domingo, 23 de julho de 2017

" A GAIVOTA QUE GOSTAVA DE VERDI ... "



Abateu-se a tarde sobre a cidade.
Aquela luminosidade doce desceu, a brisa mansa corria.  As ruas estavam pejadas de gente bonita, de todas as raças e cores, que jogavam fora um bem estar de quem nada quer ou espera, num sábado à tarde ... Uma pressa sem pressa, numa cacofonia de palavras largadas, esvoaçantes e soltas em meio dos passantes ...

E eu por lá, ao largo, no largo ...
Verdi haveria de descer ao Chiado, em pleno Largo de S. Carlos, com o teatro à frente e a casa do "Mestre", atrás.
Pessoa circulava por ali. Bem que o sentia no empedrado silente do meu espírito.  Afinal, nascera, vivera, perambulara entre aquelas casas antigas, espreitara vezes sem conta a nesga de rio lá longe, em baixo ... parara pela Brasileira nas tertúlias ociosas, rabiscara versos, letras, palavras, com um cheirinho a céu de Lisboa ...

E depois, havia as gaivotas que em volteios incansáveis, asas estendidas, pescoços esticados, lembravam que o Tejo era vizinho e que a cidade é sua, de direito ...
Pairavam bem ali por cima, numa espécie de recepção e homenagem discreta ... cerimoniando o acontecimento .

Uma multidão colorida disputava os lugares sentados que já não existiam, acotovelava as esquinas, abordava o empedrado dos degraus, a soleira das portas, o poleiro das varandas sobranceiras ou, em última análise, simplesmente um pedaço de chão nas pedras da calçada ...
Lisboa fora chamada pelos acordes de um dos eventos culturais mais interessantes, generosos e fantásticos com que anualmente o Festival "Ao Largo"  mima a cidade, por estes meses de um Verão certo e seguro.
Ontem, seria Verdi o "mágico" de serviço, o virtuoso do mundo fantástico da música, o encaminhador do sonho que nos tomaria, ao escutá-lo.
A Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro do S. Carlos, a soprano Cristiana Oliveira e o barítono Roland Wood, sob a batuta de Andrea Sanguineti, seriam os mentores da nossa evasão, seriam os fazedores do nosso fascínio e da nossa paz, numa viagem além do tempo e do espaço, num maravilhamento que não se descreve ... só se sente ... numa magia sem tamanho, enquanto a noite nos foi tomando conta ...

E Verdi desfilou.
A Traviata, o Rigoletto, a Aida, Macbeth ou Otello ... o Baile de Máscaras, Il trovatore entre outras peças inconfundíveis, culminaram com o tão extraordinário quanto esmagador Coro dos Escravos Hebraicos de Nabucco - Va, pensiero ...
Essas notas, esses acordes, a força dos tons imperativos, doídos, suplicantes dessa ária, sempre arrancam em "pianíssimo" um trauteio irresistível, enquanto que um arrepio nos percorre o corpo e os olhos se tornam involuntariamente húmidos ...

Toda a noite a olhei ...
Sobre a grinalda em pedra que encima as armas reais da Coroa portuguesa, na fachada do edifício de características neoclássicas e inspiração italiana setecentista, profusamente iluminado em festa, ela, aquela gaivota certamente de ouvido apurado, olhos perscrutantes e esmerado sentido estético, se abancou, meneando-se deleitada, ora num pé, ora noutro, bico p'a esquerda, bico p'ra direita, penteou as penas, ou sonhadora e estática simplesmente se quedou ...
Era presença real, imponente, imperturbável ... indiferente ao correr do tempo ...
Desejava talvez, tal como eu, que ele não passasse, para que  não fosse subtraída ao sortilégio que experimentávamos ...
Cá de baixo, eu acho que lhe via os olhinhos ... e julgo não mentir, se disser que ela sorria ...

E nem as notas mais troantes, os compassos mais estridentes, ou o esvoaçar céus fora das vozes fragorosas do coro, a estremeceram, assustaram ou afastaram ...
E ficou  solitária, extasiada, sonhadora ...

Giuseppe Verdi estava no Largo ... e aquela gaivota gostava de Verdi !...



Anamar

quarta-feira, 19 de julho de 2017

" POR JUSTIÇA ... "




" Há uma vila portuguesa entre os melhores destinos medievais da Europa"

Li esta frase nos media e agucei a curiosidade.

Eu, que tenho um fetiche imenso por me perder pelos destinos inóspitos deste país ... eu, que valorizo além da conta render-me à quietude de ruelas tortuosas do nosso interior ... calcorrear o empedrado silencioso das  aldeias mágicas povoadas pela ausência de vivalmas ... eu que sonho ao som dos sinos nas avé-marias dos campanários, e me emociono com os chocalhos de regresso aos estábulos pelo cair da tardinha ...
eu, que sou apaixonada pela autenticidade de gentes e locais sem maquilhagens ou disfarces, e que detesto por isso, as grandes metrópoles, de ritmos alucinantes e ciclópicos ... fui ler, por inteiro, o texto  que a frase supra-citada titulava.

Que vila, neste caso de uma vila se tratava, cumpriria os requisitos desejáveis para ser considerada um dos melhores destinos medievais da Europa ?
Seria o caso de  por lá, eu já me haver perdido alguma vez ?

Curiosa mas não surpreendentemente, pelo menos para mim ( e tenho a certeza, para muitos ), a vila eleita para este desígnio, era exactamente a vila de Marvão !

Pois bem, em Marvão me perdi não uma nem duas vezes ... mas mais, e sempre me pareceram de menos !...

Empoleirada no alto de S. Mamede, ostentando o seu castelo medieval, lá, onde "as águias voam de costas", tomando a perspectiva indiscutível do nosso Aquilino ... Marvão é de facto uma jóia rara no Alentejo interior deste país.
Tão interior  que, paredes meias com os nossos vizinhos espanhóis, é uma janela aberta e franca ao lado de lá, para além daquela linha imaginária que desenha a fronteira dos povos.

Marvão é terra de silêncios, terra de brisa sussurrante entre  meio dos rochedos alcantilados.  É balcão que se assoma planura adiante.  É parada  de mistérios inconfessados e alcova de amores e amantes perdidos nas ruelas sem rumo ou norte ...

Marvão nunca se me explicou.  Tão só se deixou sentir-se...
Mostrou-se, despiu-se, deu-se, gravou-se na minha pele, sem pergunta nem resposta, sem dúvida ou reticência, sem tempo ou idade ...
Marvão foi lenda, foi história, foi marco ... foi destino !...
Marvão foi indelével paixão para todo o sempre !...

Anamar

domingo, 9 de julho de 2017

" E QUE ME DEIXEM O LUAR ... "







De que me serve dizer-me
em jeito de me alentar,
que sonho voltar no tempo,
voar nas asas do vento
e deixar-me acreditar
que sou jovem outra vez ...
que tenho o mundo aos meus pés ?...

Que saudades eu vou tendo
dos tempos em que podia
desenhar o arvoredo
das estradas que percorria ...
Pendurava rouxinóis
sobre as águas dos ribeiros ...
Escondia luas e sóis
no alto das ramarias,
entre as folhas dos salgueiros ...

E eu podia, eu podia
inventar a minha história
mesmo do jeito que eu queria ...
E amava, como amava
os amores que eu inventava
e me faziam feliz ...

Hoje, os pingos na vidraça
são chuva doce que abraça
memórias que quero guardar ...
Sussurram ao meu ouvido
que o vivido, está vivido ...
já não faz nenhum sentido ...
que a saudade não o alcança,
que o coração não descansa
de tanta vida lembrar ...
Vida já sem serventia,
barco em meio de ventania
à beira de naufragar ...
E ...
como gaivota poisada,
de asa já morta, fechada,
ergo as mãos a suplicar ...
Sou estrela já apagada,
Sou manhã sem alvorada,
Não me roubem o luar !...

Anamar

domingo, 2 de julho de 2017

" VAI-VEM DE MARÉ ..."




Hoje  estou  melancólica.
Sinto-me um pouco perdida no emaranhado da minha vida, como uma aluna frente a um manual sem saber bem encontrar-se no meio de tanta informação a reter.  Uma aluna dispersa, sem bem perceber onde se encontra a ponta da meada a desenlear.

Tenho escrito pouco, tenho reflectido pouco, deixei de me encontrar em tardes longas e desocupadas por aqui, perante mim, perante as minhas ideias, os meus pensamentos, as minhas angústias e preocupações, as minhas dúvidas e perplexidades, os meus sonhos, as minhas lembranças, também dores e sofrimentos ... também alegrias, obviamente.
Deixei de ouvir longamente Énya, em tardes ociosas, enquanto o sol me descia no firmamento frente a esta tribuna, sobre o casario que preguiça até Sintra.
Deixei que a vida me fosse atropelando a um ritmo que as minhas "pernas" já não acompanham ...
Demasiadas coisas acontecendo aqui ao meu lado, como avalanche de torrente que engole e leva das margens, as folhagens distraídas ...
Um turbilhão de sentires, diversos, esparsos, confusos, em atropelos ... que não me folgam e não me param, para sequer os assimilar, interiorizar, incorporar, vivenciar ...
A minha vida mostrou-se um remoinho de rio caudaloso, com a força imparável e cavalgante de águas impiedosas ...
Uma entropia estranha e avassaladora tirou-me os tempos de paragem que me eram vitais ao equilíbrio.
Portas fecharam, portas abriram, esquinas foram dobradas, rotundas estonteantes foram rodadas, ondas encapeladas de incertezas incómodas me enrolaram na areia da rebentação ... quase não me deixando vir à tona, respirar ...
Tudo isso num rompante louco de montanha russa, de voragem temporal, de realidades que não batem à porta para se instalarem.

O meu mundo, de dúvidas, encruzilhadas, "nieblas" pairantes  mas sabidas, tem-me amanhecido com madrugadas novas, de novos cheiros, novas cores, novos sons e claridades.
E como alguém que poisasse numa terra que não aprendeu, como alguém que dispusesse de roupagem desmedida, sinto-me desconfortável, desajustada e com uma canseira no coração e na alma, que me desconserta.

É sabido que novas vivências repentinas e inesperadas, sempre deixam o ser humano fragilizado, no vencer de inércias, quase sempre insatisfatórias, contudo cómodas ...
E a minha vida tem-se pautado por um mar flat, agitado repentina e inesperadamente por ondas alterosas de  marés.
Não é, nunca foi, uma vida cinzenta de rotinas e repetições.  Eu própria, convivo mal com tudo o que se repete, se decalca, se instala.
Por personalidade, sou uma alma inquieta  em turbilhão, que lida mal com tons "pastel" ... que prefere "nuances" definidas, bitolas de tudo ou nada, de zero ou cem.
E por isso, cada readaptação a novas vidas dentro da vida, que foi ocorrendo na minha existência, implicou, ajustes, custos emocionais, conflitos interiores com dispêndio acrescido de sofrimento inerente... com desgaste pessoal, com desnorte de rumos ... com fins e recomeços difíceis ...

Cada nova e desconhecida etapa que chega, questiona o pré-existente, agita as águas,  revoluciona o instalado, desencadeia perdas e ganhos, opções, decisões, mudanças.
São períodos de aprendizagem, de crescimento, de mudança, nem sempre ... quase nunca, fáceis !

E tudo isto - quando  então o Outono já assoma , com as primeiras intempéries na vida -  se reveste de dureza acrescida,  com envergadura de desafio titânico ... e se mostra como  um esgotante vai-vem de maré !...

Anamar

domingo, 18 de junho de 2017

" HISTÓRIAS DE UMA TARDE SEM HISTÓRIA ... OU TALVEZ NÃO !..."





35º C dentro de casa !...

Sobrevivo, nem sei bem como !  Esta casa, nascente-poente-terraço por cima, último andar do prédio de sete, revelada uma bênção nos Invernos ... virou forno crematório no despautério desta tarde louca de Junho.

Deitei-me sobre a cama, numa letargia de doer.  Decidi que devo reduzir o metabolismo aos mínimos aceitáveis ... entrei em modo de hibernação.
Aliás, nem imagino que possa ser diferente !  Tornei-me um bicho hibernante.  Suponho que esse estado seja qualquer coisa parecido com isto ...
Simplifico os trajes ... reduzo os trajes ..... ou melhor ... tiro os trajes !

Os gatos pensam como eu, neste momento.  Há que sobreviver à boca da fornalha.
Deitam-se nas áreas em que o  chão é de de mármore, deitam-se no poliban ou no fundo da banheira, barriga para cima, uma pata para cada lado, coladinhos à coluna da sanita, às paredes de azulejos...
Desgraçadamente não podem largar os casacos de pele ... E como me sinto solidária com eles, e lhes lamento a provação !!!

A dor no meu braço é lancinante.  Do ombro à ponta dos dedos é uma faca espetada que se enterra por cada gesto que faço.  Tomo analgésicos, que também eles, parecem hibernantes no efeito ...
A música não me acalma nem me anima.
Como pode uma dor de braço, socar-me o estômago ao ponto de nausear-me ?!

A televisão não dá tréguas.
Traz p'ra dentro de casa o braseiro em que o país se tornou.
As imagens apavorantes de chamas que não se deixam controlar, aquece ainda mais o que me rodeia.
O ar rarefaz-se, o fumo sufoca-me, o terror invade-me ... e transporto-me para o "cenário de operações", como a comunicação social epiteta a cada momento, aquela porta do inferno !...

Todos os canais  em disputa alucinada, escalpelizam, pormenorizam sadicamente, exploram mais e mais todo aquele horror.
Todos dizem o mesmo, todos mostram o mesmo ... dez vezes, cem vezes ... acho que, mil vezes ...

A busca desenfreada e absurda do que foi, do que está a ser, do que poderia não ter sido ... se a Natureza não tivesse como sempre faz, imperado !...

E transporto-me por minutos a outras imagens iguais, repetidas, sempre aterradoras, sempre de sofrimento atroz ... E penso na Califórnia, e penso na Austrália, e penso na Madeira ... quando a bocarra das chamas também desceu, impiedosa e sempre varre  indiferente, tudo o que lhe faz frente ...
E revejo as imagens da floresta com árvores impotentes que se contorcem, com vidas que se incineram ...
E revejo o chão negro que resta, as imagens esfíngicas que sobram ... os animais que fogem sem norte, mas também os que ficam por ali mesmo ... a dor da perda, seja de que ser vivo for ...
E revejo o esgotamento e a exaustão de todos a quem o dever de filantropia, de solidariedade e de fraternidade, empurra lá p'ra frente, leva ao limite do lamber das chamas ...

E penso neste planeta, casa-mãe-berço, que nos acolhe e que o Homem gratuita e inconsequentemente destrói, em nome da única coisa que lhe faz sentido ... o dinheiro e o poderio ...
Na maior indiferença, irresponsabilidade e leviandade, continua a eleger para os seus destinos, criminosos, bandidos, arrogantes, ignorantes, omissos  e maquiavélicos ...
E a Natureza, destino perfeito que nos foi legado, é agredida, vilipendiada, trucidada ...

E o clima adultera-se, as temperaturas alucinam, os degelos ameaçam, as estações inexistem, as águas subirão, a desertificação prenuncia uma morte anunciada para muitas zonas do planeta ... Paraísos extinguir-se-ão, espécies desaparecerão para sempre ... E um dia, nada restará para contar !!!

35ºC dentro de casa !

Deixem-me ficar com a paz deste poema, com a frescura destas imagens ... com a esperança de um sonho que eu inventei !...

Anamar

quinta-feira, 15 de junho de 2017

" A RIQUEZA DA VIDA "




Hoje amanheci mais rica !

Às 6,20 h de uma madrugada ainda obscurecida mas já anunciadora de um dia radioso e iluminado, o meu clã fortaleceu-se com a chegada da Teresa.
A Teresa é o mais novo elemento do meu grupinho do coração ... os meus agora quatro netos, divididos harmoniosamente em dois casais. O António, quase com 16 anos, a Vitória com 13, o Frederico com quase 10 e agora a Teresa, que ainda mal abriu a pestana a um mundo que não sabe nem sonha !

Nasceu pequenina, rosadinha, bochechuda e com um apetite invejável.  A Teresa, prevista para o próximo dia de S.João, decidiu apressar o caminho, e presentear-nos com a sua chegada, a tempo de dar os parabéns à prima ... a Vitória, que aniversaria exactamente hoje também !
Raparigas portanto, em consonância !...
Cá p´ra mim, determinadas, resistentes e decididas !
A Vitória assim o é.
É uma pré-adolescente alegre, desinibida, determinada, comunicativa e sempre bem disposta.
É uma jovem responsável e independente, numa família em que está "ensandwichada" entre dois rapazes.  Na vida escolar,  é metódica, organizada e esforçada, e no desporto que privilegia, tem um desempenho louvável e meritório na área da ginástica, mas sobretudo no judo onde tem um futuro promissor, acredito.
A Vitória é uma leoa no coração e na dedicação ao que mais gosta de fazer na vida.

A Teresa, com uma gestação conturbada e preocupante, com parâmetros vitais ao longo dos tempos potenciadores de uma angústia, receio e apreensão em todos nós, e após uma indução do parto de dezassete horas, que obviamente exauriu a mãe, surgiu fresca e fofa, lépida e fagueira a desafiar a vida de frente ...
Pés grandes, prenunciando estatura alta ... dedos compridos em mãos secas e esguias de "pianista ou escritora"... ( ahahah ), boca bem desenhada, pequena e carnuda que promete despautérios e sobressaltos futuros ... uns pulmões que desafiam a robustez de qualquer tímpano ... uma avidez no mamar que não aceita negas ... mostram que a Teresa é afirmativa, lutadora e convicta !...
A mãe já diz : "não gosta de ser contrariada !"... o que me deixa uma perplexidade atroz ! ( ahahah )

Em suma ... a Teresa já mostrou ser uma guerreira, uma lutadora ... quem sabe também, uma sonhadora em potência ?!

E por tudo isto, e porque a riqueza das nossas vidas é por aqui que passa ... e porque são e serão eles o nosso "eco"no amanhã ... é que hoje amanheci mais rica, mais disposta e feliz !
Resta-me desejar que os caminhos a serem percorridos lhes sejam mansos ... que reúnam a força e a coragem para sempre alcançarem os horizontes que as desafiem ... que a tenacidade e a confiança lhes norteiem os dias ... que a esperança e a fé no acreditar, as não abandonem ...
... porque sempre, a Vida será de quem OUSA !

Anamar

sexta-feira, 9 de junho de 2017

" ACHO QUE FOI UMA COISA DE PAIXÃO ... "





Portugal está na moda e Lisboa está um deslumbre !!!

Pude constatar isso ontem, quando, fazendo tempo para uma conferência sobre o Testamento Vital, me passeei sem rumo ou hora, pela baixa pombalina.
A luz e a cor daquela cidade, fazem-nos sentir de facto, "em casa".  Numa casa que não se explica, não se define, não se iguala em lugar algum do mundo !

Rebolando colina abaixo, espreguiçando a sua vaidade no azul do Tejo, de águas mansas e doces, Lisboa é um convite permanente, um desafio inquestionável, uma sedução única ... um caso de amor !
Os cheiros, os sons, a claridade de um sol generoso, são pintura em 3D, feita por Pomar, por Cargaleiro, por Almada, Vieira da Silva ... por Maluda...
A brisa que lhe despenteia os cabelos, perde-nos o olhar na embocadura daquele rio, lá longe, na linha do horizonte, e o sussurro das tágides que por ali deambulam, transporta-nos oniricamente ao tempo em que o Cais das Colunas albergava mais que turistas, gaivotas e sonhos de marinhagem ...

E os olhos perseguem o volteio daquele palmípede residente, acompanham o grasnido das gaivotas e o arrulhar dos pombos naquela praça, donde tantos e tão valorosos nos levaram mais e mais, mundo fora !
E recreava-se sem esforço de imaginação histórica, a azáfama desses tempos.  Ouvia-se o ranger do cordame das naus aportadas.  Sentiam-se a ansiedade dos que partiam ... a coragem também dos que ficavam ...

E estava tudo por lá, que eu garanto !

E havia uma serenidade por entre o "brouhaha" dos passantes.  Havia um silêncio que apagava os desmandos civilizacionais dos excessos.  Havia uma gargalhada descarada, de Lisboa-menina a sentir-se desejada, cobiçada, amada ... como mulher, travessa, provocante e ladina !...

No alto, em coroa de glória, o Castelo assomava.  Os jacarandás em flor neste Junho lisboeta, exibiam o lilás dos seus cachos pendentes, nas praças e nas avenidas.
O "mestre" continua a acenar do Martinho, ou refastela-se pelo Chiado, na saudade de um café na Brasileira ...
O "manto diaphano da phantasia" continua cobrindo a nudez forte da verdade, de um Eça que por ali perambula ... e Camões lembra o que é / foi, ser português ...
O Adamastor desafia os mares, desde o cocuruto de Santa Catarina e o Santo António está aí, para nupciar uma outra vez, com a mulher que sempre lhe é fiel : Lisboa !
Tudo se prepara já.
Os festões, as grinaldas, os balões, os arcos e os tronos, abrem os bairros ao olhar enternecido de quem por eles se passeia.  As marchas descerão às ruas, na ilusão de acontecimento único...
E o cheiro das sardinhas assadas, o aroma dos manjericos e a doçura das quadras de "pé quebrado" que os adornam, remetem-nos mais e mais para a "nossa terra", para a nossa genuinidade, para a nossa verdade !

E é um orgulho sentirmo-nos pertencentes a este chão, falarmos esta língua, termos o sorriso aberto e desarmado de corações hospitaleiros, vivermos a simplicidade  de  um povo sem pretensões ou sobranceria, termos a alegria de sermos simplesmente portugueses !

Afinal, aqui neste cantinho de uma Europa desarticulada, neste rectângulo de terra quase a despencar no Atlântico, temos a singularidade apaixonada dos povos latinos, temos o calor que de África nos aquece a alma, temos os sonhos de quem não desiste e a tenacidade de quem acredita !...

Lisboa, ontem, segredou-me tudo isto ao ouvido.
E a paz e uma tranquilidade promissora, tomaram-me e esperançaram-me.

Acho que se tratou mesmo de "uma coisa de paixão " !...

Anamar