terça-feira, 19 de novembro de 2013

" DEIXANDO VOAR O PENSAMENTO ... "



O tempo virou de vez.  O sol  faz negaças  no meio de nuvens persistentes, e não consegue ser convincente, até porque a temperatura baixou drasticamente.  Afinal, já neva na Estrela ...

As castanhas já se assam nas esquinas das ruas, e o seu calorzinho, nos cartuchos de jornal, não só nos aquece as mãos, como também nos aquece a alma, já que aqui na cidade, não temos o privilégio de sentir o aconchegante cheirinho das lareiras acesas, que os meios rurais nos oferecem, e que tão gratificante é ao coração.

Adoro uma lareira.
Adoro passar tempos perdidos, olhando apenas o bruxulear das chamas, cutucando as brasas, até que a última se extinga.
E não deixa de ser engraçado, que essa seja a recordação mais grata, que tenho da Beira, de há muitos anos atrás, na casa que então era de família.

O frio gélido desta época do ano, beirando o Natal, cá fora, o calor confortante do lume, aceso desde manhã, e que ardia até toda a gente se recolher, uma sala de pedra e madeira, na meia obscuridade de um só candeeiro de mesa, aceso, e um silêncio e um recolhimento tão intimistas, tão doces, tão pacificadores !...
E ali ficava eu ... Eu e eu, que foi a pessoa com quem sempre tive encontro marcado, já então ...

E punha mais um tronco, e revirava os que já ardiam, e por fim, espalhava a cinza, para que as últimas brasas acesas, dessem o derradeiro calor da noite.
Às vezes só isso.  Nada mais ...
Às vezes não lia, não via televisão, não ouvia música, que não a do crepitar da lenha na fogueira ... às vezes, muitas vezes, apenas pensava, pensava muito, sentindo claramente uma incompletude de vida, de sonhos cortados  a  meio, um  vazio de  alma, uma  ausência  de  direcção, de  rumo, como  barco  de  leme quebrado, e  velas  sem  vento ...

Não sei se ali delineei conscientemente, o que viria a ser a minha vida anos mais tarde.
Não sei se ali percebi, que um dia diria adeus àquela sala de madeira e pedra, de móveis antigos, de louça de outras gerações, de relógio de pé alto e pêndulo, que nunca deu horas, de peças escolhidas por mim, uma a uma, ao longo dos tempos.
Não sei sequer se sonhei todo o percurso que viria a ser a minha vida, as curvas e contracurvas, os caminhos de saídas estreitas e difíceis de encontrar, os becos, as veredas que pareciam não ter horizonte lá ao fundo, ou também os momentos de paz junto ao mar, de  descanso  junto  de uma fonte, de sombra sob uma copa frondosa.
Não sonhei ... seguramente.  Não poderia !...

Aquela sala era o coração daquela casa, e aquela lareira, o pulsar desse coração.
Era uma réplica muito longínqua, da que existira em casa dos meus avós, na minha meninice.
Essa, então, como todas as lareiras a sério no Alentejo, era no chão, mesmo, na tijoleira de barro cozido, e ocupava o fundo da enorme cozinha, de parede a parede.
Lembro-me que os madeiros com que o meu avô a acendia, vinham a rebolar pelo quintal fora, porque ninguém podia com eles.

A casa de pedra e madeira já não é minha, mas lá, ficou enterrado para sempre, um pedaço do meu coração.
Ele está em cada peça sobre os móveis, em cada braçada de flores do campo, secas, nos jarros de loiça gatados, em cada fotografia das minhas filhas, quando crianças, nas molduras espalhadas ... em cada silêncio, em cada sombra, ou até em cada rajada do vento cá fora, soprando desabrido, do lado do rio.

Nada  disso  me  pode ser sonegado, mesmo  que  nada  já exista como eu  deixei  naquele  dia, em  que não  sabia  sequer,  que  estava  a deixar ...
Porque tudo isso eu amei e tactuei na minha mente, porque tudo isso eu sonhei, e o sonho é propriedade do Homem.  Nele, ninguém interfere, ele, ninguém apaga, ninguém destrói ... porque é seu, só seu !!!...

Suponho que não gostaria de lá voltar, porque ninguém, afinal, faz voltar o tempo !
Há filmes que vemos uma só vez na vida, e que vamos recordar sempre, longinquamente, como algo doce que nos marcou, de que não esqueceremos sequer, pormenores.
Apenas, são imagens a esbaterem-se, a fugirem-nos da mente, à medida que a Vida flui, à medida que o tempo vai passando a borracha sobre elas, e depois fica assim ... uma sala obscurecida, uma luz difusa, uma lareira a extinguir-se, e um silêncio quente a embalar a última cena ...

Anamar



 A vida é um incêndio, nela dançamos salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam, cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida, na própria luz consumida...
Mario Quintana

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