domingo, 1 de dezembro de 2013

" O IMPROVÁVEL ... "



As gaivotas já volteiam por aqui.
O dia está totalmente fechado, a falésia desenha-se fantasmagórica na linha do horizonte, lá longe, no entremeio da ramagem.  Está uma temperatura atmosférica demasiado baixa.

Contei-as ... uma, duas, três, em formação rectilínea, de asas esticadas frente à vidraça, que não convidava a que se entreabrisse.
Há de certeza tempestade no mar, porque elas voam determinadas, em busca de comida, e não em espreguiçamento lúdico, como gostam de fazer, aproveitando os golpes da aragem.
Chove, chove aquela chuva miudinha, que por indefinição, se torna irritante.
Há desconforto à minha volta. Há desconforto dentro de mim ...

É Outono, mas lá fora, apenas algumas das árvores circundantes daquela casinha, com uma porta e duas janelas, de bordadura azul e cortinas de renda no postigo, começavam a amarelecer.
O verde ainda predominava por ali. Afinal, o terreno não regateava a água que escorria das encostas.

Da escrivaninha envelhecida e bichada, da casa dos avós, encostada ao parapeito da janela  ( para que o jarro antigo mantivesse bem vivas as flores frescas, que sempre fazia questão em colocar-lhe, mercê da luz que por ali penetrava ), e onde o candeeiro aceso,  sempre  dava  um  ar  acolhedor  e  intimista  àquela sala,  vista  de  fora ...
da escrivaninha envelhecida, dizia, podia ver a cancela atamancada de velha, com uma aldraba a pedir conserto, que rangia nas dobradiças, aos abanões implacáveis do vento, podia ver o caminho que se desenhava adiante, e lá longe, como disse, a falésia rochosa sobranceira às águas zangadas do Atlântico ... e não mais ...

Aquela casa fora a concretização dum sonho muito recuado, quando o cabelo ainda não lhe embranquecera, o xailinho de lã pelas costas ainda era dispensável, e os óculos de leitura, ainda não precisavam de andar ao peito.
Fora a busca de uma felicidade e de uma paz, que acreditara encontrar na simplicidade dum lugar de verduras não presumidas, de árvores espontâneas, de algumas flores ( não muitas ), com que resolvera brincar de jardim inventado, e de meia dúzia de gatos seus, meio a meio com a natureza.
Todos amigos, todos matreiros, todos espevitados, ronronantes e preguiçosos à lareira.
Um preto, dois amarelos, um "querubim" de olhos invejavelmente azuis ... e mais uns malhados, que surgiam do nada, na hora da janta, e que nos frios e intempéries de Inverno, como  hoje, apareciam  como  pedintes, a  fazer-se  ao  resguardo  do  conforto  do  lar ...

À volta daquela casa de brincar, havia o silêncio, aquela angústia doce de recordações nunca arquivadas, o chilreio franco das aves veranis, ou o piado das corujas lá longe, na serra.
No seu interior, havia silêncios cúmplices, de serões frente a bons braseiros, com mantinhas de lã nas pernas, e boas leituras partilhadas, mantidos na certeza de que outro coração, outra  mente,  outro  colo  e outros  braços,  estavam  de  aconchego,  sempre  presentes ...
Havia a verdade que só as madeiras velhas garantem, as loiças gatadas comprovam, as braçadas de flores campestres e secas, espalhadas pelos jarros,  em coroas dependuradas nas paredes, ou em cestas sobre os arcazes velhos, as fotografias a sépia, ou a preto e branco, despretensiosamente relembram ...
Havia a genuinidade do que é simples e autêntico ... afinal, como o amor que tão curto no tempo, ali foi vivido !...
Àquela casa, batiam-se palmas a anunciar a chegada, o carteiro trazia de quando em quando, notícias dos demasiado ausentes, porque as lembranças dos sempre presentes, já só existiam nos corações...
E já passara tanto tempo !...

Hoje, as gaivotas já volteiam por aqui.
O dia está totalmente fechado ... e nem a falésia se distingue lá longe.
Está frio, chove, há solidão, saudade, silêncio...demasiado silêncio ... a única herança sobrante !

Há desconforto à minha volta. Há desconforto dentro de mim ...
E uma lágrima rolou, quando olhei uma outra vez, aquele papel amarelecido e velho, que os anos adormeceram, que ficara religiosamente sobre a escrivaninha bichada, e onde se escrevera em letra miúda, o epílogo daquela frase iniciada por mim, há que anos ... e interrompida pelo destino  ... " e no entanto eu amo-te  perdidamente  e  tenho  saudades  loucas  tuas,  perco-me  nos  meus  sonhos  contigo ... sempre !..."

" Um sonho sonhado sozinho é um sonho. Um sonho sonhado junto, é realidade ".
Curta, esta nossa realidade ...  Nem sei se chegou a ser sonho !!!...

Anamar

4 comentários:

Anónimo disse...

Muito interessante a sua escrita, nao lia nada semelhante desde Simone Beauvoir.
Diga-me pf onde posso encontrar a venda as suas publicacoes.
Joao Salavisa

anamar disse...

Olá João

Comparar-me a Simone de Beauvoir, seria uma honra se fosse realidade. Mas agradeço na mesma.

As minhas publicações...não encontra. Eu nunca publiquei, mesmo já tendo sido instada a isso, muitas vezes.

A minha escrita não traz nada de novo a ninguém. Apenas me realiza a mim, e faço-o, por isso, desde que me conheço.

Um abraço
Volte sempre

Anamar

Anónimo disse...

tenho pena que no publique, eu compraria os seus livros estou convicto que muitas outras pessoas o fariam.
Salavisa

anamar disse...

Pois João ... não costumo sonhar acima do "provável"... rsrsrs

Anamar