempo escoa-se.  Pouco estou com os meus.  Nunca há tempo.  As conversas adiam-se e requentam, as coisas perdem oportunidade.
A Teresa cresce. Qualquer dia percebê-la-ei já com ar de "rapariguinha", e perguntar-me-ei como não dei por isso ...
O António ... pasmo sempre, não sei porquê, onde foi buscar aquele ar e aquela voz grave de homem feito ?...
Usava fraldas ontem ...
A Vitória, de namorado oficial a tira-colo, com quem passeia pra cima e pra baixo assumidamente, com quem faz férias em Madrid e na casa do Algarve ... ficou portanto uma mulher ao completar os dezoito anos, parece ...
E até o Kiko perdeu já aquela inocência de miudinho.  Inevitavelmente faz-se ao futuro ...
Os tempos de convivermos proximamente, foram.  Os interesses diversificaram e o "figurino" familiar nunca permitiu uma aproximação gratificante.  
Hoje, encarno apenas a figura oficial da avó, tenho a certeza.  Existe um formalismo estranho entre nós, as conversas não deslancham, os assuntos não pingam.  Tornámo-nos todos meio estranhos uns dos outros.  Sou aquela a quem se telefona no "Dia dos Avós", invenção dos tempos actuais ... ou para me agradecerem um pequeno agrado trazido de fora, e mesmo assim, tenho a certeza que por detrás da ideia está a mãe, que tem que "mostrar serviço" ...

Enfim, um dia, como a D.Maria de Lurdes ( e muito antes dos cento e quatro anos ), também com sol,  chuva ou mesmo nevoeiro ... que importa ... seguirei adiante.  Afinal, morremos todos os dias um bocadinho, desde que nascemos ... e tudo continuará indiferentemente igual ... 
E a seguir a uma Primavera um Verão chegará, depois um Outono e por aí fora.  Os que ficam também vão indo, e a memória, a lembrança, a presença ... a imagem dos que vão, esbate-se, descolora e desvanece-se no nevoeiro das lembranças ...
E tudo se esquece, e tudo perde a definição e o sentido ... rosto de pai, de mãe, de amores e amigos ... É apenas uma questão de tempo !

Bom ... melhor ficar por aqui.  Isto, esta escrita sem norte ou rumo já está a descambar para o lado lunar da vida, e isso não é bom !

Fiquem bem e sejam felizes, aqui e agora !...

Anamar

sexta-feira, 22 de julho de 2022

" LÁ LONGE ONDE O SOL AQUECE MAIS ... ÁFRICA "

 


Falar sobre a Namíbia, descrever a Namíbia é manifestamente uma missão impossível.
Gostaria de o fazer, pensei mesmo ser capaz, mas não sou !  E não sou porque tudo o que eu conseguisse pôr no papel não passaria de uma descrição pobre, desajustada, descolorida e embaciada do que é aquela terra ! 
As sensações foram tantas, as emoções tão estonteantes, o cúmulo de beleza, de surpresa, de sonho e fascínio, tão poderoso, que me sinto entupida e incapaz de verter sequer um pingo de tudo o que me atola o coração e a mente ...

Acordei hoje a pensar que me falta o canto da passarada.
Não me falta a voz humana ... Essa, perturba-me e incomoda-me vezes de mais.
Acordei a pensar que me falta o sussurro do vento varrendo as dunas sem piedade, e moldando-as ao sabor dos milénios.
Acordei a pensar que me falta reouvir o bater das ondas tempestuosas na Costa dos Esqueletos, onde os barcos perdidos, naufragados ao correr do destino, dormem silenciosamente em história de eternidade ... Onde a espuma adorna o areal deserto, em rendilhado que ora se faz ora se desfaz, encenando imagens oníricas entremeio à bruma densa e misteriosa ...
Acordei a pensar que me falta o afago doce de pores de sol vermelhos, ou mesmo roxos, ou azulados, recortando a negro os perfis esfíngicos de árvores perfiladas, parecendo sentinelas na paisagem ...
E olhar o céu, completamente escurecido, enfeitado por uma poalha estelar, tão clara e brilhante como não vi céu nenhum em outro lugar ... 
E o Cruzeiro do Sul e Centauro, vigilantes ... ou mesmo uma lua cheia, a primeira super-lua de 2022, a Lua dos Cervos,  que escolheu viajar comigo até à Namíbia ... 

Hoje acordei a pensar que o vermelho daquela terra de África, um continente incendiado por um sol que quando brilha é quente de verdade, não descolou da minha retina, e que os sons da mata também não silenciaram nos meus ouvidos ...
As dunas impermanentes numa terra de areia que o vento rodopia à passagem, ou as rochas brutas e agressivas que se erguem numa terra de ninguém em grandes escarpas ou cordilheiras a mais de mil metros de altura, impressionam pela traça sinuosa, formando os canyons e os vales profundos. 
E porque tudo se revela numa natureza contrastante nesta terra, a planície deserta até onde a vista pode alcançar, garante que não há horizonte que a detenha.  
Às vezes, a miragem de uma linha de água ou dum charco desenhado, lá longe, far-nos-ia acreditar piamente assim o ser.  Engano!  Não passa disso mesmo ... uma miragem, em que a luz do sol, uma vez mais pinta até o que não existe, numa aguarela em três dimensões ...

E os bichos por ali andam.  
No Parque Nacional Etosha, as aves, os grandes e os pequenos mamíferos, carnívoros e herbívoros que não cansam do capim ou de folhas verdes de árvores tenras, dormem nas sombras de acácias meio despidas, ou buscam os charcos que ainda não tenham secado.
Aí, ao cair da tarde, ou ao romper do dia, se faz o ponto de encontro de gazelas, impalas, órixes, girafas, zebras, springboks, antílopes, gnus, kudus, hienas, chacais entre outros ... mas também os almejados " Big five", os cinco maiores animais da savana, estrelas fotográficas para quem adora a vida selvagem e a fotografia que a documente : leopardo, elefante, búfalo. rinoceronte e leão.
Só este, não conseguimos visualizar ...

Hoje acordei com o deserto do Namibe a dançar-me à frente dos olhos, com as areias infindas, planas ou onduladas, em que o "polvo do deserto" se espreguiça sem contenção.  
A welvichia mirabilis, com a sua longevidade absoluta ( existe desde o tempo dos dinossauros ), atravessa séculos, milénios, desafiando a eternidade.  
Espraiada nas areias, com duas únicas folhas anuais que podem atingir mais de dois metros, parece adormecida e vive do orvalho que consegue absorver pelas folhas.  É uma eremita espreguiçada ao sol inclemente ...
Só a título de curiosidade, o Rugby muito popular na Namíbia sobretudo entre a sua população branca, tem os seus jogadores apelidados de "Welwitschias" .

O deserto, haveria de olhá-lo percorrendo-o areias fora, subindo e descendo dunas, enterrando e desenterrando os todo o terreno, mas haveria de vê-lo também, num sobrevoo inesquecível.
Toda a sua geografia vista do alto, disseca um corpo vetusto percorrido pelas veias secas de linhas de água que podem quase nunca chegar ao mar ...
O por de sol a bordo do pequeno avião seria igualmente indescritível !

E houve a colónia de focas no Naukluft Park, e o Cape Cross  ou Cabo da Cruz onde a presença portuguesa deixada por Diogo Cão ( século XV ) se testemunha pelo padrão aí colocado ... houve a travessia simbólica do Trópico de Capricórnio,  e a visita a um assentamento de uma tribo Hereró ( uma das tribos existentes no país, tal como os Himbas e os Damara ) onde se comercializavam, à beira da estrada,  os produtos artesanais confeccionados pelas mulheres ... 
Houve também o Lago Oanob, zona de lazer,  rodeado pelas mansões dos magnatas dos diamantes, e ainda o Museu a céu aberto de inscrições rupestres, num fenómeno arqueológico com cerca de 2000 anos, em Twyfelfontein, na região do Kunene.  
Contabilizando perto de 2500 representações, é por isso uma das maiores concentrações de desenhos da África.  
Relatam extensivamente práticas rituais e da vida das comunidades caçadoras-recolectoras que na época habitavam essa região.
Gravadas e desenhadas nas rochas, ilustram rinocerontes, elefantes, girafas e avestruzes, além de pegadas humanas e de animais.  O leão também está representado magnificamente!
Vestígios arqueológicos ainda aí encontrados, mostram que na região, a presença humana data à Idade da Pedra, por volta de 6000 anos atrás.

Bom ... como se vê, falar sobre a Namíbia, descrever a Namíbia é manifestamente uma missão impossível!...
Gostaria, contudo, de vos ter dado uma insignificante aproximação.

A mim, falta-me o canto da passarada na savana e o silêncio deixado lá atrás.  Falta-me ainda a música de roda em noite fria em torno duma fogueira, com o céu de negritude absoluta, iluminado apenas pelas chispas das chamas espevitadas pela aragem da noite ... que jamais esquecerei !...




Anamar

terça-feira, 19 de julho de 2022

" REGRESSO ÀS ORIGENS ..."


6,50 h de 18 de Julho 2022, aeroporto de Frankfurt, local de escala entre a Namíbia donde cheguei e Portugal, onde chegarei.
Dia de céu limpo, azul e sol ainda tímido pelo despautério da hora.  Por isso ... sono muito,  depois de dez horas a bordo, num simulacro de noite medianamente dormida.
Estou num dos espaços de restauração do aeroporto.  Café precisa-se, e como tal, com tanto tempo de sobra entre os voos, usufruo a paz de mais de três horas de pausa, sem pressas.
À minha volta, neste espaço lotado de passageiros em trânsito, com uma música de fundo insuportável para a minha necessidade absoluta de silêncio, os telemóveis ocupam as mãos, os olhos e as mentes.  Lamentavelmente não há uma só alma que os tenha dispensado !

Namíbia ... pois ... 
Muitos acessos de vontade tive, de escrever sobre ...
Só que, verdadeiros momentos de paragem e lazer por conta própria, são coisa inexistente nestas viagens de grupo, em que as actividades programadas para cada dia, visam rentabilizar exactamente esses mesmos dias.
Por isso, fui absorvendo, arquivando, gravando o tanto de sensações e emoções que tudo o que o vivenciei me deixou no coração e na alma, se é que estes dois lugares realmente existem no ser humano...

A Namíbia foi, sem dúvida, o lugar perdido no planeta Terra onde a noção de infinitude se me tornou absolutamente clara e impressiva.  
Lá, terra sem limites ou horizontes, tudo se mede em milhões de anos e em distâncias incontáveis.
Lá, a beleza é tão excessiva que perturba, a liberdade tão avassaladora que embriaga, o sonho que se obriga a sonhar, sem tamanho ou dimensão ...

África é, sem discussão, um continente absolutamente carismático.
Não há outro lugar no mundo onde as cores sejam tão intensas, os cheiros tão absolutos, a luz tão inebriante e o silêncio, a interioridade e o intimismo tão imperativos.
O calor emanado do vermelho sanguíneo da terra que ora se pinta de ocre, de castanho ou mesmo de negro de acordo com a luz que a inunda, a primitividade e autenticidade da savana imemorial, a doçura da sombra das acácias onde os animais selvagens se acoitam em sono de sesta ... a paisagem que ora é e ora não é, numa impermanência total mas numa consonância e perfeição tão determinadas, mostram ao ser humano a sua real dimensão : um insignificante grão de areia, nesta construção fantástica e incomparável que é a Vida, nesta engrenagem magnificente e mística que é o Mundo em que vivemos, a Natureza de que usufruímos !!
Tudo nos remete para a essencialidade primordial, não deixando espaço p'ra dúvidas ou veleidades ...

Tudo isto a Namíbia me sussurrou ao ouvido, tudo isto a Namíbia me desvendou despudoradamente, desde o deserto à selva, da montanha escarpada às areias imprecisas das dunas imparáveis, do mar tempestuoso às cordilheiras e canyons escavados por águas, que também elas se esquivam e só correm quando o destino assim o quer !
Tudo isto tornou para mim a Namíbia, um convite irrecusável e sempre presente !!!

Anamar 

quinta-feira, 30 de junho de 2022

" O ESPÍRITO DA COISA ..."

 


Dei-vos conta da iminência de uma viagem, uma outra viagem, nesta incessante busca de qualquer coisa que eu própria não defino.  
Elas, as viagens, são a necessidade de colmatar um qualquer vazio que sempre me atormenta, a ânsia de encontrar alguma coisa ou de repor apenas coisas que já senti, já experimentei ... já vivenciei !  Como se alguma vez, as coisas se pudessem repetir no tempo e no espaço !...

Sei que se ousa dizer que a mesma água não passa duas vezes debaixo da mesma ponte ... e não estou equivocada. Sei exactamente que o que na verdade busco é o reencontro comigo mesma, naquela que eu era há anos atrás, a minha alma e o meu coração remoçados, a reposição do meu entusiasmo, e da minha alegria de então ... como se isso pudesse ser possível ... 
Sei exactamente que o que na verdade busco é a capacidade de sonhar outra vez, como então, é a adrenalina que me tomava e me projectava oniricamente em cada viagem que fiz ... é a juventude e a garra que se perderam nos tempos e que já não detenho mais ...
Essa sim, a utopia com que me trapaceio !... 
E alegro-me, e engano-me conscientemente, e iludo-me como a criança a quem calamos o choro com uma guloseima ...

Por isso, nos últimos tempos tenho viajado muito mais, com uma urgência sentida ... como se não houvesse amanhã !  E nada é o que foi ...

As viagens somos nós, mas são sobretudo os contextos em que as fazemos.  De acordo com as vivências em que mergulham, assim nos representam e transmitem emoções diversas.
Neste momento refugio-me no que olho, no que admiro, no que cheiro ... As cores e os aromas embriagam-me, os silêncios acariciam-me, e é como se conseguisse desligar-me totalmente do que me envolve, de quem me envolve ... Fico eu, apenas eu, como se sozinha comungasse da envolvente que me embala ... e nada mais me interessasse. Como se não existisse mundo à minha volta, como se a minha linguagem interior fosse intangível, impenetrável, inalcançável ...
E é isto que experimento em cada momento, em cada volta de caminho, em cada horizonte desenhado,  em cada sensação que me sufoca ...
Não divido, não partilho ... guardo p'ra mim, aferrolho no meu peito tudo o que acho ser único e inatingível por outrém ... Ele é o espólio do que experiencio, no pedacinho de mundo cujas portas encerro de seguida ...
Por isso, busco primordialmente a natureza p'ra mergulhar, p'ra me entupir, p'ra me alienar ... p'ra me extasiar ... em silêncio ...

E pronto, é neste contexto que vou, que parto uma vez mais, como se tivesse encontro marcado comigo mesma  na miragem que espreita por detrás daquela duna ... ou pudesse voltar a aspirar o aroma adocicado das flores dos trópicos, ou pudesse virar outra vez a ampulheta brincalhona dos tempos !...


Anamar

terça-feira, 28 de junho de 2022

" RETORNANDO ... "



Ora bem ... já aqui não vinha há um ror de tempo !
Sempre me penitencio pelo facto, sempre me culpo, me acuso por talvez não me esforçar ... bla bla bla ... mas o facto é que eu própria não consigo entender a situação ... entender- ME sobre a situação.
Não tenho assunto sobre o que escrever, não valorizo o que escreveria.  Sempre entendo que se escreve sobre tudo, que se escreve de qualquer forma sobre tudo, o que logicamente me desmotiva a fazê-lo, pois ou valeria realmente a pena, por qualidade, novidade, assertividade de algo que eu debitasse, ou ... já tudo foi explorado, dissecado, abordado por quem tenha na verdade "autoridade" na matéria.

Bom, talvez nada mais seja do que um reflexo de uma certa indiferença e passividade minhas, face à vida nos últimos tempos, em que claramente dobrei uma qualquer esquina na minha estrada.  Sem uma justificação, sem uma razão, sem um motivo objectivo, parece que passei apenas a deambular ou pairar por aqui, e não a viver, ou a ser intérprete e actora do meu próprio destino.
Poucas coisas me movem, poucas coisas me aceleram os batimentos cardíacos, poucas coisas me mexem os interiores, como se a minha capacidade de emoção, de emaravilhamento e de entusiasmo, estivesse embotada. Parece que enfiei por mim abaixo uma qualquer carapaça, um revestimento de distanciamento, indiferença e insensibilidade face ao mundo onde vivo.
Em suma ... anestesia ... parece que efectivamente a minha quota de sensibilidade perante as coisas, as pessoas, os acontecimentos, está objectivamente anestesiada.  
Até os sonhos deitaram p'ra sesta e se esgalgaram por aí ...

Bom, entretanto muitas e muitas coisas foram acontecendo neste meu período de ausência literária.

A guerra, a maldita guerra na Europa, contra todos os vaticínios iniciais, perdura e esboroa diariamente um país totalmente esfrangalhado e em pedaços.  Pouco haverá já para destruir, não se consegue entender a devastação infligida a pessoas e bens. Não se consegue sequer imaginar em boa verdade, o genocídio a que aquela gente foi e é submetida !
E tudo continua em aberto, a desproporção militar de homens e armamento entre o exército russo e as forças ucranianas é absolutamente abissal, o que torna totalmente insuficiente toda a ajuda disponibilizada pelo ocidente.  Enquanto isso, o sofrimento, a dor, o horror em suma, continuam a alastrar em pleno Séc. XXI aqui, no velho mundo!
Mas também tudo isso já não motiva como no início, o cidadão comum dos países espectadores !
É injusto mas natural, creio.  O ser humano é exactamente assim ... infelizmente ...

Entretanto, uma das coisas que ainda e sempre me empolga, é a possibilidade de viajar.  É sempre algo gratificante, preenchedor, emocionante, poder conhecer algumas micro-fatias deste nosso planeta.  Poder partilhar novas realidades, experiências inovadoras, contactar novos lugares e novas gentes.  Fugir daqui, fechar a porta e acordar lá, onde quer que seja, a muitos e muitos quilómetros de distância, lá do outro lado do Mundo, vivendo realidades totalmente distintas das desta vidinha cinzenta e igual que diariamente arrastamos pelo meio das mesmas rotinas ...
Uma viagem um pouco diferente do estilo que costumo privilegiar, desta vez ainda assim uma viagem a que apus reticências no início, e de que viria a gostar muito no lavar dos cestos.  
Itália ( Nápoles, Pompeia, a Ilha de Capri ), com o sul e a sua maravilhosa Costa Amalfitana, desde Sorrento, Positano, Amalfi e Ravello, haveria de encantar-me e surpreender-me, bordada e engalanada que é, encosta acima, e onde o colorido das habitações encarrapitadas a pique sobre as escarpas do Mar Tirreno, lembra um presépio que contrasta com o azul intenso das águas serenas a seus pés !

Agora, nova viagem se aproxima.  Dentro de poucos dias novo sonho começará a concretizar-se.
Uma ingressão num continente onde ainda fui muito pouco, servirá para que eu mergulhe no místico coração de África.  A Namíbia, da savana ao deserto, a Costa dos Esqueletos ou as míticas dunas de areias vermelhas contrastantes de sombras e luz, esperam-me com as cores, os cheiros e os pôres-de-sol inesquecíveis e inigualáveis, que só África sabe proporcionar ...
Quem viu o filme "África minha", saberá do que falo
Será uma imersão numa natureza inóspita, num país com uma fraca densidade populacional, onde a terra é muita e as gentes são poucas ... com uma natureza versátil, indómita e imperativa !
Uma terra de silêncios, de liberdade, de horizontes longínquos, sem limites ou freios ... terra com princípio mas sem fim ...

" Viajar é mudar de roupa à alma "

        Mário Quintana

Falarei e contarei como foi ... assim o espero !

Anamar

sexta-feira, 13 de maio de 2022

" AS MÃOS "



Como sempre as minhas caminhadas pela mata, no meio do silêncio e da natureza, são momentos de introspecção, são oportunidades de, do nada e por nada em especial,  ir desfiando pensamentos avulsos que obviamente não têm que obedecer a razões, a lógicas ou a motivações especiais.
Vêm porque sim, perseguindo por certo algum impulso interior que não consciencializo ou descodifico.

Entretanto a mata, nesta Primavera instalada, fulgurante em todas as suas fascinantes manifestações, envolve-me docemente com uma natureza que esbanja beleza a rodos.  
O verde de tons diversos em cada planta, em cada árvore ou arbusto, o colorido de todas as flores que assomam em cada trilho ... flores não plantadas, não semeadas, apenas oferecidas pela generosidade da vida ... e os trinados de todos os pássaros que, de criação já independente, saltitam de galho em galho, em "conversas" de tons e "assuntos" diversos, fazem-me sorrir, extasiada que fico, a ponto de emudecer por falta de argumentação, veia ou vocabulário que os descrevessem ...
A perfeição, a harmonia,  a  ordem  são de tal forma inquestionáveis, que  talvez só o silêncio mesmo, as possam traduzir com eloquência !!!

Entretanto um ano transcorrido, já há de novo patos bravos nos dois tanques da mata.  Duas famílias de crias bem pequeninas ainda, nadam sob supervisão das progenitoras, no meio dos juncos, descontraídas e felizes !
A mata, como já contei por aí, é propriedade do Estado,  adstrita ao Regimento de Artilharia Antiaérea de Queluz, é portanto uma zona militar, disponibilizada ainda assim como zona de lazer e de prática de desportos da população de Queluz e Amadora. Situando-se na fronteira entre as duas cidades, é um pequeno pulmão verde , ao serviço destas duas comunidades.  
Ela é uma extensão do  Palácio Nacional de Queluz, que está ligado às vivências de três gerações da Coroa Portuguesa .
Este palácio, do século XVIII em estilo rococó, foi concebido como retiro de Verão de D.Pedro de Bragança, que se tornaria marido e rei consorte da sua sobrinha a rainha D.Maria I.
Depois da destruição pelo fogo do Palácio da Ajuda no século XVIII, tornou-se então residência oficial do príncipe regente D.João VI e da sua família, até que a mesma viajou para o Brasil em 1807, após a invasão de Portugal pelos franceses.
Veio posteriormente a ser um discreto local de encarceramento para a Rainha D.Maria, que padecia de loucura.

E lembrei-me das mãos ...
As mãos que são seguramente dos órgãos que mais inapelavelmente nos testemunham duma forma implacável, o tempo que já vivemos.  
O pescoço parece que também, mas as mãos, sem dúvida não nos deixam esquecer de nenhuma forma desse percurso.
À Teresa, nos seus cinco anos incompletos, faz muita confusão a flacidez e enrugamento da pele que as cobre.  Sentada no meu colo, com os seus dedos fininhos e minuciosos, olha longamente, apanha entre eles as dobras das preguinhas deste "papel" antigo, perscruta-me o semblante entristecido, acredito, e diz-me : " avó, tu tens as mãos assim, porque já és um bocadinho velhota ..."
E vendo o meu ar penalizado e impotente, sorri e diz-me : " estou a brincar, avó ... "
Bem se vê que a Teresa não alcança a dimensão da coisa ...

Guardo até hoje, com uma nitidez absoluta a imagem das mãos dos meus pais nos seus últimos tempos de vida, pese embora o meu pai já me tenha deixado há trinta anos e a minha mãe há quatro.
Lembro claramente aquelas "folhas de papel" ressequido, onde as pregas se multiplicavam e o azulado das veias serpenteava na transparência.  
Lembro a fragilidade preensiva, lembro a insegurança do gesto, lembro a falta da força no movimento ... lembro a leve e envergonhada tremura, no desânimo de se ostentar algo que já foi forte, robusto, potente, seguro ...  
Como se esses gestos titubeantes e imprecisos, carecessem dum pedido de desculpas, uma explicação para o tíbio movimento que se desenha, uma justificação para que aquela fortaleza, aquele pilar, aquele porto seguro, aquela amarra ... aquele tudo de amparo que tantas vezes nos ergueu do chão, já só fosse um esgar, uma tentativa ... uma desistência !...

São isso as mãos ... São segredos guardados, são histórias contadas, são caminhos trilhados, são memórias vivas ... sangrantes !
São vida ... mesmo quando já são morte anunciada !...

"Avó, tu tens as mãos assim, porque já és um bocadinho velhota !... " - a ingenuidade da boca inocente  duma criança !

Anamar

quinta-feira, 5 de maio de 2022

" MORRE LENTAMENTE ..."

 









                                                             SANTIAGO  DO  CHILE

                                                                " LA  CHASCONA "






Encerro hoje a narração da minha odisseia no Chile, no que foi uma viagem seguramente inesquecível na minha vida.

Tentei exaustivamente contar-vos o mais próximo possível da realidade, tudo o que vivi, tudo o que senti, todas as maravilhas duma natureza diversa e fascinante que me acompanhou desde o Atacama, aquele deserto mítico e mágico, no norte do país, em fronteira com o Perú, à Patagónia, lá onde Magalhães abriu rotas ao mundo ... passando pelos Lagos Chilenos, região de águas, bosques, vulcões, rápidos e obviamente de lagos ... de cores turquesa, de águas límpidas, transparentes e sonolentas ...

Talvez me tenha excedido na exaustão da narrativa, talvez tenha exagerado na pintura dos quadros ... talvez vos tenha maçado com a profusão de pormenores, de apontamentos, de informação ... de histórias ...
Só que, tenho p'ra mim que a beleza não deve ser exclusividade de ninguém, que as maravilhas oferecidas generosamente pela natureza não são pertença de alguns, que as emoções e sensações experimentadas, podem e devem ser partilhadas ...
Por isso, norteada por essa ânsia de vos levar comigo ( podendo apenas fazê-lo pela ponta do meu lápis e pela verdade da minha escrita ), pelo desejo de vos transportar através do sonho, pulando de fotografia em fotografia e de vídeo em vídeo ... talvez não tenha dado pela passagem do tempo e tenha acabado por vos maçar, no ímpeto de vos abrir a janela panorâmica que me deixou assomar por alguns dias !...

Termino hoje, e vou procurar ser mais sucinta e contida, falando-vos da capital, Santiago do Chile e de duas outras cidades relativamente próximas, como já disse : Valparaíso e a cidade costeira e importante porto marítimo de Viña del Mar, situadas lado a lado, sem bem percebermos onde acaba uma e começa a outra.
Santiago do Chile, com cerca de 7 milhões de habitantes numa área urbana de 720 quilómetros quadrados, foi fundada pelo conquistador espanhol Pedro de Valdívia, no Século XVI.  Sendo uma cidade de interior, é atravessada pelo rio Mapocho, um canal sem grande expressão que atravessa a cidade, e que alberga nas suas margens imagens chocantes de miséria social, com um amontoado de barracas e verdadeiros acampamentos de sem-abrigos que ali vivem, numa degradação que impressiona.  O lixo amontoa-se, as condições sub-humanas são, infelizmente, um triste cartão de visita para quem a pode olhar.
Santiago, nesse contexto, nada tem a ver com as restantes cidades que conheci. 
Punta Arenas, Puerto Natales, Puerto Montt, Puerto Varas, Valparaíso ou Viña del Mar, são cidades organizadas, preservadas, limpas ... cidades "arrumadas" e bonitas, que parecem convidar os visitantes para que fiquem e usufruam as suas agradáveis condições de habitabilidade.

Santiago é uma grande metrópole, guardando em si traços claros do colonialismo espanhol.  Atravessou histórica e politicamente períodos conturbados como todos sabem, e mostra claramente acentuadas clivagens, com grandes assimetrias económicas e sociais.  É uma urbe em permanente convulsão política, com evidentes manifestações e contestações, percebendo-se claramente uma latente instabilidade social.
A zona histórica da cidade conserva uma arquitectura bonita e preservada, dentro do possível. Não esqueçamos que o Chile vive a turbulência geofísica da confluência de placas tectónicas, que volta e meia desencadeiam sismos cuja magnitude é responsável pela destruição severa das construções.
O maior terramoto registado no mundo ocorreu a 22 de Maio de  1960 e teve 9,5 pontos na Escala de Richter, tendo arrasado a cidade de Valdívia a mais de 700 km da capital, tendo esta ficado igualmente muito destruída.
Nas zonas limítrofes existem os bairros das elites, onde as construções modernas de qualidade, com  arranha-céus de manifesto bom gosto, atestam que o Chile caminha rumo ao futuro ! 
Aí fica situado o edifício mais alto da América do Sul, a Gran Torre Santiago, com 300 metros de altura e sessenta e quatro andares !

A pouco mais de cem quilómetros de Santiago, para noroeste, caminhando para a costa, encontrei Valparaíso, uma cidade absolutamente carismática, singular ... única !
Cidade de artistas, típica e inigualável, distribui-se em cor e em beleza ao longo das diferentes encostas, os "cerros", onde as casas coloridas se encarrapitam, sobranceiras a miradouros, ladeando ruas estreitas, encimando escadinhas tortuosas ladeira abaixo.
É uma cidade de luz, com uma claridade estonteante, é uma galeria de arte ao ar livre ... 
As suas paredes, muros, até mesmo o chão, são revestidos de pinturas de autores anónimos, absolutamente fantásticas.  A "street art" é um meio de veiculação não só da arte visual "de per si", mas também como meio de propaganda social, política, ecológica.  Desta forma, cada cantinho é um alerta, uma contestação, um recado silencioso, uma sensibilização ... através de imagens, cor, beleza e poesia !

Fazendo jus a todas estas potencialidades de Valparaíso, Pablo Neruda haveria de escolhê-la para aí construir uma casa inspiradora, seguramente.  No "Cerro Bellavista", "La Sebastiana", com uma vista de tirar o fôlego sobre a cidade, seus morros e encostas, seus desníveis e socalcos, seus miradouros debruçados, é, também ela uma casa de escadinhas, de pisos e patamares, mas sobretudo de fachadas envidraçadas que não limitam, não cingem e não amordaçam tanto da beleza que os olhos alcançam !
É hoje uma das suas Casas-Museu onde tudo foi deixado como se o poeta tivesse apenas ido lá fora, espreitar os gatos ronceiros que dormem ao sol.  
Sobre a secretária, os manuscritos dos poemas como que ali esquecidos, recuam-nos no tempo, ao que foi ... ao que terá sido ...

Em Santiago, "La Chascona", construída em 1952 em celebração ao seu amor por Matilde, "A Descabelada" ( la chascona ), sua última esposa, inicialmente sua amante, é outra das Casas-Museu que deixou para a posteridade.  Igualmente fascinante !  
Muito pouco "museu" ... muito "casa de gente"... conserva em cada recanto, em cada peça exposta, na mesa pronta que parece aguardar chegadas ... no banco de ferro debaixo dos arbustos ... no copo que ficou por beber ... o cheiro adivinhado do romance, o cheiro da paixão ... o cheiro mesmo da devoção!...

Finalmente viria Viña del Mar, cidade costeira, onde se localizam as melhores praias para os santiaguinos.  "Cidade Jardim", recebe-nos com o icónico "relógio de flores", ponto de paragem obrigatório para a fotografia da praxe !
Assim conhecida por estar rodeada de áreas verdes, é nesta cidade cosmopolita que se encontra a residência de Verão do Presidente do Chile, o Palácio de Cerro Castillo, em cujos jardins é içada a bandeira do país, quando o Presidente ali se encontra instalado.
Como estávamos em período pascal, sábado de aleluia, a bandeira do Chile lá estava desfraldada ao vento ...

Bom, e fico-me por aqui.
Espero  que  tenham  apreciado  e  aproveitem ... visitem  o  Chile !  É  que  vale  mesmo  a  pena !!!...

Depois de Gabriela Mistral, primeira latino-americana e a primeira mulher americana a receber o Nobel pela sua obra poética em 1945, Pablo Neruda, grande poeta desta terra, viria a receber igualmente o Prémio Nobel da Literatura em 1971, também pela sua poesia.

É portanto, homenageando-o, que aqui deixo um seu poema que tudo tem a ver com o espírito deste meu trabalho ... o CHILE - do Atacama à Patagónia Chilena :


                                                              " Morre lentamente ..."




                                                                     VALPARAÍSO










                                                                   VIÑA  DEL  MAR







Anamar

terça-feira, 3 de maio de 2022

" A CAMINHO DO FIM ... CHILOTES, CIDADE DAS ROSAS E TUDO O MAIS ... "

VULCÃO CALBUCO
                                                                      VULCÃO OSORNO
OSORNO VISTO DE PUERTO VARAS
                                                             NO CUME DO OSORNO

Puerto Varas, cidade chileno-alemã fundada por colonos alemães, conhecida por "cidade das rosas" por esta flor lhe alindar as ruas e pracinhas, tornaria ainda mais espectacular esta minha passagem pela Região chilena de "Los Lagos".
Como já referi, a exuberância de todo o contorno natural desta zona do país, surpreende-nos a cada momento com o avistamento de vulcões, lagos fascinantes ( com uma intensa coloração esmeralda devida à suspensão do cobre nas suas águas ), rios exuberantes em ímpeto e cataratas ... ilhas, cordilheiras e bosques ...
De facto, 40% das exportações do Chile são o cobre, constituindo esta, a sua maior fonte de receita. É o maior produtor mundial deste metal ... mais de 5 milhões de toneladas/ano.
É explorado há pelo menos dois mil anos e os indígenas já o usavam há séculos.

A cidade de Puerto Varas fica nas margens do Lago Llanquihue, o segundo maior lago chileno e o terceiro maior da América do Sul.   Do lago pode observar-se o vulcão Osorno e o cume dos vulcões Puntiagudo, Tronador e Calbuco.  Este último teve a sua última erupção em 2015, depois de 54 anos adormecido.
Ao cume do Osorno, 1670 m, eu subiria mais tarde em cadeiras de montanha, desfrutando duma panorâmica de tirar o fôlego !
Igualmente inesquecível viria a ser o passeio de barco pelo Lago de Todos os Santos ou Lago Esmeralda, quase 200 m acima do nível do mar, situado a 76 Km da cidade e integrado no Parque Nacional Vicente Perez Rosales, o primeiro Parque Natural do Chile, criado em 1926.
Este Lago teria sido nomeado em 1 de Novembro de 1670, pelos jesuítas.  Ali nasce o espectacular rio Petrohué, que desemboca no mar, 36 Km adiante.  As suas cataratas, "Os saltos do Petrohué", deixaram-me fascinada.  Respira-se uma interioridade, uma cumplicidade silenciosa com tudo o que nos rodeia, um intimismo partilhado com a natureza no seu estado mais puro e genuíno !   
 
A viagem ao Chile não ficaria completa, posso dizer, sem uma visita à carismática Ilha de Chiloé, o maior território insular deste país, atravessado de norte a sul pela Cordilheira da Costa, e situado obviamente no Oceano Pacífico.
A Ilha Grande de Chiloé é a maior do arquipélago de Chiloé, composto por mais de três dezenas de ilhas, a maioria desabitadas, situado, como disse, ao largo da costa do Chile, na Região de Los Lagos e é a quinta maior em tamanho, da América do Sul.
A Ilha de Chiloé ou "terra das gaivotas", segundo os índios mapuche, foi classificada Património da Humanidade pela UNESCO.  É morfologicamente estreita e comprida ( 180 km  / 50 km ), é meio selvagem apesar de habitada, dispõe duma paisagem rude e tempo agreste, incerto e nebuloso.  Foi descoberta pelos espanhóis em 1540 e colonizada em 1567.
Os habitantes são chamados de "chilotes" e as duas principais cidades do território, Ancud e Castro (a capital ), revelam características assaz curiosas.  As suas casas palafitas em madeira, construídas sobre estacas apresentam paredes coloridas, pintadas com o remanescente das tintas com que os pescadores ( a maior parte da população ), pintam os seus barcos.  São habitações que resistem aos terramotos e às subidas das marés. Os seus telhados são de "tejuelas", telhas de madeira que encaixadas umas nas outras, isolam a construção.
Esta tipologia tão peculiar tornou Chiloé um ícone reconhecido mundialmente como património a preservar !
Existem ainda cerca de 70 igrejas seculares, espalhadas no arquipélago, feitas também em madeira, com a particularidade da sua construção não ter utilizado pregos, sendo as peças de madeira também apenas encaixadas umas nas outras.
Contudo Chiloé foi dos últimos territórios cristianizados, apesar da presença missionária no arquipélago. 
Os chilotes são um povo reservado mas hospitaleiro, arreigado a um misto de pragmatismo, religião e lenda.  Guardaram as crenças dos índios "chonos" e " huilliches", entretanto dizimados, e abraçam um misto entre o catolicismo e as lendas locais.
Pode dizer-se apropriadamente que o mar, a floresta, o tempo incerto e nebuloso constituem a essência deste lugar. Os campos cultivados e as colinas foram roubados à selva e à floresta nativa e cerrada. 
Vive-se fundamentalmente da pesca e da agricultura local, e a extrema humidade, a sombra e os pântanos fazem a natureza da ilha. Nada bule em Chiloé, a não ser as gaivotas !...

Desta visita, lamento apenas uma única questão :  os índios mapuche foram dos primeiros habitantes da ilha, que observando a abundância de gaivotas que grasnam todo o tempo, lhe conferiram o nome que detém, como disse.  Contudo, existe uma outra ave que passa pelo arquipélago para nidificar anualmente, na Primavera e Verão, que eu adoraria ter observado :  Os "Pinguins de Magalhães" vindos da Patagónia e os "Pinguins de Humboldt" vindos do Peru e do Chile aqui nidificam, nascem em Dezembro e as famílias partem em Março, ano após ano ... 
Como tal, já não os apanhei por lá ...

Bem, por hoje é tudo.
Amanhã abordarei o términus desta viagem inesquecível e mágica, falando-vos de Santiago e de duas outras cidades, Valparaíso e Viña del Mar, situadas a cerca de cem quilómetros da capital, igualmente imperdíveis no mosaico cultural surpreendente, que é este país "comprido e fininho" como diz o Kiko ...

                                                         PALAFITAS EM CHILOÉ
                                                            ROSAS EM PUERTO VARAS



Anamar