sábado, 21 de dezembro de 2013

A "TERRA"...



Costuma dizer-se, que quem nasceu em Lisboa, não tem terra .
Isto, porque a capital é um puzzle de peças, de todo o país.  Foi portanto trazida à cidade, uma multiculturalidade tão diversa, que penso que verdadeiramente sua, em tradições e costumes, é inexistente.

Estou a pensar na quadra que atravessamos, o Natal, que como exemplo, continua a levar as pessoas " à terra " para o passarem, porque lá encontram os seus, as suas raízes, tradições, as vivências que os terão acompanhado ao longo da vida.
A " terra" ... aquele torrão onde nasceram, que as viu crescer, onde se perceberam gente, um dia, e onde estão enterrados os que já partiram, onde as coisas e as memórias lhes fazem sentido.
Os cheiros são nossos, as cores são nossas, os sons também são nossos, e sempre se opera um milagre de uma tão grande fusão, que nos aquece por dentro !

Vêm os emigrantes, chegam os migrantes, busca-se um sentido de vida, apelativo a partilha, sobretudo, e muita cumplicidade ... porque há uma linguagem, uma qualquer corrente emocional e afectiva, comum a todos, que nunca nos deixam  indiferentes.
Essa, a razão de uma urgência na viagem, uma pressa de chegada, uma alegria interior que nos põe o coração aos pulinhos.
Há um entrosamento que não passa por religião, por evento social, pela exigência de calendário, pela hipocrisia que se vive na cidade grande, tão anónima, indiferente e "fria" !
A " terra ", a bendita terra, ainda guarda a ingenuidade, a pureza, e a autenticidade das coisas simples, para receber quem a busca.

Eu sou alentejana, logo, teoricamente, eu tenho " terra ".
Apenas, tristemente, nessa terra que agora me surge lá tão longe, resta-me um único familiar.
Todos os outros, são memórias, são fotografias, são vozes que ainda se escutam, são hábitos  que ainda se  recordam ... são  sítios,  apenas !
As casas estão lá, embora agora pareçam "fantasmas" nas nossas vidas.  Aquelas casas descaracterizadas, fecharam as portas que tantas vezes atravessámos, desde meninos, ao longo dos tempos;  imaginamo-las deserdadas de todo o recheio que tocávamos, inodoras dos petiscos da avó e das tias mais velhas ou mais novas, órfãs de todas as canções de Natal, partilhadas então à lareira, geladas, porque o calor dos corações já não pulsa naqueles espaços, e as alegrias já não têm veias para circularem ...

E sentimo-nos repentinamente espoliados, roubados injustamente.  Parece que o justo, seria que tudo aquilo continuasse a ser nosso, tivesse sido nosso "ad eternum" , fosse pertença intocável ... as coisas, os sentimentos, as vivências, mas sobretudo as pessoas ... E que tudo o mais, não faz sentido !...

Já não vou portanto, à "terra" ...

Agora, como filhós de contrafacção, como rabanadas atamancadas pelo fabrico em série, sonhos, que muitas vezes, de tão enzeitados, viram pesadelos, azevias a fingir que são as " nossas ", roubadas no recheio de grão, e que eram feitas por aquelas mãos sábias, que se foram .
E mesmo o bolo-rei, que ainda tinha prenda e fava, e que lá não existia, começa agora aqui, a ser já enteado na mesa da consoada ... Ninguém lhe pega !...

Aqui, é frequente o bacalhau comprar-se já empratado, porque não há tempo para confecções ( as pessoas trabalham no próprio dia da consoada ), e também já não é com as couves, as batatas e os ovos, regado com o bom azeite alentejano ( o  que  já  não  garante,  obviamente,  a  almejada  "roupa velha"  no  dia seguinte ) ... mas sim um "rafiné" bacalhau "à qualquer coisa" ... ;
o perú chega-nos feito também, e com um bocadinho de jeito, até fatiado mesmo, porque é muito mais prático ser só aquecê-lo no forno, em cima da hora ;
os doces, serão três ou quatro, e não a prodigalidade que decorava aquelas mesas gulosas, de antanho.
Não incluem seguramente o arroz doce, bordado desmesuradamente  com canela, pela avó, nem a aletria, nem o leite-creme, que serão substituídos por algo menos "prosaico", e consequentemente mais criativo e "requintado" ...

O cheiro da caruma a crepitar não se ouve já, os fumos a saírem das chaminés na noite gelada, também não se vêem mais ...
O aquecimento central, de muitos apartamentos de hoje em dia, pretendem substituir as "nossas" cúmplices lareiras, são confortáveis, impecavelmente "clean", e adequados ao requinte da casa ...
Por isso tudo,  fica aquela coisa "desasada", desenxabida, insossa, do Natal das pessoas sem "terra" !!!...

Bom, mas depois há ( e são cada vez mais ), os que têm por tecto, as estrelas quando brilham, qualquer portada mais resguardada ( onde os deixem ficar ) como cama, os cartões e alguns cobertores com que se cobrem, os andrajos que nunca despem, e o gelo da noite que nunca perdoa ...
E  ... que pelo menos o sono misericordioso os invada, e os proteja de pensarem ou recordarem, a " terra ", e o Natal que um dia tiveram, ou não !!!...

Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

Bom Natal para ti.
Eis uma tradicao em desuso, talvez venha novamente a ser alimentada pelas novas geracoes de emigrantes criadas por esta crise.
J. Salaviza

anamar disse...

... já que os que ainda a viveram e dela desfrutaram, por vezes já nela não apostam, por se sentirem defraudados, ou já terem esquecido raízes ou sentimentos ...

Bom Natal também, e um auspicioso 2014 ( a esperança nunca morre, não é ? )

Anamar