Percebem ao que me refiro, com certeza...ou seja, à obrigatoriedade calendarizada, de se festejar algo a que chamam de Quadra Natalícia.
Abomino esta época, pelos seus rituais, pela imposição feita pela civilização judaico-cristã, em que quase todos fomos criados, e que estabelece um "figurino" a que até os mais resistentes se submetem.
Eu entro impositivamente nos moldes tradicionais e convencionais, sempre impositivamente, como digo, porque tenho uma família ( pequena, apesar de tudo ), conservadora, onde existem três crianças, que vivenciam a época, através do que lhes é veiculado, quer em casa, quer no colégio que frequentam, de índole eminentemente católica.
Assim, este evento não é para mim, nem mais nem menos importante que qualquer outro, e tem o mérito, e é apenas esse que lhe reconheço, de reunir quem se gosta e se quer bem.
Eu retirar-lhe-ia qualquer outra conotação, e reservar-me-ia o direito de o revivenciar, sempre, só e quando, me desse na "bolha" .... não mais!
Escuso de dizer que toda a parafernália material alucinada, com ele relacionado, desde a loucura das doses industriais de comida, às doses loucas de presentes e mais presentes, indiscriminadamente reclamados por crianças que teriam já obrigação e alguma consciência, ( mercê da idade ), de não ignorarem a realidade que nos cerca ... eu enjeito, rejeito e contesto ...
Mas enfim !...
Este ano, a minha mãe, pela primeira vez na vida, não quis estar presente.
Com quase noventa e três anos, já lhe é penoso aguentar uma noite que se reclama de longa, aguentar a barulheira de três miúdos em completo desvario e ansiedade, pela chegada do presumível Pai Natal ( há um deles que ainda acredita ), aguentar a deslocação do conforto de casa, ainda para mais, neste ano, com a intempérie que se fez sentir ... enfim, aguentar o sair da sua rotina diária, de nove horas da noite em vale de lençóis, jantar bem leve, e sossego de cabeça.
Dizia-me ela : "Um dia vão mesmo passar sem mim ... ", e portanto, pragmaticamente, não achou nenhum despautério, não estar presente já este ano.
Eu entendo-a lindamente, e certamente um dia, quando ela tiver efectivamente partido, talvez nao sintamos tanto a sua ausência.
Afinal, verdadeiramente, e isto o que p'ra mim é o Natal, é a possibilidade de festejarmos a Vida, quer dos presentes, quer dos ausentes, porque eles nunca morrem nos nossos corações ...
A minha filha mais nova, numa das profissões de carácter humanitário, no ramo da saúde, esteve também de Banco, durante esta noite.
Orgulho-me muito disso, apesar de não a ter tido connosco, à mesa do jantar ... Não estava ... mas estava !
E deve ser muito gratificante, particularmente nessa noite, ajudar a chegar a este Mundo, um novo ser, que inicia, sem o saber, o seu percurso, por aqui !
Há pouco, contava-me a Larissa, que é ucraniana, que por tradição, na terra dela, na mesa da consoada, sempre é posto um prato, um talher, e um copo, a mais.
No prato, "esquecem" um pedaço dos bolos tradicionais, no copo, colocam um pouco do vinho que degustam, sendo que, tudo isto permanece na mesa ao longo das festas.
Sobre as campas, deixam migalhinhas do pão e dos bolos da ceia, para que os passarinhos as encaminhem ...
"Corporizam" dessa forma, a memória dos que não estão mais entre nós !...
Enfim ... o que se sonha, o que se deseja, o que se concretiza, o que se recorda ... o que se espera ... ou o que já não !...
Tudo isto será Natal !...
E se reduzirmos o seu significado, ao seu REAL significado ... tudo isto será AMOR !!!...
Reflectindo a propósito, remeto-me a um pequeno texto de Pessoa, que me chegou às mãos, como prefácio de um livro que me ofereceram :
"Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja ;
Nem sempre cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre "
Fernando Pessoa
Anamar
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