quinta-feira, 7 de junho de 2018

" SILÊNCIO "




O meu pai faria 116 anos há dois dias atrás.   5 de Junho de 1902, o dia "escolhido" para que viesse ver como isto seria por aqui ...
Viveu noventa anos, teve dois casamentos e dois filhos.  Um de cada ligação.
A segunda, sou eu.  O primeiro, um rapaz com mais dezassete anos que eu, nunca privou da minha companhia, já que adoeceu grave e irreversivelmente, o que levou à sua institucionalização num centro médico adequado à sua enfermidade, exactamente doze dias antes de eu nascer.
Lá se encontra até hoje !

O meu pai, já aqui o referi em textos escritos a propósito, foi alguém que eu amei e respeitei ... muito ... Outra coisa seria impensável de acordo com os valores afectivos familiares vigentes, mas sobretudo, porque ao longo da sua longa vida fez por isso, tendo-a norteado, creio, para me criar da forma mais favorável possível ( até porque, digamos,  havia "perdido" o primeiro filho ).
Tendo eu nascido quando ele já tinha quarenta e oito anos, sempre me tratou mais de acordo com o estatuto de avô, do que de pai .
Era desvelado, exageradamente cuidadoso, protector, carinhoso, tendo por mim aquele amor de "pai com açúcar" que os avós detêm ...
Toda a sua vida se direccionou para que a família mínima que nós três éramos, não passasse dificuldades ou problemas acrescidos.

Sendo viajante de uma firma de ferragens de que também era sócio, passava a maior parte do tempo fora de casa e apenas aos fins de semana, ou de quinze em quinze dias, regressava.
Tudo dependia da zona do país onde se encontrava ... se perto ou longe ...  Na altura, vivíamos em Évora, não possuíamos carro próprio, a empresa também lho não distribuíra, já que não havia nunca tirado a carta para o efeito.
Os transportes eram precários à época, e tudo era consequentemente mais difícil.
De comboio a vapor, de automotora, camioneta "da carreira", carruagem ... ou mesmo de burro nos tempos mais recuados ( sempre ouvi dizer ), o meu pai viajou ...
Quando, ir ali ao lado, era coisa de meios dias ...

Uma vida dura, pouco compensada, esforçada e incerta, tornou-o uma pessoa silenciosa.
Com sete anos era marçano de armazém, no Alentejo profundo. Fazia "recados" que lhe pagavam com uma côdea de pão dormido.
Ser o mais velho de cinco irmãos, remeteu-o ao encargo pesado e difícil de se tornar uma espécie de chefe de família, por incumprimento do próprio pai ...
A morte da primeira mulher poucos anos após o casamento e sem que praticamente tivessem coabitado, por doença pulmonar grave desta, que motivou um permanente internamento ... a precoce viuvez com a instabilidade de  ter um bébé a cargo, criado de "andas para bolandas" ... a posterior doença do filho ... tornaram-no amargurado e azedo.  As alegrias, poucas, fizeram dele uma pessoa aparentemente dura, sem que o fosse, pragmática, distante ... como que insensível ... sem sonhos.
Não o era. Apenas não sabia exteriorizar muito mais.
Poderia afirmar sem erro, que o esteio da sua vida foi a minha existência.  Foi poder viver para me / nos proporcionar tudo o que não teve ... vida boa, educação, um futuro condigno.
A sua alegria foi poder assistir à realização do seu desiderato.

Vieram as netas, já então estava reformado.
E agora, com elas, a alegria de um "renascimento".  Agora sim, na vivência do seu real estatuto de avô !

Costumo dizer que o meu pai me atravessou a vida sem se me dar a conhecer.  Sem me falar  das angústias que teria, das mágoas que suportava, dos sonhos que talvez tivesse, do que o atormentava no coração, das suas dúvidas, ansiedades e desejos.
Não lhe lembro o riso ... nunca.  Mas também não lhe lembro as lágrimas que talvez reprimisse ...
Lembro-lhe o carinho ... sempre.  A ternura infinita ...
Foi uma figura silente, que de mansinho, como brisa de fim de tarde, me ecoa até hoje na memória, na alma e na caixinha, aqui bem no meio do meu peito !...

O meu pai teria feito 116 anos há dois dias atrás ...
Entreguei-o à terra, para terminar o seu caminho ... para cumprir o seu desígnio último, nesta morada, para fazer a derradeira e definitiva viagem ... ele, que não foi mais que um caminheiro do destino ... um viajante dos sonhos !...

Anamar

Sem comentários: