segunda-feira, 9 de setembro de 2013

" A GENTE QUE NÓS SOMOS "



O tempo continua insuportável.
A minha casa parece uma câmara de incineração, antecipada ...  E contra tudo o que gosto, me agrada e sempre defendo, resolvi ir à praia ... da Linha, e ao domingo !!!  :(
Um cúmulo de incoerências minhas, decididamente ... o que me relembra, que nunca se diga "nunca" !

As praias da  Linha, são,  como sabemos,   ponto de convergência de multidões, devido à proximidade e fácil acessibilidade, da Linha de  Cascais, e da Linha de Sintra também.
Fui ao domingo, porque em desespero de causa, recusei passar outro dia enfiada entre quatro paredes, na meia obscuridade das janelas fechadas, por via do calor, a esperar apenas o escoar das horas. 
Pelo menos, com um sol ofuscante  bem por cima da moleirinha, e no meio de milhares de pessoas que seguramente ali demandaram, consegui abstrair do que me rodeava, e com a minha música nos ouvidos, consigo ilhar-me, às vezes admiro-me, o quanto !!!

Bom, mas escolhi uma praia "de verdade", sem sombra de dúvida.  E aos domingos, é obviamente mais "de verdade" ainda ...
Passo a explicar : decidi-me por Carcavelos, grande areal, água mansa, uma brisa a favorecer.
Ao longe, nas costas do mar, com uma bordadura de palmeiras, abaixo da linha da Marginal ( onde os carros aceleram a qualquer hora ), brinca de praia tropical, de palmeiras e coqueiros.
É só fechar os olhos, e imaginar !

À hora a que cheguei, oito da manhã, a ausência de gente, e as areias apenas povoadas por gaivotas e pombos ainda adormentados, até colaboravam .
A minha raiva começou a aumentar, à medida que o pessoal,  invadindo o areal, desatou a ocupar todos os centímetros quadrados de areia, que pôde.  O bando das gaivotas bateu mar adiante, o que é sinónimo de que o seu  sossego terminou ... e o meu também, obviamente .

Mas dizia eu, que fui a uma praia "à séria".
De facto, trata-se de  uma praia democrática, multicultural, bem internacionalizada.
A "marabunta" compõe-se de autóctones,  em maioria  ( embora entre eles, se distinga claramente a presença de alentejanos e de tripeiros ... está a ver-se  porquê ... ), africanos ( em chusmas ), chineses, indianos, e significativa presença de cidadãos de leste ( e aí, só por adivinhação se concluiria da real nacionalidade, porque as "curvas" da língua são as mesmas ).

São famílias inteiras e acólitos, são crianças e criancinhas.
Gente "autêntica", que fala aos berros, não se furta ao vernaculismo da linguagem, e distribui tabefes e safanões pelas crianças, que como quaisquer crianças que se prezem, são malcriadas, insubordinadas e reivindicativas.

A praia é um local óptimo, para, na sombra abençoada do chapéu de sol, se falar horas no telemóvel.
Tem-se  todo o tempo do mundo, e essa é a melhor altura para se porem em dia, as novidades acumuladas, se "despachar" em matéria laboral, se contarem - para o nosso receptor, e já agora todos os receptores a meio metro de nós - as mágoas, as desgraças, as aventuras ... enfim, todos os acontecimentos que fariam manchetes interessantes, do Correio da Manhã do dia seguinte !...

Ali não há "mise-en-scènes",  nem  " faz de conta ", ora essa !...
Ali, o "povão" é povão real, mesmo !   Nada dessas figurinhas virtuais, estilizadas, dos "jet-sets" das badaladas praias algarvias, de noites brancas e festas absolutamente "inn", dos clubes onde convém aparecer.
Ali, não há silicones nas mamas, nem corpinhos bulímicos de sereias desfilantes.  Em suma, não há gente de plástico !
Ali, os machos exibem-se como a  Natureza os programou ...  Nada das depilações absurdas, que lhes revelam peitinhos e braços,  de verdadeiras damas ebúrneas !!!
Ali, desfila o músculo e a gordura, a celulite e a flacidez, as barrigas e os estômagos de cerveja, as peles pendentes e o encarquilhamento dos anos ... tudo ao vivo e a cores, sem "maquilhagens" ou disfarces ... a vida ao natural !!!

Por outro lado, o "povão" é expressivo e exuberante.  O povo não se coíbe nas manifestações que exterioriza, não tem as preocupações do socialmente correcto, do adequado, da censura de classe ... as "frescurinhas" do bem parecer ... O "povão" tem direitos ... "que gaita" !  "Quem está mal, que se mude ... era o que faltava !! " ...
E ali, a praia é de todos, e muito mais, "sua" ...
Por instantes, tive um flash do "Pátio das Cantigas", do saudoso Vasco Santana ...
Por  instantes,  revi  Fellini,  na  Sicília ,  anos  vinte ....  Por  que  seria ???!!!...

Uma  constatação assaz interessante, que me surpreendeu pela incidência verdadeiramente perturbadora, foi a  progressiva  rentabilização que as pessoas inteligentes fazem,  dos metros quadrados da pele de que dispõem, na exibição de obras de arte espantosas, assim, gratuita e generosamente ...
Um contributo para a democrática "arte de rua" !!!

Sabe-se que nas ruas e avenidas, existem outdoors que devem custar os olhos da cara, a quem, neles,  pretenda publicitar  imagens, ideias, frases,  propaganda política emocionantemente criativa ... tudo isso ...
Ora se o ser humano dispõe de verdadeiros painéis de exposição, inteiramente à borla, por que não mostrar ao mundo, tatuagens comoventes, pictogramas criativos, mensagens emotivas ???
Há que aproveitar cada recanto, cada pedacinho mesmo recôndito, cada superfície devoluta dos corpos, para expor, expor, expor ... o dragão, a fénix, o peixinho, a ave planante, os amores todos que se foram,  em corações de cupidos trespassados, o escorpião, a borboleta, emaranhados arbóreos de floresta virgem, tudo, tudo ... generosamente, numa mostra gratuita ao mundo ... como aliás, deverá ser a cultura !!!

E como há imensos gordos ( está provado que a obesidade é actualmente, das mais graves pechas da humanidade ), os metros quadrados de pele, disponíveis, aumentam portanto, exponencialmente.
E porque a beleza de uma obra de arte deve ser usufruída indistintamente por todos, e há que veicular a cultura de um povo ... os corpos recobrem-se de "pinturas rupestres", de alto a baixo, ao alcance de qualquer olhar !...
Assim se vê bem, o espírito de mecenato da nossa gente !...

Também na morte, o ser humano é bem diverso !

Ontem fui a um funeral.
Tratava-se de alguém relativamente novo ainda.  Pertencendo a uma classe média-alta, e sendo administrador de uma multinacional,  inseria-se claramente num estrato social  economicamente elevado, com um círculo de relações consequentemente condicente.
Não me era muito próxima, a pessoa em causa.
Estive presente portanto, por cordialidade, por norma de convivência, apenas.  Ocupei por isso, uma posição confortável, de espectadora do circundante, sem que o envolvimento emocional me perturbasse.

Não havia lágrimas, não havia desespero, não havia drama.
Tudo muito civilizado, bem contido, correctamente enquadrado ...
Tudo muito "frio", muito apropriado, muito notícia da "Hola" ...
Tudo demasiadamente "cool" !...
Na verdade, nada  que  se  assemelhasse  a  um  funeral  "a  sério",  portanto ... ( pensava  eu ) !!!...
Mas  o  que  é  facto,  é  que  esta  também  é " a  gente  que  nós  somos " !!!...

Bom, e  já dissertei que chegasse, sobre ela, sobre  as personagens que nos cruzam, e que são a nossa própria  realidade.   
Penso que tudo isto é nacionalmente genético, é herança cultural, é especificidade de se ser português, de sermos este povo aqui, neste retalhinho de terra, entre o mar e a montanha ...

Tudo isto é muito " a nossa cara", o que transportamos nas veias, e o que contemos na alma, nesta Europa de sul, visceral e sanguínea, impulsiva e autêntica ...

Tudo isto é a genuinidade da nossa gente, do tal "povão", que mesmo espartilhado pelas condicionantes com que a sociedade o limita e castra, pelas  regras  que  lhe  impõe  e  dita  ... sempre  é  igual  a  si  próprio, sempre  é  autêntico  e  verdadeiro,  em  qualquer  lugar !!!...

Anamar

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