terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

" A PONTE "



Estava sentada junto à janela, no rés-do-chão do edifício.
Dali podia ver o espaço circundante, ajardinado, com algumas árvores, por onde os pássaros se atreviam já a pipilar, e sob as quais se abrigavam bancos de madeira.
Sentadas em alguns, até que a temperatura permitia, estavam  mulheres como ela, que como ela partilhavam aquela casa.
Falavam entre si, soltavam monossílabos de quando em vez ... ou não falavam, simplesmente !

Há muito que ela deixara de ir até ao jardim .
As flores, agora que o tempo amainara, haviam começado a rebentar.  As suas corolas, de mil cores e mil formas, exibiam já alguma pujança primaveril.
Contudo, o tempo atmosférico estava longe ainda,  de se aproximar da estação que vinha aí ...
Por acaso, hoje, uns breves raios de sol atravessaram algumas nuvens, às vezes ameaçadoras, outras cordatas em não massacrarem mais os dias, com chuva.

Há largo tempo que estava ali.  Não sabia quanto.
Perdera a noção do passar das horas, dos momentos, dos dias.
Sabia que a seguir ao almoço, a sentavam naquele lugar, junto à janela, com a mantinha nos joelhos, e o livro no cólo.
O livro ... sempre o mesmo livro, aberto na mesma página, da qual, dia após dia, nunca passava.
O seu olhar perdia-se indefinido lá fora... longe, fixado em algum lugar ... em lugar nenhum !
Apático, deixara de transmitir emoções, fazia tempo...  Talvez, desde o tempo em que mais nenhum rosto familiar, dela se abeirava.
O silêncio pairava naquele quarto, com a cama de colcha florida, a mesa de cabeceira com um candeeiro de luz mortiça, uma cómoda encimada por um espelho, um sofá no canto mais afastado, um roupeiro, onde estariam por certo, os parcos pertences, ladeado de prateleiras, nas quais, quando lá a deixaram, colocaram alguns livros ( seguramente os que acharam, que talvez a transportassem mais, ao que fora a sua vida ) ... e aquela cadeira que a aproximava da janela, e do mundo exterior !...

Sobre a cómoda estavam dispersas várias molduras com fotografias ... de adultos, de crianças e até de velhos !...
Se lhe perguntassem quem eram, ela não saberia.  Tinha esquecido qual a proximidade daqueles rostos com a  sua  pessoa, à  medida  que  alguns  deles, deixaram  mesmo  de atravessar  a  porta  daquele  quarto .
Lá para trás, tudo estava nebuloso ...

Sobre a cómoda,  Leonor, que de quando em vez passava pelo seu quarto, colocara uma jarra, e fazia questão, de sempre nela ter flores frescas, apanhadas no jardim ( porque percebera, que pelo menos no início, isso sugeria transmitir-lhe uma certa alegria e paz  ... parecia serená-la, aquietar-lhe as lágrimas, que com o passar dos tempos, e à medida que o distanciamento se lhe colara ao rosto, deixaram mesmo de escorrer ).
As flores eram, neste momento, quase a única ponte visível, ainda, entre ela própria e o seu passado.
Leonor não sabia grande coisa, mas conseguia auscultar que havia alterações no seu semblante, quando as flores  frescas  eram  colocadas na jarra ... Conseguia perceber herméticas emoções, nos seus olhos distantes ...

O mesmo se passava com a música. Costumavam tocar-lhe temas calmos, doces, nostálgicos.
Sorria, quando ouvia os primeiros acordes.  Sorria, mas não emitia um só som.  Há demasiado tempo que parecia ter feito um pacto de silêncio, ou talvez as palavras já não lhe fizessem sentido.
Havia  de  facto  um  claro  corte  com  o  mundo  real, uma  indiferença  instalada, como  se  nada  valesse já  a  pena !

Olhava-se no espelho, quando lhe compunham os cabelos, prateados  dos tempos, e lhos prendiam atrás, conferindo-lhe um certo ar, quase aristocrático.
Olhava-se mas não se via. Ou melhor, via um outro alguém, sem saber quem ...

As mãos descarnadas impediam que o livro tombasse ao chão, apenas ...
Por entre as suas páginas, havia muitas, muitas flores secas, esmaecidas na cor, mas que haviam sido religiosamente guardadas.
O que elas representavam, Leonor também não sabia. Pressentia que elas haviam sido seguramente importantes, no destino daquela mulher .
Dele, tombavam também, papéis amarelados do tempo, com letra desenhada, inscrita a tinta permanente.
Será que ela os saberia ainda ler ?  Será, que lendo-os, eles ainda lhe diziam alguma coisa ... abririam aquele cérebro, aparentemente cerrado ?

A família foi espaçando as visitas àquela casa, e quando as faziam, encurtavam-nas no tempo.
Na verdade, parecia indiferente que lá estivessem ou não. Ela não mostrava dar por eles, e o seu rosto mantinha-se impassível.
Assim, ficava difícil, parecia inglório ... E afinal, cá fora havia tantas coisas a fazer, que o tempo disponível, quase já só para tranquilizar consciências, ia ficando escasso !...

Júlia parecia cada vez mais, apenas vegetar.  Deixaram de se descortinar totalmente emoções, ou algo que lhe alterasse a expressão facial, indiferente, como quem há muito desistiu, e com a desistência, cortou pontes com o mundo e com a vida.
Afinal, parecia apenas, querer confinar-se ao seu eu interior, que ninguém desvendava.

Os dias foram passando, os meses correndo, os anos também.  Uns, após os outros !
Os que deixara cá fora, sempre achavam que ela já ali "não estava" há muito, apesar de, Verão ou Inverno, frente àquela janela, sempre fixar um ponto inexistente.
No Inverno, a chuva açoitava os vidros, no Verão, o sol tentava penetrar a meia penumbra do quarto, que se tornara apenas ante-câmara, de uma partida ou despedida.

Aquele sábado, era só mais um ...  Irrelevante ...
Júlia nem sabia que era sábado ;  parecia pouco saber, ou nada saber do que quer que fosse.
Depois do almoço, uma vez mais, sentaram-na frente à janela.
Era quase Primavera, e os primeiros botões brotavam no roseiral. As árvores começavam a cobrir-se de verde, os jasmins, os narcisos, os amores-perfeitos e os junquilhos, festejavam a renovação da Natureza .
As aves já saltitavam de galho em galho, em promessa de vida ...

Haviam-lhe entreaberto a vidraça, para que os cheiros doces, do exterior,  penetrassem, e a aragem lhe pudesse, quiçá, lembrar, que um novo tempo estava prestes a começar.
A cortina esvoaçava levemente, por isso.

O homem entrou.
De costas para a porta, Júlia não deu por isso.
Era um ancião, com o cabelo completamente branco, periclitante no andar.
Estacou à entrada do quarto silencioso, e olhou longamente, incrédulo, o seu recorte magro, seco, débil, sentada imóvel ... Como se procurasse alguém "lá atrás", talvez outra mulher, talvez outra Júlia ... como se rebuscasse na sua memória ... como se escavasse no seu coração.
Trazia um narciso na mão.  Amarelo, como o sol ...  Um, apenas !...

Chegou perto dela, e olhou longamente a sua palidez, a sua degradação, as suas mãos esquálidas, pousadas inertes, nos joelhos.
Uma lágrima teimosa escorreu-lhe pelo rosto, também macerado pelos anos.
Ajoelhou com dificuldade, à altura dos olhos distantes de Júlia, beijou a flor e colocou-lha, abandonada, no cólo, sobre a mantinha que a protegia.

Júlia estremeceu.  Ergueu os olhos ;  por eles perpassou um esgar súbito, de surpresa, como se tivesse lembrado alguma coisa ...
Um sorriso largo iluminou-lhe o rosto ...
Enorme, doce, grato ... surpreso, quase feliz, dir-se-ia ... envolvido numa emoção transbordante ...

Como se toda a vida, junto àquela janela, olhando o jardim vazio lá fora, sempre, ela não tivesse feito mais que esperá-lo, e apenas tivesse sido capaz de viver até àquele dia, porque  um narciso, amarelo como o sol, haveria de cair no seu regaço ...

Júlia, atravessara finalmente, a última ponte da sua vida !!!...

Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

A tua escrita Anamar é surpreendente, quando a leio, fico sempre curioso, pelos temas que escolhes.
Será que como penso terá o Narciso algo a ver com uma fotografia tua que publicaste no FB ?
Ou será que te tornaste narcisista ? não o creio, nunca o foste,pois sempre desvalorizaste a tua escrita,aquela que anima quem te lê.
Beijinhos para ti.
Nando

anamar disse...

Olá Anónimo

Narcisista, não, seguramente. Sou demasiado humilde...talvez consciente, para fazer auto-elogios, ou me ter em grande conta.

Narcisos...adoro! São duma graciosidade, têm um desenho perfeito, uma cor linda(fresca e brilhante como o sol)... e nem precisam ter perfume p'ra nos perfumarem o coração!

Obrigada e beijinhos também.

Anamar