segunda-feira, 30 de março de 2009

"AS MINHAS PÁSCOAS"

 


      NOTA:  APERCEBI-ME QUE ESTE POST, ESCRITO A 30 DE MARÇO DE 2009 NÃO FOI PUBLICADO, PENSO QUE POR DISTRACÇÃO.  SENDO ASSIM, E AINDA QUE FORA DE ORDEM, MUITO FORA DE ORDEM MESMO, AQUI VAI, UM POUCO DESINSERIDO....


«Ladainha dos póstumos Natais»

«Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito»


David Mourão-Ferreira, in "Cancioneiro de Natal"

David assaltou-me o espírito e perturbou-me a paz..."Porque há-de vir uma Páscoa e será a primeira em que terei de novo o Nada a sós comigo..."

As minhas Páscoas, que já se diluem pelas curvas das estradas lá para trás, passam por Alentejo, onde há dois resistentes apenas, da ampulheta dos tempos; passam por casa de avós de paredes roliças, chão de tijoleira, mesa a perder de vista (para albergar os tantos que então éramos)...casa alienada, em que a porta, as janelas e o portão incólumes, nos reavivam a mente ao relembrar tudo o que estava por detrás e não está mais...

As minhas Páscoas passavam por ovos, amêndoas, merendeiras, bolos de folha, queijadas, folares em forma de "pintainhos" para a pequenada, numa azáfama de alegria espalhada pela chegada dos ausentes, pela Primavera anunciada, pelo reencontro da célula familiar...

As minhas Páscoas, passavam por vestimenta nova na missa da ressurreição, pelo recolhimento sepulcral e fúnebre, na procissão escura e carregada do "Enterro", pela luz, pela cor, pela ingenuidade carregada nas braçadas de flores dos querubins, que com asinhas e coroinhas, ladeavam os andores engrinaldados de glicínias e flor da Páscoa...no Domingo.
Passavam pela Banda Filarmónica, a rigor, pelas ruas da vila, pelas melhores colchas de seda e damasco dependuradas das janelas, pelos cânticos dos cordões humanos que pedindo ou agradecendo, deixavam consumir uma após uma, as velas de cera, no atapetado de pétalas do empedrado, entre cânticos e louvores...

As minhas Páscoas eram uma avó de lenço na cabeça, e avental em torno da cintura (vestida de negro contrastante com a alvura dos cabelos, presos desde sempre, em carrapito), com um regaço generoso e farto, capaz de ser ninho de todos os netos que a rodeavam; eram uma tia-avó solteirona, com alma de criança entre a criançada... eram pais, eram tios, eram primos...era o ensopado de borrego, os pezinhos, cabrito assado ou favas em profusão de coentrada, num ritual inalterável ano após ano, geração após geração, vida após vida...

As minhas Páscoas hoje, são de figuras pardas, bonequinhos de caixa de música que estacaram lá muito longe, como se lhes tivesse falhado a corda, imobilizados pelo decurso dos tempos, cheirando ao rosmaninho, à esteva ou ao alecrim, que aromatiza os campos nestes tempos de "Ramos", em fim de Quaresma...

As minhas Páscoas foram...as minhas Páscoas pouco são...as minhas Páscoas um dia deixarão de ser...

Tal como David Mourão Ferreira..."Há-de vir uma Páscoa e será a primeira em que se veja à mesa o meu lugar vazio"...

Anamar

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