domingo, 2 de março de 2014

" A VIDA "



Escrevo quando estou triste, escrevo quando estou louca, escrevo quando o cinzento envolve o meu céu, e me embrulha junto com ele.
Escrevo quando a solidão sobe as paredes do meu quarto, e nelas se agigantam sombras.
Escrevo quando os gatos miam lá fora e os pássaros voam longe, atrás do sonho.

Porque, quando tudo se encaixa na casa, na minha mente e no meu coração, não há lugar p'ra palavras ...
Quando tudo se completa no meu eu, e no meu mundo, as cores que todos vêem,  pintam de aguarela, os medos e as dores ... não há lugar para palavras ...
Quando a perfeição mascara a ausência de sono, e me faz acreditar que estou feliz, as palavras emudecem na garganta, as frases não se alinham na ponta da caneta, e as letras fojem e brincam de duendes endiabrados, à minha volta.
E eu, não escrevo ...  Não há lugar para palavras !...

Para que escreva tem que me doer a alma, e nas veias, o sangue que sobe e que desce, tem que parar, para que eu fique entre o cá e o lá, no limbo do ser e do não ser.
Para que escreva, tenho que me sentir criança largada no cimo do monte, no topo do mundo, no sussurro do areal.
Tem que a lua se apagar no céu escuro, e as estrelas têm que partir por já ser madrugada !
Aí, oiço os lobos uivarem no cerrado da serra ... e eles entendem-me.
São solitários, no meio do grupo.  Eu acho que os lobos são individualidades herméticas, no meio da matilha, embora se julgue que não.
Um dia, um, me contou, e eu acreditei, porque também eu sou corpo de mulher e alma de lobo.
A solidão é uma segunda pele, que há muito vesti, e com que aprendi a viver.

Hoje, o dia está de letras e sinais.  A meia-noite confundiu-se com o meio-dia.
A chuva fria, impiedosa e agreste, fustiga-nos por dentro e por fora.
Está um dia de casulo, de ninho, de toca, de útero ...
O Homem forma-se numa concha de águas e algas, macias e quentes.  O Homem forma-se no aconchego da escuridão, no embalo do balanço materno, no golpe da aragem que torna a crisálida em borboleta.
E então solta-se, voa, pensa que voa ...
E fica simplesmente preso, na liberdade do acreditar !
Há muitos anos que eu sei disso ...  Há talvez mais, além de muitos ... há eternidades !...

Absurdamente  desconhecida de mim própria, rebolo-me no leito do infortúnio, sem que o tenha, na verdade ...
Absurdamente incompleta, navego com ventos de través, que me cansam e me derrubam ...
Absurdamente  ingrata,  apago  com  borracha  de  tinta, os  horizontes  laranja  e  todas  as sete  cores  do arco-íris ... Se  ousam  desenhar-se ...
Absurdamente claustrofóbica, sinto-me num aquário feericamente iluminado, perturbadoramente devassado por olhos curiosos de artista de circo, como numa montra do Red Line District, onde as bonecas de carne esperam e acreditam ...

E fico apenas com as letras teimosas que não se ordenam, com as frases relapsas que não se arrumam, com as ideias enlouquecidas que se deixam arremessar contra os rochedos, pelas marés carrascas que insistem em fingir dançar ... sem que resistam ... e neles se desfazem  ...
E fico apenas com os gemidos roucos de um coração enraivecido, que já pouco reclama e se indigna ... por indiferença ...

A Vida é o Carnaval dos Homens !...

Anamar

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