segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

" OLHA, SABES QUE DIA É HOJE ?... "



Este mês de Dezembro era um mês movimentadíssimo na cabeça da minha mãe.

Chegava o dia um e assim que a visitava, logo pela manhã me dizia sabes que dia é hoje ? E eu, que já sabia o que vinha lá, dizia, sei mãe, é o dia do Ti Tiago Nobre ... e ela, feliz ... Pois era, à meia noite o Ti Tiago Nobre, pela calada do frio do Alentejo, com o seu carapuço de almocreve na cabeça, pequenino que ele era, abria o postigo da porta na casinha baixa em que vivia, empoleirava-se na cadeira de buinho, e com a espingarda caçadeira, disparava as salvas da comemoração histórica a viver-se nesse dia, a Restauração da Independência de Portugal do jugo dos espanhóis, como ele dizia. Não, sem simultaneamente insultar os "nuestros hermanos" com uns quantos impropérios a propósito.
Nunca, ano após ano, o Ti Tiago Nobre, um velho sem idade ou condição, se esquecia do evento.
Quantos seriam os tiros que cortavam o silêncio da noite ?  Verifico que não sei.  Esqueci de perguntar à minha mãe.  Ou então, se mo disse, já o não lembro.
Deixei-a ir, imperdoavelmente sem esclarecer este ponto.  Já não há remédio !

No dia oito, dia de Nossa Senhora da Conceição, lá vinha outra ... sabes que dia é hoje ?  E eu, que já sabia o que vinha lá, sorria e dizia-lhe, sei mãe, hoje é o dia da Menina Custódia ... e ela, feliz ... coitadinha, tão novinha que morreu.  A pneumónica matou famílias inteiras, chegavam a estar dois e três enterros na mesma casa, ao mesmo tempo.  Pais, não sabendo de filhos e filhos não sabendo de pais ... Muito triste !  Mas o enterro da Menina Custódia ... nunca se viu nada assim.  O Redondo todo se "despovoou" e a acompanhou ao cemitério.  Era muito nova e muito boazinha. Toda a gente gostava dela, prestativa com todos, no atendimento ao balcão do montepio.

E eu a perguntar-me por que raio, ano após ano, a minha mãe, caindo de velha e esquecendo quinhentas mil coisas úteis das nossas vidas, não esquecia estas figurinhas ?!...

Igual a este enterro, só mesmo o do Padre Serrão ...
E aí, saltávamos para a semana anterior ao Natal ...
Olha, sabes que dia é hoje ?  E eu, que já sabia o que vinha lá, voltava a sorrir e confirmava, sei mãe, foi o dia em que o senhor Padre Serrão entregou o corpo ao Criador.  Ah pois, nunca houve um padre como ele, lá na nossa terra.  O Padre Serrão rezava a missa de alva todos os dias, e todos os dias, de Verão ou de Inverno, antes dela, tomava um banho de banheira com água fria.  Depois, lá ia para os seus afazeres.  Até ao dia em que, estando as beatas à missa, o senhor prior não apareceu.  Quem lhe aconchegava as coisas, procurou-o em casa e o Padre Serrão por lá ficara ... na banheira !
Era muito boa pessoa. Condoía-se de toda a gente e ajudava os desvalidos.  Casou os teus avós, quando o avô chegou da Grande Guerra, onde não morreu por uma unha negra, apesar da condição imposta pelo teu avô, Senhor Padre, eu casar ainda posso casar, mas eu não me confesso antes. Está bem meu bom amigo sr. Barrancos, era assim que ele dizia. Não faz mal, o meu bom amigo leva a minha boa amiga sra. Brites à igreja e eu caso-os e pronto.  E assim foi.
Nunca houve um funeral tão grande na vila ...

Funerais por funerais, ainda neste agitado mês de Dezembro, rés-vés ao seu fim, finou-se o dr. Tavares, o João Semana lá do sítio. Era o médico para todas as horas, todas as doenças e todas as eventualidades.  Não se cobrava, atendia ricos e pobres. Pagavam-lhe pelas Páscoas em merendeiras, bolos de folha e queijadas. Pelos Carnavais em pinhoadas, filhós e azevias ... pela feira de Outubro, em maçãs, nozes e marmelada ... e o dr. Tavares nunca recusou um atendimento, mesmo no pico das madrugadas, se preciso fosse ...
Quando morreu, baixou à terra apenas embrulhado num lençol.  Assim o deixara escrito.
E eu a relembrar uma outra vez, mais um famigerado dia de Dezembro num ano em que ainda não nascera, nem estava para nascer ...

Olha, sabes que dia é hoje ? E eu já esgotada de tantas efemérides registadas naquela cabecinha branca de alva, olhava-a com um ar aparentemente desolado e dizia-lhe, credo, mãe, hoje não estou mesmo a lembrar-me de nada.  Mas é Dezembro, certamente mais alguma coisa terá acontecido, sorria, meio envergonhada pela falta imperdoável do esquecimento.  Como se fizesse pouco caso de tão importantes acontecimentos.  Como se fosse uma aluna relapsa não dando conta da lição.  Então, faz anos que morreu o Pêdorra ... já não te lembras ?  Era ele que nas esquinas das ruas apregoava e apregoou tudo quanto todos deveriam saber, o que se passara, quem nascera, quem morrera, quem se casava, por quem eram os "sinais" que o sino da Matriz dobrava, o que se perdera e as alvíssaras que se dariam a quem achasse ... e por aí fora ...
Um dia o pregoeiro também calou os seus pregões.  Inevitavelmente, num traiçoeiro dia de Dezembro.  A minha mãe soube-o. Soube-o e não mais o esqueceu.  E desta vez ninguém lho apregoou !...

Era assim... foi assim ...

Olha, sabes que dia é hoje ?...

Memórias ... só memórias, o que resta de tanta gente.  Breve se calarão.  Breve se esfumarão na bruma dos tempos !
A minha mãe também não mais mo lembrará.  E eu ... bom, eu acho que já não o conseguirei mais, passar adiante ... VIDA !...

Anamar

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