quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

" A VIDA QUASE HÁ CEM ANOS ..."



A minha mãe nasceu em 1921, numa pequena vila, perdida no Alto Alentejo.
Era a filha do meio de cinco irmãos, duas raparigas e três rapazes.
Nessa altura, as pessoas oriundas de famílias modestas, e no Alentejo interior, viviam mal.
Ainda assim, os meus avós não subsistiam a partir da terra, porque os que trabalhavam para os latifundiários ( meia dúzia de famílias abastadas e detentoras das propriedades ), e que não detinham nada seu, a não ser a jorna quando trabalhavam, tinham uma vida de verdadeira escravidão.
O trabalho era de sol a sol, não existiam leis laborais que o regulassem, menos ainda, sindicatos ou reivindicações.
Um pai de família dava-se por muito feliz, se trabalhasse para algum lavrador, e conseguisse com isso, garantir na mesa, o pão dormido da açorda e o azeite na almotolia !
Os Invernos eram extremamente rigorosos, e havia meses e meses, em que as terras alagadas, não permitiam sequer, que nelas se entrasse .

Era o tempo da fome ...

Muitas crianças iam para a cama, com umas sopas de leite no estômago, porque o pão fazia-se em casa, para toda a semana, e o leite sempre vinha de alguma cabra, ovelha, ou vaca, que criassem, e que, com meia dúzia de "bicos" na capoeira, para os dias festivos, lhes compunham a mesa.

Existia na vila, um convento de freiras, que acolhia meninas órfãs, e que durante todo o ano, por iniciativa da mulher do Presidente da Câmara de então, garantia alimentação diária aos velhinhos do asilo - a "sopa dos pobres".
Pois bem, aí recorriam também os trabalhadores, que no período rigoroso do Inverno, por falta de trabalho,  não tinham do que viver.
E havia depois, como diz a minha mãe, a "pobreza envergonhada", de quem precisava e não pedia ... Mais dramátiva, portanto !

Os meus avós não viviam da terra, como disse.
O meu avô era sapateiro, e foi entretanto mobilizado para a guerra.
Fez a Grande Guerra de 14-18, e quando partiu, já cá deixara, a mulher e um filho.
Em condições precárias, a minha avó, foi então "servir", numa das casas ricas da terra, para garantir o seu próprio sustento, o da criança de meses, e ajudar a mãe que ficara viúva com trinta e um anos, e três meninas para criar.

Na Guerra, o meu avô,  incorporado nas tropas aliadas, esteve à morte, devido a um bombardeamento alemão, já então com armas químicas.
O "gás mostarda ou iperita ", tinha efeitos tremendos nas vias respiratórias, quando inalado, e queimava em profundidade o corpo.
E os alemães usavam-no !...
Salvou-se por mero golpe de sorte ; ainda recebeu a Extrema Unção, na eminência de morrer.
Ficou contudo, com sequelas para o resto da vida.
Isso ocorreu numa noite de passagem de ano, e desde então, ( ele que não era católico ), guardou um qualquer sentimento de gratidão e de respeito particular, por essa noite, enquanto viveu ...

Considerado um ferido de Guerra, muito grave, foi desmobilizado, e regressou a Portugal, com uma saúde tão precária e uma debilidade tão devastadora, que esteve à beira de uma tuberculose.

Decidiu então virar-se para o comércio, porque a saúde já não lhe permitia continuar com a sua profissão de origem.
Abriu um espaço polivalente, que era simultaneamente pensão de hóspedes, mercearia e cavalariça para recolha e guarda dos animais, e de quem viajava nos carros de canudo, ou nos carros de varais, pela planície adiante.
Ainda me lembro de ver lá alojados os "tendeiros", que eram feirantes de terra em terra, os ciganos que  negociavam pelas feiras, cavalos, mulas, e burros, e que se movimentavam, como nómadas que são, com toda a família e os animais, assentando acampamentos nos campos, onde lhes aprouvesse.
Às vezes, em noites tempestuosas, o meu avô dava graciosamente guarida, no palheiro ou na cavalariça, aos errantes, sem eira nem beira, que percorriam, como pedintes, as estradas do Alentejo.
Eram chamados de "frausteiros" ( que suponho ser uma adulteração popular, de forasteiros ).
A minha avó, às escondidas do marido, sempre lhes levava um prato de sopa, para aliviarem um pouco, a fome ...

Eram tempos muito difíceis, efectivamente !...

Depois do meu primeiro tio, nasceram mais quatro crianças, como também já disse.  Abaixo da minha mãe, vinham portanto dois rapazes.
A casa dos meus avós era de permanente labuta.  Havia alguma ou algumas "criadas", como se chamavam, mas as duas filhas raparigas, trabalhavam lado a lado, e em iguais condições que elas.
A minha avó era a cozinheira ( de mão cheia, ao que parece ), mas todo o restante trabalho, desde servirem à mesa, prepararem os quartos dos hóspedes, tratarem da casa, com todas as inerências que se conhecem, passavam pelas mãos das criadas e das filhas.
Todas as semanas se amassava o pão, e anualmente se faziam matanças de porcos, e se preparavam os enchidos ...

Por tais motivos, a minha mãe foi retirada da escola primária, a escassos dois meses de completar a terceira classe, porque havia que vir ajudar a criar os dois irmãos mais novos.
Apesar de ser uma aluna exemplar, e do interesse manifestado pela professora, de que ela continuasse, não houve qualquer sucesso, e talvez com oito ou nove anos, já ela era mãe substituta, porque a minha avó paria, mas não tinha condições objectivas para cuidar e criar as crianças !

Quando oiço a minha mãe contar memórias desses tempos, pasmo, de facto, e pergunto-me como viveriam os meninos de hoje, naquelas condições ...

Não existia luz eléctrica, nem água encanada.  Não existiam casas de banho ...
Os banhos eram tomados dentro de um alguidar de zinco, e a água era despejada sobre o corpo, com um jarro de esmalte.
As camas eram as tradicionais e bonitas camas de ferro, vendidas hoje, como antiguidades.
Tinham um estrado de arame, sobre o qual existia um enxergão de palha, e sobre este, um colchão feito de pedaços de trapos.
A palha do enxergão, era viveiro habitual e inesgotável de percevejos, parasitas que se alimentam do sangue obtido, pelas picadas no ser humano.
Tentavam debelá-los, ao que parece, com rodelas de cebola, ou petróleo ... mas infrutiferamente !

Nos quartos, existia um lavatório em loiça, com um balde por debaixo, para recolher a água, e um jarro ao lado, com essa mesma água..
Tanto quanto sei, em toda a pensão, existia um único bidé de esmalte, que circulava para os quartos, cujos hóspedes o reclamassem, e que não eram muitos ...
À cabeceira das camas, na mesinha de cabeceira, existia uma palmatória com uma vela, com a qual, o quarto era alumiado, e  uma garrafa de vidro com água, com um copo sobre o gargalo.
A maior parte dos cobertores, se assim se poderá chamar, era feita com bocados de tecidos, cosidos uns  aos outros, e havia ainda os cobertores de "papa", que era uma espécie de lã grossa, com pelo, alguns já com marcas das traças.
Remontam estes cobertores ao tempo do Marquês de Pombal, tendo existido, perto da Guarda, na aldeia de Macainhas, uma desenvolvida produção têxtil dos mesmos.
Hoje em dia, a última fábrica, na Serra da Estrela, fechou portas em Dezembro de 2012.
Eram feitos da lã da raça ovina churra, fiada especificamente para este fim, e eram imensamente pesados !
Como consequência, o peso da roupa sobre cada pessoa, jamais era proporcional ao aquecimento
produzido ...
Ainda nos quartos, existiam, para resolver as necessidades fisiológicas das pessoas, uns bacios  altos, de barro, com uma tampa em madeira.
Diariamente, eram os mesmos, colocados nas ruas, às portas das habitações, até que o Tio Rico ( assim se chamava a figura ... ), com um carro puxado por um boi, com uma canga de guizos a anunciar-se, os despejava, para dentro desse contentor.

O "destino" ... a minha mãe não sabe !   Talvez o campo, talvez adubasse terras ...

Os comensais fixos, na pensão, pagavam uma diária de 16$00, que incluía o quarto e as três principais refeições : pequeno almoço, com leite com café, e onde o queijo, a manteiga, os enchidos e o pão, se  faziam  presentes ;  o almoço, com sopa, prato de peixe, prato de carne, pão, vinho e fruta ... e o jantar,  de igual forma.

Havia quem apenas tomasse as refeições, e se deslocasse à Estalagem do sr. Barrancos ( como era conhecida ), devido aos pitéus da Sra. Brites, a  minha avó.
Incluiam-se  como tal,  figuras proeminentes da terra, destacadas para lá, a trabalho : o juíz em exercício, o escrivão do tribunal, alguns médicos, o delegado do Procurador da República, o Padre Serrão, e outras personagens com algum protagonismo ...

Ao tempo, não existiam sabonetes, gel de banho, shampôs e outros artigos de toillete.
Existia sim, para tudo, desde a lavagem criteriosa das tijoleiras de barro, da loiça, da roupa, e de tudo o resto, até mesmo às lavagens pessoais, exclusivamente o sabão azul e branco.

A iluminação caseira era feita por velas, como disse, por candeeiros de petróleo, ou candeias de azeite, espalhados pela casa.
Cozinhava-se em fogões de lenha  ( só mais tarde apareceram os de petróleo ), passava-se a roupa com ferros a carvão, por vezes difíceis de pegar, outras, queimando a roupa, porque algumas brasitas saíam para fora, ou com ferros que se aqueciam na chapa do fogão, simplesmente !

As ruas eram iluminadas com candeeiros de pé, os quais tinham um depósito, que diariamente era provido de petróleo, e assim se iluminavam.
Nas noites quentes do Verão alentejano, terminada a labuta diária, o local mais aprazível para as famílias se juntarem, era  as soleiras das portas, ou mesmo, os poiais das mesmas.
Para garantir a frescura, regava-se a rua previamente.
A água, claro, ou provinha do poço do quintal, ou era buscada diariamente, vezes sem conta, ao poço da Faia, que  ficava  na  estrada, já  fora  da vila, em  cântaros de  barro, à  cabeça  e  no  quadril ...
Muitas rendas do seu enxoval, e muitos livros, diz a minha mãe, ter feito e lido, à luz do candeeiro da rua ...

As roupas usadas, eram frequentemente de chita, ou de riscado.
Com a chita, confeccionavam-se blusas, saias, vestidos, sendo que  cada metro custava vinte e cinco  tostões ...
A roupa interior, as camisas de noite e as combinações ... eram feitas em casa, por quem sabia costurar, e eram exclusivamente de flanela.
O guarda-roupa era parco. Só o essencial, e uma roupita para os domingos, já estava bem!
O material escolar era transportado numa bolsa de flanela, feita em casa, e passava de irmão a irmão. Resumia-se ao livro, ao caderno, à tabuada, lápis e borracha, a ardósia e o ourelo para limpá-la.
As carteiras escolares tinham um tinteiro incorporado, e com uma caneta de aparo, aí molhada, escrevia-se a tinta ...

Bom, não me alongo mais.
Isto tudo, este "modus vivendi", é uma realidade tão longínqua, mas sobretudo tão irreal, que custamos a concebê-la .
Fui tentando descrevê-la, o mais fielmente possível, à medida que a minha mãe ma relatava.
A cada observação minha, a cada espanto meu, a minha mãe dizia-me : "Pois, filha ... mas era assim ! E tudo se criava !!!..."
É tudo tão surrealista, que nem a geração das minhas filhas ... que direi a dos meus netos ... o conseguirá conceber.
Olhando à nossa volta, pergunto-me, como os meninos dos Ipads, Iphones, computadores, telemóveis de última geração, toda a parafernália que nos rodeia, incluindo alimentação, hábitos caseiros, vestuário ... meninos que sabem que o Homem pisar a lua já nada tem de especial, que a concepção de crianças "in vitro", também não, que a clonagem e que a genética mudam o Mundo ...
Pergunto-me, que sentido tudo isto fará/faria, para eles???!!!

Seguramente,  achariam  tratar-se  de  um  filme  do  tempo  das  cavernas !!!...

Anamar 

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