E por estranho que pareça, ano após ano, sempre sinto a mesma coisa, no dia de hoje.
O Homem é um animal de hábitos, o Homem interioriza o que repete. E quando a repetição é de uma vida, as emoções instalam-se algures por aqui, e não há quem tire ...
Inicia-se mais um ano escolar.
Há quatro que me afastei da escola.
2009, foi o último ano da minha carreira, que abri e não fechei.
Iniciei-o, mal suspeitando que dois meses depois, estaria a encerrar portas, por razões de saúde.
Desde então, foi como se tivesse tomado um qualquer antídoto, que me imunizasse numa espécie de protecção quase irracional, contra mais de trinta e seis anos de ensino ... a minha vida !
Quem é, ou foi professor, sabe bem que trinta e seis anos de ensino, correspondem a trinta e seis anos de vida, porque os tempos de entrega e dedicação, são nesta profissão, absolutamente integrais e absorventes. É seguramente maior, o cômputo horário passado na e para a escola, do que o dispendido em casa, ou com a família.
Todos sabem isso, mesmo os que tentam escamoteá-lo.
Saí por razões de saúde, como disse, potenciadas e agudizadas, por todas as reformulações de má memória, implementadas pelos sucessivos Ministérios, de uma forma arbitrária, prepotente e cirúrgica , que não sossegaram até que uma sangria de docentes, com ou sem condições de aposentação se iniciasse e se estendesse até aos dias de hoje, numa liquidação liminar do Ensino Público.
Atropelo de medidas absurdas, de reformas arbitrárias, de leis idiotas, que burocratizaram inapelavelmente a docência, reduzindo-lhe qualidade, retiraram a exequibilidade da concretização e avaliação da sua aplicabilidade, criaram conflitos entre os pares ( estimulando, por sobrevivência, o pior que as pessoas tinham dentro de si ), descaracterizaram as escolas, que deixaram de ser as "nossas" escolas, e se tornaram impessoais e desumanizadas, quase locais de tortura !...
A insegurança e a incerteza dos futuros profissionais dos docentes, ano após ano, conferiram-lhes inerente cansaço, desmotivação, raiva, tristeza, desaposta ... estimularam-lhes alguma indiferença ( porque afinal, há que sobreviver ), e instalaram-lhes patologias das mais diversas naturezas.
O abandono desencadeado, e inevitável por parte de quem pôde, a qualquer preço, pegar uma bóia e saltar para a água, atingiu níveis inaceitáveis !
E aí temos nós, milhares e milhares de pessoas absolutamente válidas, experientes, sabedoras, dedicadas ... tristemente irradiadas por "moto próprio", indignamente tratadas socialmente, em condições economicamente débeis ( comparativamente a outros profissionais, em igualdade de competências ), a viverem o seu desencanto, a sua mágoa ... a sua saudade ... na busca do esquecimento, do apagar da vida, do virar da página, afinal !!!
E depois chegam dias como o de hoje !
Todos os anos há um dia igual a hoje ...
E queiramos ou não ( sei que não é seguramente exclusiva, esta sensação de desconforto e melancolia ), sente-se um remexer das entranhas, sente-se um subir da ansiedade no peito, um aperto na garganta, que não desce ... sente-se uma estranha afobação, uma espécie de premência horária, como se já fossem horas, como se já estivéssemos atrasados, como se nos esperassem ... alguém, algures ... e não pudéssemos faltar à chamada !
E bate uma saudade !...
Sim ... bate uma saudade !...
Já olhei com olhos distantes e nublados - distância de anos, distância de vida - a pasta dependurada ainda, na cadeira da sala, naquela última noite, e que eu nem adivinhava então ser a última, recheada com tudo o que continha, e que não desmanchei, porque me queima as mãos ... ou melhor, penso que me queima o coração ...
Juntamente com os dossiers, as borrachas, os lápis e as canetas, secas dos tempos, ela está pesada dos sonhos que foram, das esperanças alimentadas, dos afectos que por lá ficaram, das recordações que se recusam a morrer ...
Ela tem lá dentro, mais de metade de uma vida, a minha, muito do melhor de mim, todas as minhas vitórias, o meu esforço, as minhas tristezas, as alegrias e as frustrações também ... A realização pessoal que consegui alcançar.
E tem lá dentro, ainda, pedaços de muitas outras vidas, que o destino determinou que haveriam de cruzar a minha ...
Com elas, desenhei o meu, compus a minha história, fiz-me a mulher que sou ... e a elas, por isso, sou profundamente grata, sou eternamente grata !!!...
Hoje, os meus três pequeninos rumaram de novo à escola.
A minha "turminha" de coração, nos seus 6, 9 e 12 anos, de uniforme vestido, mochila nas costas, muita alegria nos rostos, euforia, e entusiasmo, nos sonhos e espectativas que os norteiam ... como "bando de pardaia à solta" ... lá foi ...
Na fila de trás, bem cá atrás, a humilde "mestre escola" que eu fui, torce, para que os responsáveis deste País, se conscientizem da "matéria" delicada e sensível, que possuem nas suas mãos : a enorme, incontornável, e inalienável responsabilidade de serem os mentores sérios, do futuro destas gerações, e do futuro de um país, que é também o deles.
Em suma, de serem os norteadores de jovens que têm direito a um amanhã aqui,, no chão que os viu nascer, junto da sua gente que os ama, num Portugal que neles está a investir, e que neles revê a esperança de se agigantar outra vez !!!...
Anamar
3 comentários:
Importas-te que subscreva?
Malmequer
Olá Malmequer
Calculava que subscreverias .... Por que será???!!! ahah
Beijinhos grandes
Anamar
Subscrevo
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