sábado, 7 de dezembro de 2013

" AQUELA HISTÓRIA "



Há mil histórias iguais, mas aquela história, era "aquela" história !...

Do outro lado da rua, sentado na calçada, com as pernas cruzadas e a cabeça entre as mãos, estava aquele jovem.
Não olhava nada, nem ninguém, não erguia sequer a cabeça à passagem dos transeuntes, que o ignoravam e seguiam apressados.
Era magro, pobremente vestido, e tinha uma mochila nas costas.
A seu lado, sobre a calçada, estavam algumas moedas, ( poucas ), a maioria, de cêntimos, e pelo menos uma tablete de chocolate ( não sei se teria mais ... ), vi depois.

Eu passava em frente, do outro lado.  Olhei, e pareceu-me alguém que estivesse a sentir-se mal, que não estivesse bem, e para não cair, talvez se tivesse sentado ali, naquele sítio.
À distância, só vi um jovem esquálido, com as mãos a cobrirem-lhe o rosto ... desalentado, talvez em todos os locais do mundo, menos naquele ... quem saberia ?...

Hesitei.  Fazer o quê ?  Continuar o meu caminho ?
Mas ... pode ser alguém a precisar de ajuda, de socorro, alguém subitamente doente ...
E resolvi atravessar a rua.

Ao chegar junto dele, percebi que afinal chorava.
E nem à minha aproximação, levantou a cabeça.
Quando lhe perguntei se estava a sentir-se bem, se não precisava de nada, ergueu os olhos para mim, e disse : " Não, minha senhora. Apenas estou humilhado, muito humilhado ...  De vez em quando, tem que se chorar para aliviar a pressão, senão, sai-se por aí a cometer uma desgraça " !...

Era brasileiro, talvez vinte e poucos anos.
Disse-me que lhe custava muito, esmolar, porque não era dinheiro que queria, mas sim um trabalho que pedia.  Ele queria um trabalho, porque o dinheiro, por muito que lhe dessem, gasta-se, e um trabalho garantir-lhe-ia a sobrevivência.
Estava há quatro meses em Portugal, onde demandara só com a mãe, em busca da "vida" que a sua terra lhes negara.
Era neto de portugueses, embora já não tivesse família por cá.
Viviam na rua, segundo ele, e era maltratado e humilhado frequentemente, por aqueles a quem pedia trabalho, ou a quem tentava vender as tabletes de chocolate.

E dizia-me : " Não é preciso isso, pois não ?...  Uma  pessoa  tem  que  chorar, para  aliviar  a  pressão interior "!...

Tentei dizer-lhe meia dúzia de "tretas" de circunstância, daquelas coisas que se dizem sem convicção, que não servem para nada, que nos constrangem, apertam o coração, e de que temos a perfeita noção da irrelevância.
De qualquer forma, o Douglas ( era o seu nome ), estava emocionado porque alguém parara perto, e se preocupara com ele.
Dizia que ninguém tinha um minuto sequer, para o ouvir ...
Olhou-me e perguntou : " Você é psicóloga "?
Sorri e retorqui-lhe : " Não ! Eu fui professora ... e sou mãe "!...
"Ah ... por isso você me "viu", e teve tempo para me escutar "!...

Era quase uma criança que eu tinha à minha frente.  Uma criança sem sonhos, sem esperança, sem fé ...
Uma criança derrotada, a quem tinham roubado, cedo demais, a inocência !...

Dei-lhe algum dinheiro.
O ser humano sempre tenta resolver tudo com dinheiro, não é ?
Dar-lhe-ia muito mais, se pudesse ... dar-lhe-ia um trabalho, dar-lhe-ia esperança, devolver-lhe-ia um sorriso ao rosto macerado pelo desespero, dar-lhe-ia colo e embalo ...

Assim, disse-lhe apenas : "Não desista, lute, não chore perto da sua mãe, mas sobretudo, NUNCA se deixe humilhar !  NUNCA aceite da parte de ninguém, um mau trato gratuito !  Nenhum ser humano merece isso !
Posso dar-lhe um beijo" ?

Ele deixou-se beijar na testa.
Perguntou o meu nome, e sorriu, por ser o mesmo de uma sua bisavó.
Esboçou uma expressão triste e magoada, e disse-me : " Posso dar-lhe também um beijo na testa ?"
"Claro Douglas, claro que sim, e sobretudo não esqueça  o que eu lhe disse hoje, aqui !  Boa sorte, e não desista nunca !
A juventude e o coração ninguém lhe pode roubar "!...

Acenei-lhe, e em jeito de agradecimento pelo que lhe dera, ainda me disse : " Fique com isto !" - e estendeu-me o chocolate, que tinha para vender...
"Não ... É seu "!...

Atravessei a rua de novo, agora em sentido contrário, sem olhar mais para trás.
Não consegui.
Fiquei esvaída de forças, senti-me a mais impotente das criaturas viventes, fiquei com o estômago embrulhado, fiquei com um aperto no peito, e uma escuridão atroz na alma ... que nem consigo descrever ...

Há  mil  histórias  iguais,  mas  aquela  história,  foi  "aquela"  história !!!...

Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

Nestes tempos em que se homenageia Mandela, muitos passam mal, as crises economicas podem ser sinais de humanidade e de esperanca.
O seu geto foi magnifico.
J. Salavisa

anamar disse...

É...costuma dizer-se que é nos tempos difíceis que o Homem é capaz do melhor e do pior de si mesmo...

Aqui, foi simplesmente uma circustância que se me deparou, e a que obviamente não poderia ficar indiferente1

Obrigada

Anamar